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MOREIRA LEITE
Pessoas
honestamente comovidas com a imagem de Aylan Shenu, 3 anos, o menino que morreu afogado quando sua família tentava
fugir da guerra civil da Síria para chegar a costa da Turquia, devem precaver-se contra a torrente de
explicações místicas, fatalismos históricos e outras falsificações típicas
dessas horas.
Quando as responsabilidades por uma
tragédia vergonhosa e colossal estão aí, à vista de todos, nada mais
conveniente do que procurar argumentos irracionais e obscuros para aquilo que
se define com o maior colapso humanitário depois da Segunda Guerra
Mundial.
A guerra civil da Síria – de onde a família
de Aylan tentava escapar, numa fuga aonde também pereceram a mãe e um irmão do
menino – é resultado direto de uma ação militar iniciada em 2011, pelo governo
dos Estados Unidos. A operação fez parte do esforço de Washington para derrubar
a ditadura de Bashar Al Assad, derrotar seus aliados russos e chineses, e tomar
posse, entre outras coisas, de reservas
estimadas em trilhões de barris de gás e petróleo.
Escrevendo numa conjuntura anterior aos
acordos entre Teerã e Washington sobre o programa nucelar do Irã, o diplomata
Luiz Alberto Moniz Bandeira explicou que
"a queda do regime sírio permitiria
suprimir a presença da Rússia, onde ela mantém duas bases navais, cortar as
vias de suprimento de armas para as organizações pró-xiitas Hisbollah, no Líbano, e Hamas, na Palestina,
conter o avanço da China sobre as fontes de petróleo, isolar completamente e estrangular
o Irã." Para Moniz Bandeira, o
resultado dessa intervenção seria o estabelecimento de uma situação de
controle, por parte dos Estados Unidos e de seus aliados europeus, de toda área
do Mediterrâneo, revertendo uma situação que se modificou com as revoltas
coloniais do século XX.
Sustentando uma unidade de adversários de
Assad que incluem mercenários e terroristas, até hoje os EUA Unidos mantém uma
guerra que dificilmente poderá ser vencida, mas da qual não podem se retirar
sob o risco de um vexame . Isso explica o morticínio gradual, que aos poucos
inviabiliza o país, do qual a família Shenu procurava escapar de qualquer
maneira.
Motivo de indignação internacional dias
depois de uma tragédia igualmente vergonhosa -- a morte por sufocamento de 71
imigrantes eslovacos no interior de um caminhão frigorífico no interior da
Áustria -- a imagem de Aylan Shenu provocou uma reação de Ângela Merkel, a
chanceler alemã. "Se a Europa falhar na questão dos refugiados, essa não
será a Europa que sonhamos," disse ela.
Para sair do sonho para a realidade, no
entanto, não bastam medidas de caráter humanitário, por mais que sejam
inteiramente justificáveis diante da situação. Não se vislumbra o que a União
Europeia possa fazer a caminho de uma solução ampla e duradoura – sem colocar
em questão sua política econômica de austeridade, crescimento baixo, desemprego
alto.
Hoje, 26,5 milhões de europeus estão
desempregados, numa taxa média que bateu em 9,6% em abril, contra 5,4% nos
Estados Unidos. Na Espanha, o desemprego é de 22,5% e passou de 10% na França.
Localizado na região geográfica que abriga o maior PIB e o maior mercado
consumidor do planeta, o colapso europeu explica a dificuldade política para se
tomar, de uma hora para outra, qualquer medida que possa ser interpretada como
excessivamente generosa em relação a estrangeiros – a menos que venham a
ser acompanhadas de medidas de estímulo
ao crescimento capazes de responder também às necessidades dos próprios
europeus.
É uma hipótese tão remota que sequer se
especula a respeito – como se comprovou com o castigo imposto ao
primeiro-ministro Alexis Tsripas (25% de desemprego) forçado a abandonar
qualquer Europa com a qual havia sonhado diante da intransigência de Angela
Merkel.
A imagem de um menino morto, de pernas
brancas, magras e finas, sendo transportado por um policial, comove e dói.
Mas vamos combinar que a hipocrisia também
machuca.
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