A mervalização do noticiário fez com que o padrão
de jornalismo da revista Veja passasse de exceção a regra.
Luis Felipe Miguel - Blog da Boitempo // www.cartamaior.com.br
A recente aprovação do PLS 141/2011, relativo ao
direito de resposta nos veículos de comunicação, despertou uma reação
enfurecida das empresas de mídia, seja por meio das suas associações (ANJ,
ABERT), seja por meio de editoriais e de artigos e entrevistas de seus
porta-vozes formais e informais. Como sempre, no discurso deles, qualquer
tentativa de regulação pública da atividade jornalística empresarial aparece como
uma ameaça à liberdade de expressão.
O projeto do senador Roberto Requião, agora
sancionado pela presidente Dilma Rousseff, é bem modesto em seus objetivos.
Visa reprimir a divulgação de informações francamente caluniosas e minimizar
seus efeitos – por isso, o curto prazo para o deferimento do pedido do atingido
e para a publicação da réplica, tão criticado pelas empresas. Caso o tempo
entre a notícia inicial e a contestação seja grande demais, a resposta pode se
tornar inócua, pois os danos causados seriam irreversíveis. Um veto
presidencial retirou do texto o dispositivo que garantia a possibilidade de que
a resposta fosse apresentada pessoalmente ou por quem o prejudicado achasse
conveniente. Com isso, permanecemos com as próprias emissoras definido a forma
de apresentação, um retrocesso diante do texto original.
Ainda assim, trata-se de uma medida importante para
coibir abusos que têm se tornado cada vez mais frequentes no Brasil, como o
recente cerco ao ex-presidente Lula e a seus familiares demonstra. Mas está
longe de atacar os problemas centrais que o controle privado dos meios de
comunicação coloca para a democracia no Brasil, problemas que – por causa do
próprio poder da mídia – estão longe de ocupar a posição que deveriam na agenda
pública.
A trajetória da mídia no Brasil a partir da
redemocratização (1982 a 2002)
Durante algum tempo, foi possível descrever a
influência dos meios de comunicação de massa no Brasil como uma evolução lenta,
mas constante, na direção de formas mais “civilizadas” de intervenção nas
disputas políticas. Não é que eles deixassem de intervir, mas adotavam padrões
um pouco mais sutis, mais parecidos com aqueles presentes nos regimes liberais
consolidados. A Rede Globo, que durante a maior parte do tempo ocupou a posição
central de nosso sistema de mídia, serve como exemplo.
Nas primeiras eleições parcialmente competitivas
desde 1964 (as disputas pelos governos estaduais em 1982), a Globo participou
do chamado “esquema Proconsult”, a tentativa de fraudar o resultado no Rio de
Janeiro, retirando a vitória de Leonel Brizola. Já em 1989, na primeira eleição
presidencial após o retorno dos civis ao poder, ela entrou em campanha quase
aberta por Fernando Collor, participando ativamente da ofensiva de marketing
que o tornou um candidato viável. A campanha da Globo culminou na edição do
último debate entre Collor e Lula, no Jornal Nacional. Hoje, até o discurso
oficial da emissora reconhece a intenção manipulativa da edição, ainda que
jogue a responsabilidade sobre alguns funcionários, não sobre a direção da
empresa. Da fraude na apuração dos votos em 1982 à “mera” manipulação do
eleitorado em 1989 há, sem dúvida, algum progresso.
A reação à manipulação de 1989 e o fracasso do
governo Collor levaram a uma postura mais cautelosa em 1994. Não houve a
promoção aberta do candidato Fernando Henrique Cardoso: ela foi substituída
pela defesa do Plano Real. A manobra, já de partida pouco sutil, tornou-se
indisfarçada no momento em que o então ministro Rubens Ricúpero a explicou em
rede nacional, sem saber que estava sendo captado pelas antenas parabólicas. De
qualquer maneira, é uma demonstração de que, cinco ano após a campanha de
Collor, a Globo já entendia que precisava, no mínimo, fingir que não estava
envolvida com um dos candidatos. Quando Fernando Henrique buscou um novo
mandato, em 1998, a manobra foi outra. A emissora eliminou a campanha
presidencial do noticiário, fazendo da eleição um simples ritual de recondução
do presidente ao cargo. Era essa, aliás, a estratégia do PSDB: impedir a
discussão de alternativas. No período de doze semanas que antecedeu a votação,
em 1998, os candidatos presidenciais reunidos receberam menos tempo de Jornal
Nacional do que a cobertura dada ao nascimento de Sasha, a filha da
apresentadora Xuxa. Tal silenciamento é o descumprimento do compromisso público
do jornalismo, mas foi explicitamente apresentado, na época, como prova de
“neutralidade” no pleito.
E em 2002 houve o passo mais significativo de
aproximação ao padrão de intervenção da mídia nos países de democracia
capitalista consolidada. Havia simpatia, da Globo como da grande imprensa em
geral, ao candidato José Serra. Mas tal simpatia foi controlada e o empenho
maior foi garantir que todos os candidatos competitivos se comprometessem com a
defesa de determinados interesses básicos. Ao contrário do pleito anterior, o
Jornal Nacional deu amplo espaço à campanha. Cronometrou o tempo destinado aos
quatro principais candidatos, dando a eles visibilidade similar. O esforço era
para extrair de todos eles a garantia expressa de que a política econômica
fernandista não seria alterada e os “contratos” seriam respeitados. A grande
imprensa, Globo incluída, enfatizava o perigo de uma vitória da oposição (alta
do dólar e do chamado “risco-Brasil”), que só seria evitado assegurando a
permanência do modelo vigente.
Assim, era apresentada uma aparente neutralidade
diante da disputa eleitoral, ao mesmo tempo em que o espectro das propostas que
os candidatos podiam “legitimamente” defender ficava severamente restrito. É
evidente que o jornalismo de uma sociedade democrática precisa de muito mais
pluralismo. Ainda assim, em 2002 os conglomerados de mídia tiveram que demonstrar
disposição para aceitar a alternância no poder (que se tornara cada vez mais
inevitável). Com isso, avançaram rumo ao padrão de cobertura preferido por seus
congêneres nos países do Norte, que também defendem interesses, mas evitam a
manipulação eleitoral indisfarçada.
A “mervalização” do espectro midiático brasileiro
Portanto, de 1982 a 2002 temos um padrão evolutivo,
em que formas mais abertas de intervenção política são substituídas por formas
mais veladas. A partir da crise do mensalão, no primeiro mandato de Lula,
porém, o quadro mudou. São vários os possíveis motivos do ódio demonstrado a um
governo que, no fim das contas, fez tão pouco para enfrentar os interesses
dominantes: ódio atávico ao petismo, preconceito de classe, sentimento da elite
paulista de que havia sido desalojada das posições de poder que lhe cabiam por
direito divino, entendimento de que qualquer melhoria nas condições de vida dos
miseráveis, ainda que pequena, punha em risco seus privilégios. Seja como for,
as campanhas de 2006, 2010 e 2014 foram num crescendo de engajamento eleitoral
aberto, a tal ponto que hoje, quando vivemos o interminável terceiro turno da
eleição do ano passado, parece que estamos de novo em 1989.
A mervalização do noticiário fez com que a revista
Veja, que no passado recente parecia destoar do padrão de envolvimento político
mais cauteloso adotado pela maior parte da mídia, passasse de exceção a regra.
Os míticos valores da “imparcialidade” e da “objetividade”, que o jornalismo
costumeiramente empunha como forma de afirmar seu poder de dizer o mundo, foram
alegremente jogados na lata do lixo. Em seu lugar, espera-se que o público
encontre no noticiário o espelho de seus próprios preconceitos.
Por isso é que o controle da informação é um dos
principais gargalos da democracia no Brasil. Existe um pequeno pluralismo, é
verdade, de algumas publicações alinhadas ao governo petista, de ainda menos
veículos posicionados à esquerda. Mas ele é muito insuficiente. A mídia possui
influência política porque forma um sistema capaz de impor sua agenda ao
público. Esse sistema exclui as vozes dissonantes – Veja, Folha, Estadão e Rede
Globo se pautam mutuamente, mas as matérias publicadas em Carta Capital ou na
Caros Amigos tendem a ser ignoradas por elas. Esse desafio precisa ser
enfrentado para gerar uma democracia mais verdadeira.
Liberdade de expressão e democratização da
comunicação
O que está em questão, aqui, é o valor da liberdade
de expressão. Para as empresas de comunicação e seus aliados, a liberdade de
expressão deve ser entendida sobretudo como um direito individual. Eu posso
falar o que quero, como quero, usando os meios que estiverem a meu alcance. Se
tenho acesso a televisão, jornal, rádio e revista, falarei a uma multidão de
pessoas. Se não tenho, paciência. A liberdade de expressão, assim, é o estado
de natureza hobbesiano, em que ganham os mais fortes. É o que está por trás da
reação ao próprio projeto do direito de resposta.
Mas é possível ver que a liberdade de expressão é
também – e de maneira central – um direito coletivo. Precisamos dela para que o
público tenha acesso a um debate político plural, com ideias, valores,
perspectivas sociais e propostas divergentes. Essa sempre foi, por sinal, a
compreensão dos defensores liberais clássicos da liberdade de expressão, de
John Milton a John Stuart Mill. No contexto da época, a preocupação deles era
impedir a censura estatal. Mas o controle dos recursos de comunicação nas mãos
de uns poucos agentes privados causa o mesmo resultado de abafamento da
discussão e de silenciamento das vozes divergentes.
No caso brasileiro, o mercado de mídia é
extremamente concentrado. Umas poucas famílias detêm o controle das grandes
redes de televisão e rádio, dos principais jornais, das revistas, dos portais de
notícias na internet. Graças à ausência de restrições à propriedade cruzada,
quem liga a tevê, ouve rádio, lê jornal e lê revista pode estar recebendo
informações que partem de uma única fonte. Estes poucos conglomerados de
comunicação, além do mais, possuem em geral visões de mundo, valores e
interesses em comum. A competição mercantil entre eles raras vezes abre espaço
para a pluralidade de ideias.
Esta convergência está evidente no próprio debate
sobre a democratização da comunicação. As propostas aventadas antes pelo
governo Lula e depois pelo governo Dilma Rousseff para mudar o quadro da mídia
no país, ainda que tímidas e insuficientes, foram atacadas sem trégua, como
tentativas de impor censura e monopólio estatal da informação. O que os donos da
mídia veem ameaçada é sua capacidade de dominar o discurso público – sua
liberdade de expressão entendida como o direito de falarem sozinhos.
Há quem argumente que o problema foi resolvido
pelas novas tecnologias. Se uns têm emissoras de televisão ou de rádios, outros
podem criar blogs na internet. Aqueles que lutam pela democratização da
comunicação estariam “uma guerra atrasados”, como disse certa vez um colunista
da Folha de S. Paulo. Só que quando a própria Folha tenta convencer o mercado
publicitário de que não vale a pena mudar para as novas mídias, não escasseiam
reportagens para mostrar como o caleidoscópio de vozes do ciberespaço permanece
dependente das informações oriundas dos veículos tradicionais (fonte de mais de
90% delas, de acordo com pesquisas nos Estados Unidos).
Continua sendo necessário regular a grande mídia,
para que ela se torne mais compatível com o debate democrático ampliado. É
necessário garantir o direito de resposta, para coibir e corrigir abusos. Mas
não basta. É necessário adotar medidas que combatam a concentração da
propriedade da mídia, uma vez que a competição ampliada gera potencialmente
aberturas para novas perspectivas – também não basta. É necessário fortalecer o
jornalismo público, que deve se tornar o guardião dos valores profissionais,
protegido da influência tanto do mercado quanto do Estado. Ainda não basta. É
necessário estimular a mídia dos grupos sociais minoritários, garantindo que
mais segmentos ganhem voz no debate, inclusive com financiamento público para sua
produção, como ocorre em países do norte da Europa. Em conjunto, tais medidas
projetam uma verdadeira liberdade de expressão, emancipada do poder econômico e
realmente capaz de servir ao aprimoramento da democracia.
Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política
da UNB, e autor, em conjunto com Flávia Biroli, de "Feminismo e política:
uma introdução" (Boitempo, 2014), entre outros. Ambos colaboram com o Blog
da Boitempo mensalmente às sextas.
Créditos da foto: Blog da Boitempo
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