quarta-feira, 6 de abril de 2016

A produção fabril e Manoel de Barros

Manoel de Barros descobriu que a riqueza está presente nas coisas simples, e que essa riqueza libera o homem para usufruir o que a vida tem de desconhecido

José Carlos Peliano* // www.cartamaior.com.br
A invenção da semana foi uma maneira inteligente de nos fazermos lembrar que a vida deve ser levada por etapas, dia a dia. De segunda a domingo e assim sucessivamente. Se bem que há diferenças: a sexta feira é o melhor dia da semana, porque traz logo em seguida o descanso de sábado e domingo, e domingo à noite o período do limbo, porque abre no dia seguinte, segunda feira, a semana de trabalho.

Assim, a repetição das semanas nos faz instruir que cada dia é um novo dia, quando se abrem possibilidades de não só encerrar ações e atividades anteriores assumidas, quanto nos favorece com chances de novas ações e possibilidades para melhorar de vida. E segue o barco dias afora.

O resultado final é o de nos entronizar na tessitura da vida social e econômica, incluindo na primeira as dimensões política e cultural. Repetir cada dia de cada semana como nova janela de admissão à vida que nos sobrou da noite passada. Nessa repetição, entretanto, há duas maneiras de vê-la.

Na vida ocidental, industrial e urbana, aos poucos sendo incorporada também a área rural, a tradição trazida desde o advento da máquina na produção de bens e serviços, combinada com a religião reiterada pelos arautos do progresso material, martela a convicção assumida pelos cidadãos de toda a parte desse planeta de que se deve repetir, repetir, repetir, cada dia de toda semana, para que se faça o mesmo de modo mais eficiente, eficaz e produtivo. Lucrativo ao final das contas.

Na percepção fina, arguta e sábia de Manoel de Barros, o grande poeta mato-grossense, hoje ordenhando nuvens e borboleteando estrelas, todos nós, ao contrário do peso imposto pelo trabalho secundado e minutado pelo relógio, devemos repetir, repetir, repetir, cada dia de toda semana, para que se faça o mesmo de modo diferente, mais criativo, prazeroso e suficiente.

Entre esses limites deve estar a melhor maneira de levar a vida, embora o peso do espirito capitalista supere o espírito Manoelista, claro! Dirão os engravatados e as customizadas, que Manoel era avoado, desparafusado, um “poeta” entre aspas mesmo. Para esses, Manoel era moldado em barros, diversificado, imponderável, daí não entender o primado e o propósito da produção fabril repetitiva e sequenciada.

Não é verdade, porém, que ele desconhecia a repetição e o sequenciamento. Tanto conhecia que vislumbrou e utilizou em sua vida a repetição para sequenciar outras formas diferentes de ver, entender e refazer o mundo. E não é a isso que o sistema japonês de produção industrial chegou perto ao rever a sequência fordista? Reorganizou a linha de montagem em ilhotas produtivas no chão da fábrica para produzir o mesmo de forma diferente?

Só que, por suposto, prevaleceu o espírito capitalista: produzir o mesmo de forma diferente mais eficiente, eficaz e produtivo porém. E ao final, escusado outra vez dizer, mais lucrativa.

O espírito Manoelista foi achado na natureza, diretamente dos bichos, das árvores, das águas dos regatos, das sombras das lagartixas, enfim, foi formado pela observação da simplicidade, da temporalidade e da “economicidade” da harmonia reinante no meio ambiente. 

Manoel de Barros foi um ambientalista autodidata, além de humanista e fazendeiro do ar, como diria Drummond. Aprendeu, em suas palavras, “renovar o homem usando borboletas”, que “a maior riqueza do homem é a sua incompletude”, e que não aguenta “ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis …”.

Manoel contrapõe viver com simplicidade ao viver pelo consumismo extremado. Descobriu a sua maneira, como tantos outros, que a riqueza está presente nas coisas simples, sejam elas quais forem. Essa riqueza libera o homem para descobrir a vida e dela usufruir o que ela tem de desconhecido, bom e melhor. Especialmente a relação social com todos os outros seres vivos da natureza.

Subjugou o tempo ao seus interesses, desejos e maquinações. Não ficou prisioneiro do relógio que não lhe dava tempo para ter tempo para fazer o que queria, mesmo sendo coisa alguma. O dia a dia lhe valia mais que as imposições da cultura, tradições e costumes. Um rebelde com causa.

Sua economia de tempo lhe rendeu uma das obras mais ricas, intrigantes e brilhantes da poesia brasileira. Nossa literatura não seria a mesma sem ele. Aprendeu a brincar com as palavras que lhe vinham da observação aguçada e engenhosa dos mundos: ao seu redor e ao seu interior.

Um poeta que mostrou como a vida econômica poderia ser mais salutar e justa e menos desigual. Era um dos 99% pelo pouco que lhe fazia viver, mas um do grupo do 1% pelo muito que retirava do pouco que tinha. Não lhe interessava consumir coisas padronizadas, mas apenas coisas sem vitrines. Não lhe interessava acumular notas e valores financeiros, mas tão somente notas e valores pantaneiros.

Seu programa pessoal de austeridade incluía não ter mais que o necessário para andar, vestir, alimentar, manter a casa, trabalhar e passear. Viver era sua maior recuperação social e econômica, com os amigos, com os seus bichos, com a natureza. Especialmente com o amigo que pouco falava, mas encantava pássaros.

Ao contrário da austeridade da Sra. Lagarde, da turma do FMI, dos senhores do BCE e da União Europeia, além do recém eleito Macri. Todos eles não leram Manoel de Barros, mas se enlamearam no barreiro que fizeram nos países aos quais recomendaram ou aplicaram a austeridade financeira.

Estudo da Universidade Católica da Argentina mostrou que, com a chegada de Macri ao poder, a pobreza no país deu um salto de 29% de dezembro do ano passado para 34,5% agora em março. Cerca de 1,4 milhão de argentinos foram responsáveis pelo aumento dos pontos percentuais da pobreza.

O aumento da pobreza veio pela desvalorização da moeda argentina em 30%, além da inflação resultante do corte de subsídios e do aumento do gás em torno de 300% e da tarifa de água perto de 375%. Nesse pacote de austeridade entra também o aumento da tarifa de ônibus e do preço final da gasolina.

A austeridade de Manoel de Barros era para si próprio, mas no sentido de viver bem e melhor com pouco, já a austeridade de Macri e demais integrantes do 1% é a de retirar dos outros, dando-lhes inflação e desemprego. 

Há que se ensinar o poder do remediado, mas afluente de vida, Manoel de Barros, desde o jardim da infância para derrubar a visão hegemônica do austericídio dos endinheirados, mas miseráveis de vida.


Créditos da foto: reprodução

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