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Pedro Paulo Zahluth Bastos e Luiz Gonzaga Belluzzo:
Crises econômicas evidenciam reducionismo de modelos teóricos
Em novembro de 2008, a rainha Elizabeth 2ª ousou fazer a pergunta que os sábios da London School of Economics não queriam ouvir: por que nenhum previu a crise financeira de 2008? A pergunta perturbava a ortodoxia neoclássica, e a comissão formada ofereceu à rainha uma resposta singela: houve uma falha coletiva de "imaginação" de economistas que viam árvores, mas não a floresta.
Mais singela foi a resposta do presidente do Banco Central dos EUA entre 1987 e 2006, Alan Greenspan. Em depoimento à comissão do Senado para investigar a crise, Greenspan admitiu que havia uma falha na "ideologia" e no "modelo" que usava para interpretar o mundo. Nada mal para quem se dedicara por anos à desmontagem dos controles à livre movimentação financeira alegando que os "agentes racionais" do mercado usavam os modelos econômicos corretos e asseguravam o melhor equilíbrio possível na determinação dos preços e na alocação dos recursos.
Não faltou imaginação à resposta do patrono da revolução neoclássica desde os anos 1970, Robert Lucas. Embora há anos defendesse que, se os agentes fossem racionais, usariam as teorias dele (Lucas) para entender a estrutura da economia e prever o futuro da melhor maneira possível, o patrono das expectativas racionais; escreveu em artigo na revista "The Economist" em 2009: "A crise não foi prevista porque a teoria econômica prevê que estes eventos não podem ser previstos". Ou seja, por axioma (ou ideologia), os indivíduos são racionais, suas interações nos mercados são eficientes e, portanto, a crise que aconteceu não poderia ser prevista.
O argumento que a probabilidade do que ocorreu, como calculou o Goldman Sachs, era igual a de ganhar 22 vezes seguidas na loteria cobria de retórica cientificista o fracasso em prever, ao menos, o movimento do sistema no sentido da instabilidade e da crise. Não era por falta de experiência histórica: desde 1980, a desregulamentação financeira avançou e, com ela, a frequência e a intensidade de crises que supostamente ocorreriam apenas três vezes na vida do universo.
A cada crise, os economistas neoclássicos não jogaram fora modelos teóricos sobre os quais construíram tanto reputação acadêmica quanto laços rentáveis, bem documentados, com instituições financeiras e "think tanks" neoliberais. Eles simplesmente culparam alguns "desvios" da realidade em relação ao modelo (desvios esses, aliás, "descobertos" ex-post). O inferno é a realidade, não o modelo simplório.
Pior para os economistas neoclássicos é que, além das personagens simpáticas do filme "A Grande Aposta", não foram poucos os economistas heterodoxos que previram a crise financeira, embora nenhum super-homem o tenha feito com o nível de exatidão do agente representativo que povoa os modelos neoclássicos de equilíbrio geral. O que explica o fracasso da ortodoxia em ver a floresta?
O principal elemento definidor da ortodoxia neoclássica é o axioma de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade, que interagem em livre concorrência para alcançar um equilíbrio estável na circulação de bens e serviços. Embora este indivíduo seja um axioma teórico não observado na realidade, é com base na suposição de sua existência que os "desvios" observados na realidade podem atrasar o equilíbrio geral ou gerar equilíbrios sub-ótimos: não há imperfeição na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo teórico.
A metafísica e a epistemologia da corrente dominante ocultam uma ontologia do econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da "economia de mercado". Para este paradigma, a "sociedade" onde se desenvolve a ação econômica é constituída pela mera agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários ou estruturados pela sociedade.
Essa visão se inspirou no paradigma da física clássica. Explicamos melhor este ponto com a ajuda de Roy Bhaskar: se a concepção é atomística, então todas as causas devem ser extrínsecas. E se os sistemas não dispõem de uma estrutura intrínseca (isto é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos que os compõem), toda ação deve se desenvolver pelo contato. Os indivíduos "atomizados" não são afetados pela ação e, portanto, ela deve se resumir à comunicação das propriedades a eles atribuídas.
Assim, os indivíduos maximizadores são partículas que jamais alteram suas propriedades na interação com as outras partículas carregadas de "racionalidade". Os fundamentos da teoria econômica dominante definem coerentemente o mercado como um ambiente comunicativo cuja função é a de promover de modo mais eficiente possível a circulação da informação relevante.
Essa ontologia tem uma expressão metafísica e outra epistemológica. A metafísica reivindica o caráter passivo e inerte da matéria e a causação é vista como um processo linear e unidirecional, externo e inconsistente com a geração do novo, ou seja, com a emergência que caracteriza a dinâmica dos sistemas complexos.
Na versão epistemológica, reduto preferido do positivismo, os fenômenos são apresentados como qualidades simples e independentes, apreendidas através da experiência sensível. Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância regular de eventos, que se expressa sob a forma de leis naturais, depois de processada pelo sujeito do conhecimento capaz, então, de prever efeitos no futuro.
Curioso é que, inspirada na física clássica, a ortodoxia neoclássica parou no tempo e não acompanhou a teoria dos sistemas complexos (ou do caos). A teoria da complexidade foi anunciada no final do século 19 por Henri Poincaré ao estudar a formação das órbitas dos planetas no Sistema Solar, mas foi redescoberta pelo meteorologista e matemático Edward Lorenz em 1960.
Lorenz descobriu que, com variações mínimas das condições iniciais (nunca capturadas precisamente pelos modelos), o tempo evoluiria de modo a tornar qualquer previsão inicial de pouco valor. Os erros e incertezas interagem, se multiplicam e formam processos cumulativos. A complexidade do sistema exigiria, mais do que uma previsão exata a partir de supostos iniciais irreais, que se proceda com base em um escrutínio profundo das condições iniciais e do modo como a estrutura do sistema vai se modificando, chegando por aproximações sucessivas aos cenários possíveis da evolução a partir de um arco inicial de trajetórias potenciais.
A irreversibilidade do tempo histórico e a dependência do sistema em relação à sua trajetória são elementos centrais da física do século 20. Em "Entre le Temps et l'Eternité" (entre o tempo e a eternidade), Ilya Prigogine e Isabelle Stengers mostram que as fenomenologias descritas pela termodinâmica, pela física das partículas e pela teoria da relatividade "não só afirmam a seta do tempo, mas também nos conduzem a compreender um mundo em evolução, um mundo onde a 'emergência do novo' reveste um significado irreversível (...) O ideal da razão suficiente supunha a possibilidade de definir a causa e o efeito, entre os quais uma lei de evolução estabeleceria uma equivalência reversível".
Ao manter o paradigma atomista, a ortodoxia neoclássica perde capacidade de explicar e, portanto, prever comportamentos emergentes de um sistema complexo como a economia capitalista. Em "Decoding Complexity" (decodificando a complexidade), James Glattfelder escreve com rigor: "A característica dos sistemas complexos é que o todo exibe propriedades que não podem ser deduzidas das partes individuais. Em suma, a teoria da complexidade trata de investigar como o comportamento macro decorre da interação entre os elementos do sistema".
Ao encontrar problemas de agregação insolúveis na tentativa de reduzir propriedades do sistema a propriedades dos indivíduos, a macroeconomia neoclássica reage não para incorporar a complexidade da realidade, mas para simplificar axiomas fundamentais ainda mais. Quando se demonstrou matematicamente que, dada a heterogeneidade dos indivíduos, não é possível prever o formato da função de demanda agregada e, muito menos, gerar uma função de demanda agregada com o formato propício para o equilíbrio maximizador, os neoclássicos preferiram a simplificação absurda: que o sistema pode ser modelado como se tivesse um único agente representativo que compra, vende, trabalha, contrata, consome e poupa, empresta e toma emprestado, que tem um único modelo sobre como a realidade funciona e que conhece a distribuição de probabilidade de todas as contingências futuras.
Inconsistências de agregação semelhantes para a teoria do capital ou para a curva de oferta agregada foram simplesmente desconsideradas. O método não trata da abstração da complexidade para reter seus aspectos essenciais, mas da eliminação da complexidade para manter a ficção reducionista e simplória do equilíbrio entre indivíduos maximizadores.
JUÍZOS DE VALOR
Tamanho apego da teoria neoclássica ao reducionismo da física clássica e ao axioma do indivíduo atomizado é impregnado por juízos de valor. Herda a previsão feita por Adam Smith e radicalizada pelo modelo de equilíbrio geral que, mantidos livres em sua interação, os indivíduos alcançariam um equilíbrio estável e maximizador, orientados pelo sistema de preços para alocar recursos escassos.
O indivíduo maximizador é tomado como um elemento natural e eterno cujas preferências mudam exogenamente ao sistema de interações. As interações têm sempre o mesmo modelo e não são afetadas pela irreversibilidade da história e por mudanças estruturais que caracterizam a complexidade social.
Tal complexidade é o principal elemento unificador das heterodoxias econômicas. Ao invés de reduzir a ação a um indivíduo representativo, os indivíduos são classificados e posicionados em uma estrutura que os divide como sujeitos sociais cuja harmonia não pode ser pressuposta: trabalhadores e capitalistas, empresários, banqueiros e rentistas. A estrutura é assimétrica pois certos indivíduos controlam a riqueza, mas é mutável e interage com estratégias de organizações empresariais, classes e grupos sociais, Estados e sistemas econômicos nacionais que têm poder desigual e que não podem ser previstas.
Instituições e convenções sociais podem conferir uma estabilidade transitória ao sistema, mas processos de causação cumulativa (feedbacks positivos) o afastam do equilíbrio e geram uma dinâmica instável, sujeita à irreversibilidade histórica. Assim, problemas de coordenação em condições de incerteza impedem a maximização no uso dos recursos ociosos e podem até mesmo provocar crises duradouras.
Concordamos com Marc Lavoie de que são pelo menos sete as falácias de composição que, como propriedades emergentes do sistema capitalista, a ortodoxia não é capaz de compreender e prever. O paradoxo da poupança é o mais conhecido: se todos os agentes buscarem poupar ao mesmo tempo, a queda de suas receitas frustra seus objetivos e pode provocar falências e até crises financeiras.
A recente adesão neoclássica à doutrina da austeridade expansionista mostra que pouco se aprendeu com a complexidade da crise financeira. No Brasil, a ideia de que o aumento da poupança pública animaria o gasto privado e geraria crescimento da arrecadação tributária estava na base da expectativa de mercado que a economia cresceria 0,8% em 2015, depois que Joaquim Levy anunciou seu programa. Já Levy previu que seu programa geraria uma "recessão de um trimestre", antes de persistir em um esforço fiscal que foi o dobro do que propusera, com resultados desastrosos.
Não há receita simples para o economista do século 21, mas Keynes propunha combinar os talentos complexos do "matemático, historiador, estadista e filósofo (na medida certa). Deve entender os aspectos simbólicos e falar com palavras correntes. Deve ser capaz de integrar o particular quando se refere ao geral e tocar o abstrato e o concreto com o mesmo voo do pensamento. Deve estudar o presente à luz do passado e tendo em vista o futuro. Nenhuma parte da natureza do homem deve ficar fora da sua análise. Deve ser simultaneamente desinteressado e pragmático: estar fora da realidade e ser incorruptível como um artista, estando embora, noutras ocasiões, tão perto da terra como um político".
Talvez seja uma receita para o economista do século 21, avessa aos que insistem em imitar os cientistas naturais dos séculos 17 a 19.
Luiz Carlos Bresser Pereira:
PEC 241, carga tributária e luta de classes inversa
Há várias maneiras de definir o neoliberalismo, mas talvez a maneira mais simples é dizer que é a ideologia da luta de classes ao inverso. No passado o comunismo foi a ideologia equivocada dos trabalhadores ou dos pobres contra os ricos; desde os anos 1980, no mundo, e desde os anos 1990, no Brasil, o neoliberalismo é a ideologia da luta dos ricos contra os pobres. Não de todos os ricos, porque entre eles há empresários produtivos, ao invés de meros rentistas e donos de empresas monopolistas, que ainda estão comprometidos com a nação – a associação de empresários produtivos e trabalhadores de cada país na competição com os demais países. Mas dos ricos rentistas que perderam qualquer compromisso com a ideia de nação e se sentem parte das “elites globais”.
A luta de classes neoliberal tem um objetivo geral: reduzir os salários diretos e indiretos dos trabalhadores. Os salários diretos através das reformas trabalhistas; os salários indiretos através da redução do tamanho do Estado ou a desmontagem do Estado Social através de reformas como a proposta a emenda constitucional PEC 241, que congela o gasto público exceto juros.
O objetivo dessa emenda não é o ajuste fiscal, que é necessário, mas a redução do tamanho do Estado, que nada tem de necessária. Ao contrário do que afirmam os economistas liberais, a carga tributária brasileira não tem crescido e não há uma crise fiscal estrutural: apenas uma crise fiscal conjuntural. Desde 2006 a carga tributária gira em torno de 33% do PIB. Seu grande crescimento ocorreu no governo Fernando Henrique Cardoso: ela cresceu de 26,1% em 1996 para 32,2% em 2002.
Carga Tributária do Brasil
Ano % do PIB
1996 26,14
2002 3 2,20
2006 33,31%
2008 33,53%
2010 32,44%
2012 32,70%
2014 32,42%
2015 32,66%
Fonte: Receita Federal (2015): “Carga Tributária no Brasil 2015” / Ministério do Planejamento (2015): “Evolução Recente da Carga Tributária Federal”.
Um capítulo impressionante dessa luta de classes de cima para baixo está hoje sendo travado no Brasil através da PEC 241, que visa a desmontagem do Estado Social brasileiro – ou seja, reduzir em termos per capita seus gastos com educação e saúde. Com o aumento da população e do PIB os recursos para esses dois fins necessariamente se reduzirão em termos percentuais do PIB e em termos per capita.
Hoje, um grande número de entidades de classe patronais postaram nos grandes jornais um manifesto a favor da PEC. Paradoxalmente, entre elas estão muitas entidades representando os empresários industriais, embora, entre 1990 e 2010, as empresas industriais tenham sido as maiores prejudicadas pela política econômica liberal-conservadora adotada nos governos FHC e Lula-Meirelles. E também pela política desenvolvimentista populista de Dilma (2011-14). Entendo a insatisfação dos empresários industriais – uma espécie em extinção no Brasil – com o governo Dilma, mas para mim sua incapacidade de criticar o rentismo e a financeirização globalista, que tomaram conta do governo Temer, é um sinal de sua profunda alienação em relação a seus interesses e aos interesses nacionais.
Joaquim Palhares:
Golpe acelera desmonte do pacto de 1988
Tirar o país do vermelho , como evoca o acicate da propaganda política golpista, difundida nos últimos dias, significa cinicamente entregar a nação ao mercado e ao arbítrio.
É disso que se trata e é isso o que está sendo feito , em abusada e fulminante avalanche regressiva nos dias que correm.
Em poucas semanas, regredimos décadas.
À renúncia ao impulso industrializante do pre-sal, implícita na revogação pela Câmara da presença regulatória, fiscalizadora e soberana da Petrobrás na exploração das reservas brasileiras, soma-se a partir desta segunda-feira a cavalgada para a violação da Carta Cidadã, no seu guarda-chuva de direitos sociais,através da PEC 241.
Do que se trata neste caso é de institucionalizar a essência do golpe de 31 de agosto e impor um arrocho social ao pais por 20 anos, tempo identico à duração da ditadura militar de 1964.
O que o golpe de 31 de agosto pretene é revogar a obrigatoriedade do Estado brasileiro em prover e universalizar direitos essenciais a uma cidadania digna desse nome: a escola de qualidade, a saúde pública eficiente, o amparo à velhice, aos inválidos e à viuvez pobre.
A nova matriz fiscal evocada pelos usurpadores e a opção das classes dominantes à tributação da riqueza e do rentismo.
Sobra assim corroer os recursos destinados ao cumprimento das obrigações constitucionais pactuadas após a derrubada da ditadura, nos anos 80.
A PEC 241 enjaula o orçamento social por duas décadas restringindo seus valores ao mero reajuste da variação de preços do exercício anterior.
Em um país com demografia híbrida, ainda jovem e com a velhice em expansão --os gastos com a Previdência crescem vegetativamente 4% ao ano-- esse encarceramento contábil significa um vioolenta processo de 'des-emancipação social' , como diria o filósofo italiano ,Domenico Losurdo, algo só cogitável em regime de exceção.
É isso que se assiste: um virulento antagonismo ao espírito constituinte de 1987, portanto, uma ruptura do pacto da sociedade sem consulta-la.
A palavra golpe é a que melhor esclarece esse assalto desfechado pela aliança da mídia com a escória parlamentar, o mercado e o judiciário, contra o governo da Presidenta Dilma Rousseff.
A essência 'des-emancipadora' da PEC que o regime se prepara para aprovar está condensada em uma das 'denúncias' da propaganda política fascistóide ('vamos tirar o país do vermelho') divulgada agora pelos meios de comunicação fartamente remunerados pelo respaldo ao golpismo.
Aspas: 'O gasto do Ministério da Educação subiu 285% acima da inflação entre 2004 e 2014'.
Repita-se: isso é alardeado como 'denúncia'. O regime 'denuncia' à sociedade brasileira o crescimento real do volume de recursos destinados à educação da infância e da juventude no ciclo de governos que o juiz festejado nos EUA e o procuador de power point querem denominar de 'quadrilha'.
Contra a 'gastança lulopetista' --insustentável sem taxação adicional da riqueza-- veio o golpe.
Por vinte anos forçará a devolução de tudo o que foi subtraído do circuito financeiro, desde 2004, com juros e correção monetária.
Essa é a aritmética de classe por trás da PEC 241 que a escória parlamentar do regime se prepara para aprovar de forma intempestiva e ilegítima. Assim como o foi a revogação a soberania brasileira no pre-sal, com o fim do regulador único representado pela Petrobrás.
Alguma surpresa que o foco do juiz Sergio Moro sejam o ex-presidente Lula -que implementou e expandiu o arcabouço social da Constiuição Cidadã-- e a Petrobras?
Os mercados aguardam sôfregos a lâmina da guilhotina descer sobre o pescoço da infância e da juventude, dos doentes do SUS e da velhice pobre, como salvaguarda fiadora dos juros a receber do Estado, ao longo de mais duas décadas de fastígio rentista.
A ilegitimidade do conjunto respalda a bandeira e a urgência da construção de uma frente ampla para a repactuação do desenvolvimento e da democracia brasileira.
Estamos falando de um mutirão democrático de salvação nacional.
De uma convergencia de agendas contra a lógica destrutiva que pretende fazer a sociedade regredir --em direitos e soberania-- a um patamar anterior à redemocratização.
O êxito dessa resistencia depende de uma intensificação do debate político para romper a inércia, rever erros, superar o sectarismo e aplainar arestas à construção de uma plataforma que una todas as forças democráticas e progressistas.
Inclua-se nesse mutirão a indignação dos liberais sinceros com o desmonte da Constituição que um liberal autêntico, Ulysses Guimarães, classificou como 'a lamparina dos desgraçados', no seu discurso de promulgação, há 28 anos, em 5 de outubro de 1988.
A ganância dos interesses reunidos em torno do golpe, bem como o sucesso do cerco midiático-repressivo contra as forças progressistas -- medido pelo resultado desastroso das urnas e pela abstenção recorde em 2 de outubro-- reafirmam a necessidade incontornável de uma mídia independente que dê respaldo analítico e informativo à convocação dessa vontade ampla de derrotar a usurpação no poder.
Nessa missão Carta Maior se associa aos demais blogs e sites progressistas de todo o país.
Para sustentá-la, porém, conta com a única parceria capaz de viabilizar sua existência: o discernimento do seu leitor diante da encruzilhada brasileira e o seu engajamento com a nossa proposta editorial.
Saul Leblon: Golpe quer apagar a luz dos desgraçados
Em cinco de outubro de 1988, a nação que vivia desacolhida dentro do próprio país conquistou um bote para remar seu anseio por pátria e cidadania.
Com as virtudes e defeitos sabidos, a Constituição Cidadã, promulgada há 28 anos, esticou o pontão dos direitos sociais --no que tange à lei-- ao ponto mais avançado permitido pela correlação de forças que sucedeu à ditadura.
Conduziu-a um impulso gigantesco de ondas políticas sobrepostas.
A resistência heroica à ditadura, em primeiro lugar.
Mas também os levantes operários surpreendentes registrados no ABC paulista, nos anos 70/80.
Metalúrgicos liderados então por uma nova geração de jovens sindicalistas, afrontaram a repressão e o arrocho, paralisaram fábricas, encheram estádios e igrejas, tomaram praças e ruas.
Irromperiam assim nacionalmente como a fonte nova da esperança, dotada de força e merecedora do consentimento amplo para falar pela sociedade, mas sobretudo pelas famílias assalariadas em defesa do pão e da liberdade.
Como uma onda oceânica de dimensões até então desconhecidas, o levante metalúrgico seria sucedido de um explosivo anseio por direitos, que levaria milhões às ruas na campanha política mais avassaladora da história nacional: as ‘Diretas Já!’, pelo fim da ditadura.
Trincou ali o mar glacial da desigualdade brasileira.
O degelo esticaria a fronteira da democracia na reordenação do país a cargo da Assembleia Constituinte de fevereiro de 1987.
‘Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora’, diria Ulysses Guimarães, vinte meses depois, na promulgação da carta .
‘Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados’, profetizou então o ‘senhor Diretas’.
A lamparina dos desgraçados bruxuleia agora na ameaçadora noite de ventania que acossa o Brasil dos golpistas de 2016, que pretendem viola-la por vinte anos naquilo que é a essência da sua identidade: ser o abrigo de direitos básicos essenciais e universais, como o direito à alimentação, a saúde, à escola, a oportunidades iguais na infância e à dignidade na velhice.
Quase três décadas depois de abertas as portas constitucionais dessa acolhida, o Brasil que vivia na soleira, do lado de fora do mercado e da cidadania – encontra-se de novo ameaçado de banimento.
São os ‘nossos árabes’, diria Chico Buarque de Holanda, em síntese premonitória, em 2004.
Vale a pena reler a sua entrevista pela assustadora atualidade de suas palavras.
O que fica claro na percepção aguçada do artista, então, é a natureza estrutural do ódio de classe hoje aguçado e disseminado, como se viu nas eleições municipais, por um combate seletivo à corrupção, determinado na verdade a cometer um politicídio contra o Partido dos Trabalhadores que emergiu nesse processo.
A verdade é que a opção pelo apartheid em detrimento da nação foi apenas superficialmente dissimulada no interregno recente de expansão do PIB.
Aquilo que latejou em banho maria dentro das caçarolas francesas, voltaria a borbulhar com violência, porém, ao primeiro sinal de aguçamento do conflito distributivo, agora caramelizado de indignação ética.
A percepção de Chico há 12 anos, no início do processo, evidencia que sempre fomos os mesmos.
O que se diz dos ‘nossos árabes’ agora é que já não cabem no orçamento.
Ou como prefere a dissimulação técnica da guerra social: ‘A Constituição de 1988 não cabe no equilíbrio fiscal’.
Coisas parecidas são ditas nesse momento por governantes e extremistas de uma Europa que não sabe o que fazer com seus próprios ‘árabes’ – mais de 20 milhões de desempregados criados pela austeridade neoliberal — vendo na chegada dos de fora, os refugiados, os migrantes, o risco de um desnudamento social explosivo.
O fato é que a Carta de 1988 sempre foi vista pela aduana das classes abastadas como um bote apinhado de gente perigosa.
Lei escrita na contramão do espírito da época, ela afrontaria a ascensão das reformas neoliberais em marcha, irradiadas de um triângulo sugestivo.
Dele faziam parte um golpe sangrento (Pinochet;1973); uma contrarreação ao poder sindical e trabalhista na sua principal trincheira (Thatcher; 1979) e um cowboy determinado a regenerar o poder do dólar no velho oeste do capitalismo (Reagan; 1981).
Quando Ulysses Guimarães proferia seu discurso histórico em 5 de outubro de 1988 enaltecendo a coragem constituinte de fazer do Brasil ‘o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade (social), com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios (da aposentadoria) para os que contribuam ou não...’, Tatcher reinava no antepenúltimo dos seus 11 anos dedicados a erigir uma referência de devastação dessa mesma matriz de direitos sociais civilizatórios.
O Chile havia perdido uma geração assassinada, presa ou exilada, pavimentando-se assim o estirão precursor daquilo que hoje se conhece pela senha de ‘reformas’.
Quando Ulysses encerrava sua saudação com o brado ‘Muda Brasil!’, Reagan percorria o penúltimo ano do seu segundo mandato.
Seria sucedido por Bill Clinton, o democrata amigo do PSB.
O marido de Hillary, a democrata que agora pleiteia a mesma cadeira na Casa Branca, cuidaria de arrematar a desregulação neoliberal do mercado financeiro –com as consequências integralmente contabilizadas 10 anos depois, na quebra do Lehman Brothers em 2008, que desencadeou o atual colapso da ordem neoliberal.
A Carta brasileira sempre foi vista pela elite e pelo dinheiro como a ovelha negra dessa supremacia mercadista ora esgotada
A pedra no meio do caminho enfrenta agora um acerto de contas com os que se mostram determinados a recuperar o tempo perdido para capacitar o Brasil a ingerir, de um só golpe, todo o repertório de reformas destinadas a suprimir direitos e acrescentar espoliação dos que vivem do próprio trabalho.
O que impulsiona o sopro conservador contra a ‘lamparina dos desgraçados’ nesse momento?
Um desses paradoxos da história: o enfraquecimento –que o juiz de Curitiba pretende transformar em aniquilamento-- do partido que assentiu com reservas a ela em 1988, mas que pelas linhas tortas da luta política tornar-se-ia seu principal guardião.
Entre outros motivos, o PT rejeitou o resultado Constituinte –embora assinando a Carta-- por considera-lo, como de fato era, paralisante do ponto de vista da reforma agrária, avesso à pluralidade sindical, elitista no que tange à redistribuição fiscal da riqueza e ao controle do sistema financeiro, ademais de preservar esporões da ditadura no sistema político e no aparato de segurança.
A anistia recíproca para vítimas e algozes do regime militar, o mais evidente destes acintes.
Mas não só.
A correlação de forças expressa na Assembleia de 1987, ademais, não permitiria ao país erigir uma Carta autoaplicativa em temas de relevância crucial para o futuro do desenvolvimento e da democracia social almejada.
Caso exclamativo dessa lista é o do artigo 220, parágrafo 5º, que veta o monopólio ou o oligopólio sobre os meios de comunicação, nunca regulamentado --nem no ciclo interrompido pelo golpe de 31 de agosto último.
Pouco mais de uma década de governos petistas abriria, porém, uma fresta de avanços no cumprimento de políticas sociais, na aplicação de direitos trabalhistas, no acesso ao crédito, à escola, à moradia, no direito à segurança alimentar, na recomposição do poder aquisitivo do salário mínimo, na soberania nacional, na defesa das riquezas nacionais –tudo como previsto no espírito da Constituição Cidadã.
Os ‘nossos árabes’ atravessaram a fronteira do mercado e bateram na porta da cidadania nesse estirão.
Até a eclosão do golpe, formavam 53% do mercado de massa e 46% da renda nacional.
O conjunto de certa forma soldou em um só destino a sorte deles, a da Carta e a do partido que dela divergiu, mas se tornou o escudeiro e por isso o alvo dos seu algozes.
Um dos elos mais importantes desse entrelaçamento foi o ganho real de quase 70% promovido nos últimos anos no poder de compra do salário mínimo.
Sua extensão plena aos aposentados do campo e aos beneficiados por idade, viuvez e invalidez é parte da chama cidadã que o golpe deseja erradicar agora.
Estamos falando de um contingente de 18 milhões de brasileiros. Multiplique-se isso por quatro dependentes: temos aí um universo de 70 milhões de pessoas.
Não é preciso validar integralmente o ciclo de governos iniciado em 2003 para admitir que essa obediência ao espírito de 1988 sacudiu placas tectônicas do apartheid social brasileiro.
Acrescente-se ao degelo, o alcance de outras políticas pertinentes à promoção da segurança social, caso do Bolsa Família, por exemplo.
O bote inflável passa a abarcar um contingente de pelo menos 60 milhões ‘dos nossos árabes’, diria Chico, a atravessar o limite do mercado interno.
No meio do caminho eclodiu uma crise mundial.
Com nitidez vertiginosa, avultaria o fato de que esse país em ponto de mutação não cabe mais no formato anterior de um mercado com infraestrutura, sistema tributário, fiscal e político planejados para 1/3 da população.
As tensões decorrentes desse processo ocupam agora o centro da crise política aguçada pelo golpe e do debate macroeconômico decorrente da crise que essa encruzilhada desencadeou
Mais que isso: orientam a luta de vida ou morte do conservadorismo contra a sigla que, involuntariamente, tornou-se a guardiã do espírito de 1988 no Brasil do século XXI.
A longa convalescença da crise mundial sistêmica não gerou forças de ruptura – ‘menos ainda no Brasil, preservado dela até 2013, às custas de ações contracíclicas cujo esgotamento esgotou também a coalizão e a governabilidade --favorecendo a virulência conservadora em curso.
A macroeconomia desse braço de ferro está assentada em contradições sabidas (integração mundial desintegradora ou inserção soberana via BRICs, ancorada em resgate industrializante com o pré-sal, associado a um controle de capitais que permita ao país ter câmbio competitivo, sem cair na servidão rentista dos juros siderais para evitar fugas recorrentes de dólares?)
Mas é sobretudo a ‘rigidez das despesas obrigatórias’ – receitas vinculadas a direitos sociais pela ‘lamparina dos desgraçados’-- que constitui o alvo central do cerco conservador nesse momento.
Expresso na PEC 241, o que se pretende é restringir o alcance dessas obrigações, corrigindo-as exclusivamente pela variação de preços do ano anterior durante duas décadas, o que significa um monstruoso horizonte de arrocho em termos reais.
Porém é mais do que uma rasteira datada o que está em jogo.
Trata-se, na realidade, de violar o coração da Carta de 88 que encerrava uma concepção solidária de sociedade para o futuro do país.
A expressão ‘des-emancipação social’, cunhada pelo filósofo italiano Domenico Losurdo, expressa a brutalidade e a abrangência do galope posto na rua pelo golpismo, com a cumplicidade vergonhosa das esporas liberais (leia http://cartamaior.com.br/?/Editorial/O-silencio-dos-liberais-raizes-da-vergonha-brasileira/36887)
A Constituinte de 1987 não reconheceu nos mercados a autossuficiência capaz de destinar os frutos do desenvolvimento à construção da cidadania plena, ainda indisponível à ampla maioria da sociedade.
Destinou assim ao Estado e às políticas públicas um papel indutor constitucional do desenvolvimento econômico e social.
O mantra do equilíbrio intrínseco aos livres mercados pretende agora promover o desmanche dessa diretriz, lancetando da Carta o compromisso do Estado de assegurar a universalização de direitos sociais básicos ao conjunto da população.
A PEC 241 é a ponte para a mutação futura desses direitos em serviços, vendidos pelo mercado.
É o que de forma abusada dizem os próprios golpistas e seus vulgarizadores na mídia.
O padrão de Estado Social ‘com direitos europeus’, segundo eles, é incompatível com a expansão capitalista no Brasil.
‘Encarece o custo do investimento privado’, afirmam.
‘Gastos obrigatórios rebaixam a poupança do setor público’, fuzilam.
‘O conjunto move a engrenagem do desequilíbrio fiscal e pressiona a taxa de juro, impedindo o desejado ciclo de investimento sustentável’, arrematam.
Parece sensato, desde que se exclua da equação a variável da justiça fiscal.
A verdade é que a equação martelada hoje pelo conservadorismo está deliberadamente mal posta.
A escolha entre arrocho ou desordem fiscal não é a única possível.
A repactuação do desenvolvimento brasileiro, de fato, só é viável se for contemplada a alternativa inclusiva.
Aquela em que a insuficiência fiscal é atenuada por um avanço de justiça tributária, com taxação da riqueza financeira, alíquotas progressivas (no governo Jango, por exemplo, a alíquota máxima era de 60%) , revogação das isenções para rentistas e de privilégios para os acionistas.
A tensão política travestida em impasse fiscal atingiu seu nível máximo, no impulso de impasses econômicos e contradições políticas que já não cabiam nos limites da institucionalidade disponível.
O golpe foi a resposta das elites e da plutocracia, com o apoio nada desprezível da mídia, das togas, da escória parlamentar e da República de Curitiba.
Inclui o desmonte da Carta de 1988 e o aniquilamento do PT. Ou vice -versa , já que os dois destinos se entrelaçaram.
Do ponto de vista progressista, o passo seguinte do processo iniciado em 1988 requer uma árdua repactuação de forças que viabilize um retomada de crescimento associado a um salto qualitativo na inclusão dos ‘nossos árabes’.
Não é tarefa para um partido, mas para uma gigantesca frente ampla dos interesses contrariados pela centralidade argentária fortemente excludente do golpe.
Implementa-la não é uma tarefa retórico. O verdadeiro desafio hoje é fazer de cada luta econômica, de cada bandeira política, de cada palanque eleitoral, de cada trincheira cultural uma oficina de construção da frente ampla.
Depois de navegarem da pobreza para o mercado, as forças sociais banidas pelo golpe terão que assumir o leme do próprio destino na vida nacional. Caso contrário, o risco de morrerem na praia será imenso.
(*) Esse texto atualiza informações publicadas em CM em 05/10/2015
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