terça-feira, 1 de novembro de 2016

A alienação das esquerdas, por Maria Fernanda Arruda

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A alienação das esquerdas

Por Maria Fernanda Arruda


É terrível – como às vezes se observa na esquerda depois de uma derrota – desprezar eleitores pobres ou trata-los como manipuláveis ou ignorantes se eles não votam da forma esperada. Essa mentalidade apenas exacerba a divisão e torna o sucesso ainda mais difícil. Se um partido falha em atrair os eleitores que ele pensa que deveria atingir, parte da culpa pode ser atribuída a uma mídia injusta e parcial, ou a táticas sujas dos oponentes, ou a condições econômicas além do controle. Mas apenas parte. É preciso que se faça, antes de mais nada, o exercício da modéstia, que permita a autocrítica.

O grande fracasso do PSOL em seu reduto político frente a um candidato fraco, radical e sectário não se deu por conta de candidatos inferiores. Muito pelo contrário. Freixo é um político dedicado, talentoso e perspicaz, com um longo e inspirador histórico às causas sociais. A feminista escolhida para ser sua vice, Luciana Boiteux, é uma advogada e professora de direito inteligente e sofisticada que melhorou como oradora e liderança política durante a curta campanha. O problema enfrentado pelo PSOL é estrutural, institucional e cultural: como expandir-se além de sua base eleitoral dedicada, porém limitada, composta primordialmente por intelectuais bem educados, com estabilidade financeira e, em sua maioria, brancos da Zona Sul, e pelos jovens? Então? Como o PSOL convenceria pobres, trabalhadores e moradores de favelas, de que suas condições de vidas seriam melhoradas por um governo de esquerda, e como convencê-los de que os líderes do partido compreendem isso e, portanto, podem lidar com os problemas graves e sistêmicos que enfrentam?

Freixo perdeu esmagadoramente na Zona Oeste. Eleitores da classe trabalhadora e residentes de favelas fora da Zona Sul simplesmente deram as costas para a esquerda. Em outras palavras, os próprios eleitores a quem o programa político do PSOL tenta atender são aqueles que se sentem mais distantes do partido – e são muitas vezes hostis a ele. O que interessa a esses eleitores? Segurança de emprego, segurança no seu bairro, assistência médica confiável, escola. Não se incluem entre as suas preocupações: legalização do aborto, descriminalização das drogas, defesa da Petrobrás.

Um partido não tem o apoio de segmentos mais pobres da população e de minorias, a menos que esses grupos se vejam representados na liderança e nas candidaturas do partido. O PSOL avançou nesse sentido: um de seus mais renomados deputados, Jean Wyllys, foi criado em condições de extrema pobreza, e dois de seus novos vereadores: Marielle Franco, quinta vereadora mais votada, e David Miranda. Mas é muito pouco, ainda que aponte para uma boa direção, numa estrada onde o PT vai caminhando na contramão. Há no Brasil um imenso vazio, que separa o mundo erudito do mundo popular. São duas culturas que se afastam cada vez mais, na mesma medida em que segmentos sempre maiores da população são marginalizados nas periferias das grandes cidades, submetidos a um processo de empobrecimento alimentado por formas de cultura massificadora. A cultura erudita tornou-se cada vez mais a cultura das minorias privilegiadas. A grande massa dos brasileiros, formada de analfabetos e analfabetos funcionais, é portadora de uma cultura que se transmite oralmente, mas que é aquela definidora de suas formas de sentir, pensar e agir, expressando-se na sua culinária, nas festas, na linguagem, criando ritos de passagem, dando dimensão prática e utilitária à religião. Os políticos e os partidos políticos pertencem ao mundo erudito. Onde estará a ponte que permitirá a comunicação entre as duas margens? Essa ponte ainda existe?

Lula foi capaz de criar e transformar o PT em uma grande força política de esquerda porque a base de apoio do partido era composta pela classe pobre e trabalhadora, e a partir daí seu apelo se estendeu a outros grupos. Isso foi possível porque as lideranças do partido, começando pelo próprio Lula, foram capazes de entender instintivamente seus eleitores e tinham credibilidade para dialogar com eles porque pertenciam a esses grupos. Não foi necessário inventar estratégias de comunicação ou teorias abstratas sobre como conquistar essa parcela do eleitorado; a liderança e os candidatos do PT cresceram nas comunidades que serviram de base eleitoral do partido. Em resumo, o PT nasceu com o Lula metalúrgico, falando como metalúrgico, vestindo-se como metalúrgico, pensando como metalúrgico. Lula foi um metalúrgico do ABC paulista. Freixo não foi um metalúrgico.

E o pentecostalismo fala a língua dos oprimidos, dos marginalizados. Os seus pastores e bispos são preparados para isso. Falam as palavras que o povo quer ouvir, quando quer, onde quer. Não se trata, por certo, de copiá-los, mas de examiná-los, descobrindo-se o que? como? quando? onde conseguem ser ouvidos? Crivella é o filho preferido de Edir Macedo, aquele que impõem respeito com o tamanho e o mau-gosto descomunais de um Templo de Salomão. Não se trata, por acaso, de uma adoração do bezerro-de-ouro? Moisés puniu a heresia com a morte de centenas deles, isso é o que nos conta a Bíblia. Certamente, não é esse o caminho nos nossos tempos. Mas é preciso atravessar o mar que hoje nos separa do povo brasileiro.

E sobre o artigo de Glenn Greenwald: "Comentamos sobre o mesmo tema, mas sob a minha perspectiva e abordando pontos que não estavam sendo considerados. Não há nada que desmereça o que está no artigo do Grennwald, muito menos o seu autor. Mas, confirma em termos a tese: as esquerdas não unem, lutam entre si. Enfim: ideias e constatações não são privilégios de ninguém e nem são patenteáveis”.

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