domingo, 22 de novembro de 2020

A Ciência a serviço da eugenia, a eugenia a serviço da barbárie

Na guerra de extermínio contra os herero, na Namíbia, os alemães cortavam cabeças, enviadas a Berlim para "provar" a inferioridade dos negros. Era a base da pseudociência da "craniometria".
A Ciência a serviço da eugenia, a eugenia a serviço da barbárie

por B. Boris Vargaftig

A genética, disciplina biológica e médica, tem fortes incidências culturais, sociais e políticas e se aperfeiçoou enormemente nas últimas décadas.

Foram descobertos mecanismos sutis e introduzidos conceitos que alteraram nosso conhecimento da vida, de suas origens, de seus mecanismos de avanço ou recuo — tudo isso tem consequências enormes, médicas e sanitárias em primeiro, e em seguida sociais, culturais e políticas.

Uma destas consequências, que associa conhecimento científico e sua deturpação pela barbárie, foi o desenvolvimento da teoria e da prática do eugenismo.

Este se baseia em uma interpretação reacionária do conhecimento científico, o mesmo que, em circunstâncias opostas, cria mecanismos que, se distribuídos universalmente, promoveriam o combate à doença e à morte.

Como toda teoria global, inclusive em biologia, as teorias genéticas têm portanto um componente ideológico, político.

Isto ocorre com o darwinismo, desde seus inícios. A ideia liberal-conservadora é que, na sociedade humana, os mais aptos e providos de uma genética “favorável” ganham a luta pela vida, enquanto os menos aptos são derrotados e permanecem na classe média baixa ou no proletariado.

Este é o “darwinismo social”, o extravasamento ao capitalismo dos conceitos de seleção do mais apto à vida, que prevalecem na natureza.

De forma geral, os ricos merecem portanto serem ricos porque venceram a competição com os pobres e todas medidas, reformistas ou, pior ainda, socialistas, vão contra a lógica social.

Voltarei a esta discussão, presente no liberalismo em voga hoje nas classes dominantes dos países capitalistas, inclusive na burguesia brasileira e não somente na sua fração bolsonarista.

Recordemos fatos e conceitos.

A publicação em 1871 por Darwin do livro “Origem das espécies” inaugurou a biologia moderna.

O reconhecimento da importância da “luta pela vida” (expressão abusiva, mas que se instalou) na natureza, permitiu que se desenvolvesse o “darwinismo social”, projeção à espécie humana dos conceitos de luta pela vida na natureza.

Thomas Malthus havia proposto que existe uma tendência natural ao crescimento geométrico das populações humanas, mas somente um crescimento aritmético dos recursos, notadamente agrícolas.

Diga-se de passagem que este conceito estático ignorava as potencialidades das ciências agrícolas, que corrigiriam, como corrigiram, a curva do crescimento aritmético, parte essencial da teorização malthusiana.

Foi assim proposto um princípio genérico, aplicável à espécie humana, da “luta pela vida”, que não somente atribui uma base natural ao capitalismo e à exploração dos socialmente mais fracos, mas cria uma interpretação do mundo oposta ao reconhecimento da luta de classes, universalizando e perenizando o capitalismo.

Uma das invenções precoces dos “darwinistas sociais” foi a Eugenia, termo criado por Francis Dalton em 1883, pouco mais de 10 anos após a publicação da “Origem das Espécies” de Darwin, de quem aliás era primo.

Há inúmeras definições da eugenia — eu-genia, bem nascido, no original grego.

Sua intenção explícita consistia em um movimento pelo “aprimoramento” da “raça” humana, ou seja, a preservação da “pureza” de determinados grupos.

Trata-se, segundo seus seguidores, de assegurar a constante melhoria da composição hereditária do homem através da preservação da pureza de certos grupos, em geral brancos, em oposição a negros, asiáticos, povos originários, judeus — em regra geral minoritários explorados.

Mais especificamente, a seleção social de indivíduos supostamente inadequados constitui o racismo genético.

Em nome da eugenia, os nazistas esterilizaram à força milhares de deficientes, inclusive crianças, chegando a 1% da população da Alemanha de então.

Os genes constituem a base material da genética moderna.

Trata-se de estruturas materiais localizadas quase sempre nos cromossomas e que determinam e controlam o desenvolvimento e a fisiologia.

São estruturas materiais, acessíveis ao estudo, situados em longos filamentos retorcidos localizados nos núcleos das células e também em sítios inicialmente inesperados, extra-nucleares.

São formados por uma série de quatro nucleotídeos, situados no espaço como as pérolas num colar e alojados nos cromossomas.

A ordem destes nucleotídeos constitui o suporte material da mensagem para a síntese de proteínas e ulterior diferenciação dos órgãos (o conjunto das propriedades dos organismos vivos é designado pelo termo fenótipo).

O código genético é praticamente idêntico na árvore evolutiva, uma das provas da evolução biológica.

O cientista germano-americano Muller, utilizando moscas drosófilas irradiadas, mostrou a existência de mutações, que são alterações de estrutura ou do ordenamento dos genes, com consequências geralmente teratológicas e inviabilidade da prole.

As mutações naturais, por causas exógenas ou endógenas, em geral de origem desconhecida, constituem a base material das doenças hereditárias.

Enquanto o código genético não puder ser alterado seletivamente, ou seja, visando a correção de uma mutação identificada, as doenças genéticas poderão ser minoradas em sua sintomatologia, mas somente serão curadas com a intervenção no gene.

Esta aliás já ocorre em condições específicas, como a introdução de genes que asseguram a produção de vacinas, anticorpos contra microrganismos identificados.

Não faltam relatos e exemplos de pessoas de origem modesta que, pela sua dedicação ao estudo e aos negócios bem planejados, sobem a escada social; isto é empregado para construir um relato individualista e convencer os recalcitrantes que ganha quem é competente e perde, quem não o é.

O capitalismo fica assim escusado, a culpa é da genética supostamente desvalorizada do pobre, que passa por inferior.

Desde os meados do século 19, após a publicação do livro de Darwin “A Origem das Espécies”, seguidores têm assim construído teorias anti-igualitárias, que suprimem as influências do meio no seu sentido mais amplo (meio interno e meio externo), pretendendo que tudo é determinado pelo genes.

Isto tem hoje seu ponto culminante nas teses de Richard Dawkins, brilhante escritor que pretende que os genes são tudo e que a vida é baseada em sua persistência que assim quase teriam uma existência autônoma, mistura de bioquímica auto-reproduzida e de fantasia apocalíptica.

Coerente com sua posição filosófica e científica, Dawkins é de direita, apoiou a intervenção anglo-americana no Iraque.

Segundo Del Cont resumido por mim: “O ponto de partida de Galton para conceber uma teoria dos mecanismos da hereditariedade que substanciasse sua proposta de uma ciência do melhoramento da raça humana, foi a teoria da pangênese (teoria das gêmulas) de Charles Darwin”.

Continua Del Cont: “… as gêmulas seriam organelas produzidas ou expelidas pelas células que compõem os vários órgãos do corpo, que só possuiriam a informação restrita do órgão expedidor. Todas as características presentes em um organismo seriam transmitidas. Algumas características poderiam manifestar-se em momentos tardios, correspondendo à época de manifestação nos pais. Outras poderiam estar ligadas … a um ancestral, o que explicaria o aparecimento de formas antigas ou uma reversão às formas antigas. … assim alguns elementos se manifestavam e outros não, ficando dormentes – para reaparecerem em uma geração futura, com a possibilidade de mudanças … na vida de um indivíduo, …. por exposição ao meio, produzirem modificações; os órgãos modificados poderiam expelir gêmulas portadoras das novas características que seriam transmitidas para os descendentes.”

Existiria, segundo esta hipótese que considero extravagante, sem evidência alguma, uma forma de transmissão dos caracteres adquiridos.

De fato, “secreção” pelos órgãos de mensagens indefinidas, espécie de genes propulsados, ativos ou virtuais é uma construção imaginada, talvez habilidosa, que a biologia moderna exclui, substituindo-a por um conceito material, o gene, de estrutura química definida.

Em determinadas circunstâncias o gene pode ser transmitido e/ou ter sua ação modificada, o que relativiza e torna obsoleto o conceito de total separação entre soma e germe, referida acima.

O conceito de eugenia nasceu no primeiro país a desenvolver o capitalismo industrial, a Grã Bretanha, com a consequente formação de uma classe operária miserável, que os porta vozes das classes dominantes precisavam manter formalmente inferiorizada, o que os conceitos da eugenia comprovariam.

Sua aplicação prática não provém entretanto somente de países colonialistas europeus, mas dos Estados Unidos.

A influência da legislação racial americana, federal e dos diversos estados, é descrita no livro de James Q. Whitman, “Le modèle américain de Hitler”.

O livro chama a atenção dos que, horrorizados pelos crimes nazistas, classificaram seus autores como a-históricos, fora da história, algo que nunca se reproduziria, “a banalidade do mal”.

Os eventos dos séculos 20 e 21 contradizem este otimismo, pois a defesa do capitalismo justifica, aos olhos de seus mentores, a repetição das barbaridades.

Há muito a discorrer sobre as relações entre a biologia, a filosofia e a política.

Isto seguirá, e discutirei em breve uma das importantes consequências da apropriação pelos conservadores e pela extrema-direita, norte-americana e alemã (nazista), das noções pervertidas da biologia moderna através da eugenia.

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