terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Get back: volte para onde já estivemos, John

John Lennon (Foto: Reuters)

É preciso estar à altura desse fenômeno cultural

Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

A sensibilidade de uma era pode ser unificada - embora jamais seja uniforme. Os que se esquecem disso são essencialmente visionários, incuráveis românticos, dados à melancolia – uma qualidade indissociável do gênio, segundo Aristóteles.

John Winston Lennon, um herói da classe trabalhadora à sua própria moda, filho pródigo de uma fragmentada família de baixa classe média, pode ser qualificado como o unificador da sensibilidade de uma era - o "pandemônio com um sorriso largo no rosto" que foi a década de 60, segundo Tom Wolfe.

Pela primeira vez na história, um grupo de músicos pop – liderados por um Nijinsky de ambivalência, como era Lennon Lennon – metastizou-se em um fenômeno social que, simultaneamente, reverberava e influenciava o inconsciente coletivo do planeta.

Agora, estamos todos revivendo um instantâneo daqueles tempos - e em incontáveis casos, sendo apresentados a eles - com o The Beatles: Get Back, de Peter Jackson, o filme dentro do filme em três episódios, lançado pela Disney+, selecionado a partir de 57 horas de filmagem e 150 horas de áudios gravados em janeiro de 1969.

O enredo é simples e direto. Estamos assistindo ao Valhala pop de um trabalho em andamento: os Beatles "de costas para a parede" (Paul) tentando escrever novas canções para um LP inteiro e um concerto ao vivo, em tempo real, depois de inventar obras estonteantes como Sargeant Pepper’s e O Álbum Branco.

Talvez não valha a pena desconstruir por escrito o que de fato é um fluxo de consciência se desdobrando em uma máquina do tempo de cores deslumbrantes ao final de um arco-íris musical: o desenvolvimento do processo criativo artístico como uma sequência ilógica pontuada de iluminações (budistas).

A Beatlemania globalizada parece conhecer cada detalhe daquela desintegração em câmera lenta que já estava acontecendo em inícios de 1969 – desde George Harrison, sentado em cima de um álbum triplo de canções fantásticas, sendo constantemente deixado de lado pelo Leviatã Lennon-McCartney, até o papel provavelmente desagregador daquela mulher japonesa.

Afinal, o que realmente importa é a música - gloriosa. George construindo "Something" a partir do zero. Paul construindo "Get Back" a partir do nada (com George logo entrando para improvisar um fraseado meio funk e absolutamente espetacular). E a solução do suspense, apresentada no concerto ao vivo na cobertura do prédio da Apple (aqui vai ele na íntegra): uma icônica performance pop para todas as eras.

Permitam-me, então, fazer algo diferente. Vamos falar de John.
O sonho não acabou

Todos os baby-boomers carregam dentro de si uma lembrança dylanesca tipo blood-on-the-tracks: o dia em que JFK foi assassinado. As gerações que se seguiram aos primeiros boomers carregam uma outra lembrança: o dia em que John Lennon foi assassinado, que completa 41 anos na semana que vem, ocorrido dez anos depois o próprio Lennon ter decretado que o sonho dos Beatles havia acabado.

Mas, já aos 18 anos de idade, Lennon, de uma geração pré-boomer, nascido durante a Segunda Guerra, em 1940, carregava três cicatrizes sangrentas: as mortes de seu tio (a figura paterna), de sua mãe (ausente) e de seu ídolo (Buddy Holly). Lennon achou que, para proteger seu futuro equilíbrio emocional ele teria que construir uma barreira de irreverência, agressividade e sarcasmo.

Com a chegada da fama e da fortuna, ele passou da defensiva à ofensiva. Mas ele só atacava quem ele não respeitava. Ele não fazia segredo de seus sentimentos - nem de sua arte - exibindo seu coração à plena luz do dia, como um cavaleiro galante.

Lennon poderia ter sido um político, como JFK. Kennedy – Irlanda e Harvard, dinheiro e macheza – tinha uma visão apolínea do poder. Lennon – um garoto de rua de uma Liverpool decadente e tisnada de fuligem, um outsider até mesmo na escola de arte, aquele clássico e tão inglês receptáculo de desajustados, preferiu polir a visão dionisíaca das relações entre arte e poder.

Político e poeta, herói e pivete, doce e arrogante, Lennon não era nem o São Sebastião vendido ao mundo por Yoko durante sua última década neste vale de lágrimas nem o drogado demente retratado na biografia sensacionalista escrita por Albert Goldman.

Na tortuosa viagem de iniciação que o levou de roqueiro rebelde de jaqueta de couro a um respeitável homem de meia-idade - pai dedicado e absolutamente fiel a uma mulher madura - encontramos não apenas os dilemas enfrentados por pelo menos duas gerações, mas também as contradições inerentes à assombrosa influência do rock’n roll como forma de arte-comércio.

Os Beatles – a quintessência da encarnação do sonho anos 60 de uma utopia edênica – jamais poderiam envelhecer, porque a mágica da infância e uma incurável adesão ao princípio do prazer sempre estiveram no cerne de seu encanto.

Enquanto Bob Dylan ardia em cólera e os Stones, sempre tão calculistas, investiam em satanismo teatral, tudo o que se referia aos Beatles denotava exuberância e efervescência – o resultado prático da química Lennon-McCartney, tão evidente em muitos trechos de Get Back.

Lennon tinha ambições literárias e poéticas. Ao final, ele conferiu respeitabilidade cultural a um formato que até a década de 60 era considerado menor: a poesia pop. As letras de Lennon faziam uma espécie de contraponto ao novo jornalismo de Norman Mailer, Truman Capote e Tom Wolfe.

Tal como eles, Lennon notou que o romance não havia morrido nos anos 60. O que morreu foi a mística do romance, seu prestígio junto à crítica, seus leitores apaixonados e seu status como o caminho dourado para o sucesso nos Palácios da Cultura.

Sem evitar o incessante jogo entre individualidade e história, entre desejo e determinação social (afinal, ele havia escapado do tremendo determinismo de classe inglês), Lennon, em suas letras, tratou de problemas de identidade pessoal, de escolhas morais particulares e da extrema ambivalência de nossas afinidades eletivas.

Mesmo depois de ter apurado suas fábulas e alegorias – na era pós-Beatles dos anos 70 – ele continuou a enfatizar a qualidade perene dessas questões morais. Sua influência na poesia pop é incalculável.

Lennon, no papel, sempre brilhava ao se referir a seres humanos de carne e osso. Ele não era um T.S. Eliot, é claro, e sequer um Bob Dylan. Suas letras podiam ser tão simples que soavam como versos infantis absurdos (que ele escrevia muito bem).

Os cristais eram sempre descobertos quando ele entrava em modo semi-confessional: amores perdidos, reminiscências de dor, expiação de traumas pessoais, a busca de uma Terceira Via budista. Rubber Soul e Revolver são os álbuns dos Beatles nos quais a marca de Lennon é mais visível. Não é por acidente que são esses os que carregam uma carga emocional máxima. De forma muito semelhante ao pleno desabrochar pós-Beatles de George, em All Things Must Pass.
Lennon nunca aceitou a ostentação majestosa de vender a própria imagem de Líder, nem dos Beatles nem de uma geração ou de uma era. Em In Get Back, na maior parte do tempo, ele se apaga discretamente, para só explodir em vitalidade plena na laje do telhado.

Com uma fé existencialista na perpétua renovação da personalidade, Lennon usou de todos os instrumentos possíveis em sua busca de transcendência: gurus, drogas, grito primal, psicodrama político, apelos pacifistas – e até mesmo aquele show itinerante, uma espécie de performance ininterrupta, com Madame Ono. Depois de desaparecer dos holofotes para criar um filho, ele voltou com a mesma honestidade despojada, oferecendo a todos o sonho de um homem maduro.

Ele foi assassinado exatamente quando tentava sugerir possibilidades de inventar o mundo não-materialista que ele havia afirmado em Imagine. O inconsciente coletivo ocidental, em estado de choque, entendeu intuitivamente que havia sido privado de um diálogo estimulante de uma consciência consigo mesma, um diálogo humano - demasiadamente humano.

John Lennon tinha a capacidade de projetar seu próprio psicodrama na totalidade de seus contemporâneos. Ele, mais uma vez, com aquele irresistível sorriso captado em Get Back, continua vivo, não como mártir, mas sim como uma ideia flamejante, contribuindo para o auto-conhecimento de todos nós que vivemos nestes tempos turbulentos. Estamos todos voltando para onde já estivemos, John.

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