segunda-feira, 6 de junho de 2022

VIOLÊNCIA DE ESTADO - O fasci-racismo a partir do Rio de Janeiro

Policiamento na Vila Cruzeiro, Complexo da Penha (RJ), em 2014. (Créditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

por Lenin Pires
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Neste breve artigo eu exploro situações e dados sobre violência em uma sociedade que parece amalgamar seu contumaz racismo com um fascismo ascendente, em meio a um crescente armamento da população. Elementos inquietantes, que julgo merecer a devida atenção de todos nós, devido a eventuais implicações políticas.

Segunda-feira, dia 9 de maio de 2022. Do interior de seu carro o sargento-bombeiro Paulo César de Albuquerque pediu um sanduíche em um fastfood na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Após a compra ter sido registrada, informou ter um cupom de desconto. Contrariado por não obter o desconto, sequer aguardou que o pedido fosse anulado. Vídeos mostram o momento que ele adentrou a loja e disparou quatro tiros contra Matheus, um jovem negro de 21 anos. O rapaz perdeu um rim e parte do intestino, se tornando mais uma vítima por uso indiscriminado de armas de fogo, na região metropolitana do Rio. Pessoas cada vez mais se ferem ou morrem, seja em situações cotidianas, seja na escalada bélica com que se pratica a segurança pública.

Matheus, Durval e Hiago

Bombeiros não apagam fogo com armas, nem salvam vidas atirando nelas. Entretanto, desde 2003 são autorizados a portarem-nas, por serem militares. A partir de então, muitos passaram a trabalhar como seguranças privados ou a engrossar as fileiras das milícias que dominam amplas áreas no Rio. Por não se saber quando um profissional fardado pode ser vítima, ou não, da ação de criminosos, a arma parece fazer sentido. O bombeiro Paulo Cesar, porém, valeu-se de seu porte para dar vazão a um ideal de violência civil que, infelizmente, não se circunscreve apenas a este episódio. Outras situações chamam a atenção para a crescente associação entre banalidade no uso de armas e um certo senso de impunidade.

Na noite do dia 2 de fevereiro deste mesmo ano, Durval Teófilo Filho retornava para casa quando foi alvejado na porta do condomínio em que morava, em São Gonçalo. O sargento da Marinha Aurélio Bezerra deu-lhe quatro tiros. Alegou, mais tarde, que confundiu o homem com um assaltante. Negro, funcionário de um supermercado, Durval veio a falecer no hospital, deixando mulher e a filha de seis anos. Duas semanas depois, há pouco mais de 20 km dali, um outro jovem negro de 21 anos foi baleado em frente a estação das barcas de Niterói. Hiago de Oliveira Bastos faleceu do tiro disparado pelo sargento PM Carlos Arnaud Baldez Silva Júnior, após uma ligeira discussão, quando o policial desembarcava.

Os casos que sublinho acima são inquietantes, mas não foram os únicos envolvendo o uso de armas de fogo ocorridos neste ano, no Rio; seja por agentes públicos ou civis. Chamam a atenção pela futilidade das motivações. São testemunhos da banalidade com que a vida humana pode ser descartada, sobretudo àquelas pertencentes a negros. Pessoas simples agredidas e mortas por pessoas que aparentam ser igualmente simples. Estas últimas, porém, parecem se julgar impunes por serem parte ou estarem sob a proteção do Estado. Isso ocorre, a meu ver, em decorrência das dinâmicas violentas que parecem espiralar a partir das agências estatais.

Chacina permanente

Os contornos se tornam mais preocupantes quando episódios envolvendo autoritarismos, preconceitos, racismo e impunidade são extrapolados para as ações envolvendo instituições da chamada “segurança pública”. Particularmente, no controle dos territórios onde vivem pessoas com os mesmos perfis de Matheus, Durval e Hiago. Segundo dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), somente em 2022 ocorreram 16 chacinas decorrentes de operações policiais, resultando em 85 mortes, no Rio. Isto é, tem sido cada vez mais recorrentes que tais operações produzam, no mínimo, três homicídios. Somemos a estes dados a memória das operações policiais nos períodos anteriores, onde a cifra de mortos sempre esteve acima dos 1.100 nos últimos cinco anos. Ou recordemos situações como os fuzilamentos do músico Evaldo Barbosa e do catador Luciano Macedo, também na zona oeste, por soldados do Exército em 2019. Homens negros, armados ou indefesos, ceifados pela lógica bélica da política de segurança em curso.

Entrementes, o antropólogo Eduardo Rodrigues, pesquisador do LAESP/UFF, desenvolveu, durante dois anos, uma etnografia com jovens moradores das zonas norte e oeste do Rio que desejam ser policiais. Ele demonstra em sua tese de doutorado como, a partir da proximidade com policiais nos bairros em que vivem, se interessam em participar das dinâmicas repressivas que caracterizam o ofício das polícias. Demonstra, assim, que há uma socialização prévia que os fazem naturalizar a violência empregada contra outros jovens pretos e pardos, em determinados contextos. Querem entrar para as policias, mas nem todos conseguem. Assim, eventualmente, alguns desempenham atividades correlatas como seguranças privados, ordenanças de milícia ou, como assinala, em outros “esquemas”. Majoritariamente negros, estes buscam através do uso da força, oficial ou oficiosamente, se diferenciar daqueles outros com potencial de serem vítimas de tais arranjos. O acesso às armas e, se possível, à carteira funcional nas polícias é um brevê para voos autoritários, na mente da maioria. Muitas vezes, porém, vale apenas a proximidade para obter salvo-condutos para práticas arbitrárias, que pode incluir a eliminação de pessoas.

Matar parece ser um requisito para marcar pontos com pretensos superiores nas corporações policiais, construir reputações dentro e fora das mesmas e, eventualmente, auferir projeção política. Servem como testemunhos algumas trajetórias nos âmbitos executivo e legislativo nas esferas federal, estadual ou em municípios no estado do Rio de Janeiro. Wilson Witzel, por exemplo, foi eleito governador do estado pregando “atirar na cabecinha” de traficantes nas favelas. Afastado do poder, assiste Cláudio Castro, seu sucessor fazê-lo com mais efetividade, embora este não comemore publicamente. Entretanto, é notória sua desfaçatez de chamar as chacinas em curso de Plano de Redução da Letalidade Policial, em resposta a uma exigência do Supremo Tribunal Federal. Impulsionado pelos movimentos de favelas a mais alta corte do país tem buscado, através da ADPF 635, por freios aos massacres conduzidos pelas polícias do Rio nas periferias. Até aqui, sem sucesso. Entre outras coisas, por que a matança ganha sociedades como, por exemplo, da Polícia Rodoviária Federal. Esta última debutou com apetite no mórbido banquete onde são servidos corpos negros, participando de três chacinas. Entre elas a da Vila Cruzeiro, onde 23 pessoas perderam a vida. O atual presidente, claro, curtiu.

Um espetáculo mórbido em um país em transformação

A situação é insustentável. Torna-se cada vez mais difícil relatar para pessoas de outros países com tradição democrática o que se passa no Rio ou em outros lugares do Brasil. Episódios dantescos saltam para o noticiário como pipoca numa caçarola. Que o diga o emblemático episódio da câmara de gás improvisada em um camburão da PRF que asfixiou Genivaldo de Jesus Santos, homem negro e diagnosticado com esquizofrenia, no Ceará. O roteiro desse filme, tão conhecido, é fascista e tem a eliminação de pessoas negras como enredo principal.

Muitas mortes vêm ocorrendo e sequer registro adequado recebem. O Brasil apresentou no último ano a menor taxa de homicídio desde que os dados sobre violência e criminalidade passaram a ser contabilizados, em 1993. Poder-se-ia comemorar, ainda que os números de assassinatos registrados sejam superiores a 47 mil ao ano. Não obstante, analisar as dinâmicas por trás dos números pode ajudar a conter uma eventual euforia. Crescem os desaparecimentos, fazendo lembrar que muitos mortos sequer possuem identificação civil; geralmente, moradores de rua ou de favelas. Um outro fator, de especial interesse para o argumento deste artigo, é o aumento de mortes violentas por causas indeterminadas (MCVI). Os números publicados pelo Atlas da Violência 2021, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, compilou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM), a partir dos atestados de óbito. Ambos sistemas são do Ministério da Saúde, cujos dados registrados mais recentes são de 2019. Enquanto a taxa de homicídios na maioria dos estados brasileiros apresentou queda, entre 2018 e 2020, o número de mortes violentas em que não foi possível identificar a motivação cresceu 35,2% no mesmo período. Os maiores aumentos foram registrados no Rio de Janeiro (232%), no Acre (185%) e em Rondônia (178%). Essas mortes, segundo o estudo, podem ter sido provocadas por agressões, suicídios, assassinatos ou acidentes, mas acabam entrando nas estatísticas como indefinidas, puxando os registros de homicídios para baixo.

Por outro lado, o percentual de assassinatos entre jovens de 20 a 29 anos segue nas alturas. Observa-se que o percentual de assassinatos é maior entre jovens de 20 a 24 anos (52,3%), seguido pelo subgrupo de 25 a 29 anos (43,7%). Um massacre. Em 2018, pretos e pardos foram 75,7% das vítimas destes homicídios. Como estamos vendo, o que ocorreu com Matheus, Durval e Hiago parece responder a um padrão que atingiu centenas de outros pretos e pardos pelo Brasil afora e, principalmente, na região metropolitana do Rio. A dinâmica da violência sugere que na administração dos conflitos recorre-se a liquidação do oponente por motivo racial.

Armas para quem?

Para ampliar a problematização, quero chamar a atenção para o sugestivo crescimento da circulação de armas. Segundo o pesquisador Roberto Uchoa, em seu livro “Armas para quem?” – A busca por armas de fogo (2021, Editora Dialética), esse fenômeno teve início em 2017, ainda no governo Temer. Nele, uma portaria do exército brasileiro instituiu o chamado porte de trânsito, permitindo que participantes dos clubes de tiros pudessem transitar de sua casa até tais estabelecimentos portando armas carregadas. Ou seja, pronto para o uso. Foi o estopim, segundo ele, para um crescimento vertiginoso tanto de armas quanto de clubes. Atualmente, para adquirir armas uma pessoa pode, como antes, declarar que deseja se defender e registrá-la junto ao sistema da Policia Federal (Sinarm); ou pode informar seu interesse pela caça, por colecionar ou praticar tiro esportivo junto ao Exército (Sigma). Segundo Uchoa, nestes dois sistemas de controle há, aproximadamente, 2 milhões de armas registradas. Cifra que aumentou pelo menos 300%, em quatro anos. O crescimento se deve, sobretudo, aos decretos com que o presidente Bolsonaro tem desmantelado o Estatuto do Desarmamento fazendo, inclusive, com que armas de grosso calibre – como fuzis – sejam adquiridos por praticantes de tiro esportivo e colecionadores. Para onde vão tantas armas?

Recentemente a polícia civil de São Paulo identificou que armas aprendidas com criminosos do PCC haviam sido vendidas originalmente para este público, que as repassaram. Ou seja, as armas registradas já começam a servir a interesses diferentes daqueles declarados. Minhas pesquisas sobre os mercados informais, porém, me autorizam a inferir que há muitas mais que entram ilegalmente no país e se valem dos circuitos de distribuição formal. Estas tendem a ter cifras superiores àquelas oficialmente reconhecidas, como ocorre com muitas outras mercadorias com chances de circularem de maneira ilegal. Logo, não há controle sobre suas existências e suas posses. São menores, portanto, as possibilidades de se rastrear suas origens, bem como das munições nelas utilizadas. Caso sejam envolvidas em um homicídio, diminuem ainda mais as chances de elucidação do crime.

No assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, por exemplo, a autoria foi identificada a partir de outros meios, em virtude da comoção nacional e internacional do caso. Não é, contudo, o que ocorre com a maioria dos assassinatos. No Brasil, a taxa de elucidação de homicídios não é superior a 44%. No Rio de Janeiro, gira em torno de 14%. Há um risco, portanto, de que mortes sem motivação aparente, com chances de serem banalizadas pelo público, cresçam na mesma proporção da quantidade de armas que passaram a circular, permanecendo impunes.

Discursos de ódio e o fasci-racismo

É oportuno lembrar da morte de Marielle. Sabemos que a matou um assassino profissional, mas não sabemos a mando de quem. Não se tergiversa sobre sua natureza política, mas se desconversa quando se fala em crime de ódio, por tudo que ela representava: negra, mulher, LGBTQIA+, de esquerda e favelada. Enfim, a sociedade brasileira resiste a admitir para o flagrante contorno racial que envolvem as mortes de pretos e pardos, bem como outras formas de violência. Alguns podem dizer que isso ocorre há muito tempo. É verdade, em parte. Nos anos 1950, segundo o sociólogo Michel Misse, teve início a escalada da violência que observamos, sobretudo a policial. Contudo, e este é o meu ponto, é possível que neste momento, em torno destas mortes, se esteja erguendo um projeto que combina o racismo contumaz com o fascismo de ocasião. Considerando os elementos que sabemos da morte da vereadora, é bem provável que esta seja mais uma simbologia que possamos atribuir a ela.

Concluindo, os discursos de ódio perderam o acanhamento de outrora na medida em que encontraram nas redes sociais um canal para destilação de seu fel. Entretanto, há uma possibilidade de poderem se valer das práticas racistas institucionalizadas, que há décadas vitimam negros e negras, para levar adiante a construção de seu ideário de horror. Caso se verifique, estar-se-ia ampliando a mimetização, por civis, das práticas discursivas violentas de agentes do Estado em relação a esta população. Mais ou menos, e em sentido inverso, como fizeram os nazistas ao se apropriarem da naturalização dos pogroms contra judeus durante séculos e, sobretudo, nas décadas que antecederam o terceiro Reich. Alguns poderão dizer que eu exagero. Se assim for, é sinal que concordam que algo de substantivo há neste contexto sangrento onde crescem o acesso às armas, os motivos fúteis para sua utilização, o número de corpos negros atingidos e a naturalização de tais acontecimentos. Já será um indício que o incômodo tem potencial para ir além dos círculos intelectuais e democratas antirracistas. Oxalá seja um caminho para uma reação pública, com repercussão política para deter o descalabro que testemunhamos.


Lenin Pires é antropólogo, professor do Departameno de Segurança Pública da UFF e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (LAESP/UFF)

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