terça-feira, 18 de outubro de 2022

"Bolsonarismo" não é uma flor de um dia

Fontes: Revista Común [Imagem: Bolsonaro assina o livro de honra da exposição do Bicentenário da transferência da corte portuguesa para o Brasil. Créditos: José Cruz/Agência Brasil]

Por Juan Agulló
https://rebelion.org/

Neste artigo, o autor sustenta que o bolsonarismo é um fenômeno que existe no Brasil antes de Bolsonaro existir; na verdade, ele o faz emergir no descontentamento do ano de 2013. Assim, a partir de uma análise gramsciana, ele faz um diagnóstico do bolsonarismo.

Antonio Gramsci, falando de estratégia política há quase cem anos, sugeriu algo muito lógico: “Quando a força A luta contra a força B, pode acontecer que nem uma nem a outra vença, mas uma terceira força, C, intervém de fora, impondo si mesmo do outro, para A e para B”. Foi o que, mais ou menos, começou a acontecer há quatro anos no Brasil: a espiral de confronto entre a elite política do país sul-americano chegou a tais extremos (impeachment , prisão etc.) ninguém no mainstream esperava e ele ganhou a eleição presidencial: 46% dos votos no primeiro turno e 55% no segundo.

Embora algum outro floreio pudesse ser acrescentado à história básica, a verdade é que o Brasil, pelas mãos de Bolsonaro, foi empurrado para um cenário político sem precedentes desde a recuperação da democracia em 1985. A agressividade do recém-chegado, grosseiro e desafiante, estilhaçou muitos códigos: os 'especialistas do Brasil' passaram quatro anos tentando classificar o fenômeno em questão, fascismo, populismo ou extrema direita? (Andrade, 2021). A situação internacional parece ajudar: ultimamente os amigos de 'conversa direta' e 'soluções fáceis' (como Giorgia Meloni, Viktor Orban, Marine Le Pen ou Donald Trump) proliferaram em todo o mundo.

No entanto, se nos debruçarmos muito sobre as classificações, será difícil entendermos melhor as chaves do problema. Para cortar uma linha tênue, a primeira coisa que devemos distinguir é o protagonista da trama (Bolsonaro) do fenômeno que o cerca (vamos chamá-lo de 'Bolsonaro'). Bolsonaro é um líder carismático, politicamente incorreto, que —assumindo Gramsci— surgiu quando “nenhum grupo tinha a força necessária para prevalecer”: nem a centro-direita, que promoveu o impeachment pouco antes das Olimpíadas de 2016, nem a centro- direita. esquerda, que pretendia surfar a onda midiática que costumam provocar.

O bolsonarismo é (e isso deve ficar bem claro) um fenômeno que antecede sua própria liderança carismática. Há no Brasil, sem dúvida, um pano de fundo de mal-estar, semelhante ao que dá apoio popular, em seus países de origem, ao Meloni, Orban, Le Pen ou Trump. A visibilidade do que, retocado, acabaria por encarnar Bolsonaro no país sul-americano começou com protestos de cidadãos, em 2013, contra a falta de investimento em serviços públicos. No entanto, em um país tão desigual como o Brasil (148 de 159 no mundo) os níveis não devem ser confundidos: o desconforto costuma ser tão desigual quanto a renda.

De fato, o descontentamento em que fervilhava o bolsonarismo (que pegou de surpresa um oportunista desorientado e de centro-direita) estava associado às classes médias urbanas em um momento específico de desaceleração do crescimento econômico. É aí que se deve buscar a genealogia de um fenômeno político que, latente ou explícito, é mais sólido que seu carismático líder. O bolsonarismo vale-se de três fontes políticas renováveis: o Exército e as Forças de Segurança, baluarte clássico; o agronegócio, ator político incontornável e as igrejas evangélicas, que apesar de terem uma certa história, vivem um verdadeiro boom .

Cada uma dessas referências explica uma dimensão diferente do bolsonarismo como fenômeno político. O elemento militar liga-se, por exemplo, a uma ditadura politicamente mal curada que, no Brasil, certos setores continuam a associar não apenas aos anos de boom econômico e industrialização (não foi uma autocracia neoliberal, mas desenvolvimentista), mas o de uma certa ordem (o anticomunismo foi seu outro grande ingrediente). Acontece também que, num país/continente construído com base na imigração, os militares conseguiram permanecer simbolicamente associados à ideia de unidade/identidade nacional. E as forças de 'segurança', embora o paramilitarismo policial no Brasil merecesse um artigo à parte, ao de uma certa 'ordem pública'.

Depois, há o agronegócio que, no contexto de uma lenta mas progressiva desindustrialização, tornou-se, além de lobby, uma grande referência econômica. Atualmente representa quase um terço do PIB e graças às exportações (especialmente soja para a China) tem um enorme superávit comercial (Cooney, 2017). Su reputación social es, debido a ello, impecable: al ser visto como un sector que multiplica riqueza (incluso financiera: en la Bolsa de São Paulo) y que sigue haciendo del país una potencia exportadora, se le disculpan efectos secundarios 'incómodos' como a desflorestação.

As igrejas evangélicas fecham o círculo sociológico do bolsonarismo. Partem de uma 'Teologia da Prosperidade', que se opõe à da 'Libertação' e já conta com 42 milhões de fiéis. Os templos, em um Brasil carente de festas de massa, agem —retornando a Gramsci— como “organizações da sociedade civil que elaboram diretrizes políticas” baseadas na “forte convicção de que é necessária certa solução para problemas vitais”. Essa 'certa solução' é provavelmente, ao gosto de muitos, reacionária, mas fornece às pessoas humildes respostas concretas e coesão para o país (Oro e Semán, 2020).

Como resultado, o Bolsonaro é um fenômeno político cada vez mais estabelecido que transcende seu líder carismático e depende pouco dos partidos políticos tradicionais (o próprio Bolsonaro passou grande parte de seu mandato sem filiação partidária). Seu fluxo político floresce em um ambiente indulgente com a memória da ditadura (Oliveira e Kalil, 2021). Eso le permite ser receptivo con concepciones, militares y policiales, de un “orden público” que tiende a obviar la desigualdad ya situar su superación, como mucho, en una suerte de mito de la eterna creación, basado en una explotación intensiva y negligente de os recursos naturais.

Encontramo-nos, assim, diante de um tipo de ideologia adaptada ao neoextrativismo que, ao contrário do centro-direita, ignora -sem ser punido- questões "desagradáveis" como a injustiça social ou a degradação ambiental (McKenna, 2020). Também tem uma base territorial que literalmente a coloca no mapa: é forte onde o agronegócio e as igrejas evangélicas têm raízes. Ou seja, em um 'Brasil interior' muito diferente daquele do litoral (Rio de Janeiro, São Paulo etc.) que caracteriza a imagem do país que costuma existir no exterior, mas que também o distancia dos países típicos e dinâmica do Norte Global.

Isso, aliás, tornaria mais lógica uma comparação do bolsonarismo com experiências políticas do Sul Global como as de Narendra Modi na Índia; Recep Tayip Erdogan na Turquia ou Rodrigo Duterte nas Filipinas, do que com os de Meloni, Orban, Le Pen ou Trump. Aceitá-la poderia abrir, aliás, outro interessante debate 'classificatório': estaria a democracia no Brasil caminhando para o que a literatura anglófona chamaria de “regime híbrido”? (Levitsky e Way, 2010). Existem elementos para considerá-la: durante o governo de Bolsonaro, democraticamente eleito, 6.175 militares ocuparam altos cargos na Administração...

Um último elemento para reflexão: considerando casos como Javier Milei na Argentina, José Antonio Kast no Chile ou Rodolfo Hernández na Colômbia, Bolsonaro estaria anunciando uma transformação sociológica da direita latino-americana? Lembre-se, evocando Gramsci pela última vez, que a liderança carismática aparece quando as crises não encontram 'soluções orgânicas'. Talvez por isso, em um contexto histórico como o atual, valha a pena apostar em categorias de análise mais dúcteis que permitam captar melhor realidades dinâmicas como a brasileira. O bolsonarismo é um deles…

Referências

Andrade, D. (2021). “Populismo de cima e de baixo: o caminho para a regressão no Brasil” (338-364) em Ian Scoones et al . Populismo autoritário e o mundo rural. Routledge (503).

Cooney, P. (2017). “Caminhos Atuais de Desenvolvimento no Cone Sul: Desindustrialização e um retorno ao Modelo Agro-Exportador” em R. Westra, A Economia Política dos Mercados Emergentes. Variedades de BRICS na Era das Crises Globais e Austeridade. Routledge.

Gramsci, A. (2014: 1ª ed. 1974). Quaderni del carcere. Edizione critica dell'Istituto Gramsci (ao cura de Valentino GERRATANA). Einaudi.

Levistsky, S. e L. Way. (2010). Autoritarismo Competitivo: Regimes Híbridos Após a Guerra Fria . Cambridge University Press.

McKenna, E. (2020). « Impostos e dízimos: os fundamentos organizacionais do bolsonarismo ». Sociologia Internacional (35:6:610-631) .

Olveira, AA e S. Kalil. (2021). “ Ação Política do Partido Militar no Brasil sob Bolsonaro ” Anuário Latino-Americano de Ciência Política e Relações Internacionais.

Oro, AP e Semán, P. (2000). “Pentecostalismo nos Países do Cone Sul: Visão Geral e Perspectivas”. Sociologia Internacional (15:4:605-627).

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