terça-feira, 6 de junho de 2023

A "desglobalização" está a verificar-se?



Prabhat Patnaik [*]

Hoje em dia muitos economistas falam num processo de "desglobalização"; outros dizem que o regime neoliberal de outrora já não existe. É claro que nada permanece igual para sempre: como disse o filósofo grego Heráclito, "não se pode entrar duas vezes no mesmo rio". Portanto, é inevitável alguma mudança na ordem neoliberal com o passar do tempo. Mas a verdadeira questão é: será que o quadro analítico utilizado para a compreensão da realidade económica do mundo contemporâneo, tendo em vista alterá-la, se tornou obsoleto e necessita assim de uma revisão séria?

"Globalização", deve-se recordar, nunca significou que diferentes países do mundo se juntassem voluntariamente a fim de estabelecer uma ordem global que fosse mutuamente benéfica. Hoje, cerca de 50 países do mundo são alvo de "sanções" de vários tipos; são impedidos à força de aceder a bens essenciais – incluindo, em alguns casos, medicamentos que salvam vidas – do mercado global. E este número não era muito inferior há uma década, quando a "globalização" era universalmente reconhecida como estando em pleno andamento.

"Globalização", portanto, sempre significou algo muito diferente do que lhe é habitualmente atribuído. Significava o aparecimento de uma fase do capitalismo em que o capital, incluindo sobretudo a finança, se havia tornado globalizado pela abertura das economias ao seu movimento irrestrito. Ele havia, assim, contido a capacidade do Estado-nação para intervir de maneiras que a finança não aprovasse. E este capital globalizado beneficiara-se do apoio, nas suas operações globais acima de tudo dos Estados metropolitanos – e, por falta de outras opções, de outros Estados. Estes estados metropolitanos, nomeadamente os EUA, decidiam quais países deveriam ser coagidos, com os demais caindo em linha.

Desse modo, a "globalização" representou a reimposição da hegemonia imperialista ocidental sobre o mundo como um todo, excluindo os países socialistas, mas incluindo países que haviam sido descolonizados em meados do século XX e haviam adotado, ainda que promovendo o desenvolvimento capitalista, várias espécies de estratégias dirigistas. Por outras palavras, a globalização significava a rutura de qualquer autonomia relativa face ao imperialismo no terceiro mundo não socialista. Como complemento à mobilidade sem restrições do capital, a "globalização" significou também a circulação relativamente sem restrições de bens e serviços através das fronteiras dos países (exceto, claro, os países que enfrentavam "sanções").

O que aconteceu durante este período de "globalização" foi que surgiram novas potências económicas, pelas quais as potências imperialistas ocidentais se sentiram ameaçadas. Entre elas, a Rússia, que herdou a base de produção maciça construída pela União Soviética e que as potências ocidentais pensavam ter subjugado, até que houve uma reafirmação da sua força após a saída de Boris Ieltsin do poder; e a China, que, embora se relacionando com a "globalização" nos seus próprios termos e não nos ditados pelas potências ocidentais, registou taxas de crescimento rápidas devido, entre outros fatores, ao acesso ao mercado de que desfrutava no mundo capitalista metropolitano.

Atualmente, a Rússia ficou sujeita a "sanções" após a guerra na Ucrânia; e o comércio do mundo ocidental com a China diminuiu em certa medida, devido ao esforço político deliberado desta última para o reduzir. Este esforço, no caso dos EUA, foi motivado por vários fatores, desde a proteção do emprego interno (apesar de uma grande parte das importações da China pelos EUA ser produzida por investimento direto estrangeiro dos EUA) até um forte desejo de não ser demasiado dependente da China; no caso de outros países metropolitanos, existe o fator adicional da pressão dos EUA. No entanto, destes fatores, o desejo de não ficar demasiado dependente da China tem sido o mais decisivo.

A preocupação dos EUA com o rápido crescimento das importações da China começou na era de George Bush Jr., o qual tentou persuadir os chineses a valorizar a taxa de câmbio do yuan em relação ao dólar; continuou durante Obama, que penalizou as empresas americanas que deslocalizavam a produção para o estrangeiro. Mas foi Donald Trump que impôs tarifas para proteger a produção nacional contra as importações do estrangeiro. A China foi o principal alvo destas tarifas.

Dois exemplos sublinham a motivação predominantemente política por trás da redução do comércio ocidental com a China. A União Europeia propôs uma regra segundo a qual os painéis solares a utilizar para a descarbonização da Europa não deveriam ser importados de qualquer país que detenha mais de 65% da quota de mercado. Esta regra destina-se exclusivamente a excluir a China, a qual detém 85% do mercado devido ao preço extremamente baixo dos painéis que fornece. Em suma, a Europa está disposta a pagar um preço muito mais elevado pelos painéis solares apenas para manter a China de fora, o que é uma decisão motivada inteiramente por considerações geopolíticas.

Da mesma forma, a proibição da administração Biden às exportações de semicondutores para a China, imposta contra a vontade das empresas dentro dos próprios EUA, e que representa uma grande ameaça para as indústrias de alta tecnologia na China, incluindo a tecnologia militar e a inteligência artificial, é motivada exclusivamente por considerações geopolíticas: o puro desejo de manter a China económica e tecnologicamente incapacitada. Por outras palavras, embora não haja sanções explícitas contra a China neste momento, o que estamos a ver é uma imposição implícita de sanções, quer como preparação para um momento futuro em que haverá sanções explícitas, quer por puro desejo de paralisar a China.

Aquilo que é chamado de "desglobalização" refere-se, de facto, a toda esta nova tendência das potências ocidentais para discriminar a China, ao seu desejo de não se tornarem demasiado dependentes da China. O esforço consiste essencialmente em diversificar as relações comerciais afastando-se da China para outros países, mesmo que essa diversificação se revele mais dispendiosa. O recente declínio na magnitude do comércio dos EUA com a China é uma consequência disso. É como se a China estivesse a ser acrescentada à lista de países que estão sujeitos a sanções ocidentais.

Curiosamente, não se registou um declínio real dos parâmetros a nível macroeconómico, como o rácio entre o total das importações mundiais e o PIB mundial, que alguns economistas utilizaram como indicadores para medir a extensão da "globalização". O que eles descobriram através de tais medidas foi um abrandamento do progresso da "globalização", mas não a sua inversão.

No entanto, como mencionámos anteriormente, a "globalização", na nossa perceção, não se refere tanto ao fenómeno de os países se tornarem mais dependentes uns dos outros; refere-se essencialmente a uma relação de poder. Este poder é exercido tanto através das "sanções" impostas contra países específicos como através da atração de países para o vórtice da "globalização". O exercício deste poder é a marca do imperialismo. As "sanções" são tanto um sintoma da crueldade do imperialismo como a "globalização", que implica a hegemonia do capital globalizado. Por outras palavras, a chamada "desglobalização" não é uma negação da "globalização", mas um complemento desta.

O capital globalizado provém esmagadoramente das metrópoles e está enredado no funcionamento dos Estados metropolitanos. A hegemonia do capital globalizado é, portanto, ipso facto, a hegemonia dos Estados metropolitanos, exercida sobre os povos do mundo e especialmente sobre os povos do terceiro mundo. A "globalização", a qual pode ter o apoio da grande burguesia do terceiro mundo e mesmo dos segmentos superiores dos assalariados e das classes profissionais, implica necessariamente a supressão dos trabalhadores, camponeses e pequenos produtores do terceiro mundo.

A praxis para superar o seu cativeiro não é diferente hoje do que era há uma década. Qualquer melhoria da condição do povo trabalhador exige a intervenção do Estado. Para isto, o Estado tem de dispor de espaço para intervir sem se deixar prender pelo medo da fuga de capitais. Mas enquanto o país continuar preso no vórtice dos fluxos de capitais sem restrições, o Estado não pode adquirir essa margem de manobra. O controlo dos fluxos de capitais torna-se, portanto, necessário para qualquer intervenção progressiva do Estado.

Dito de modo diferente, uma melhoria da condição material do povo exige não só uma mudança na natureza do Estado, nomeadamente, que este se baseie no apoio dos trabalhadores e dos camponeses, mas também que se desligue do universo dos fluxos de capital sem restrições. O apoio do povo trabalhador não é suficiente; o controlo dos fluxos de capitais é também essencial para a prossecução de uma política popular, embora tal controlo possa atrair "sanções" imperialistas.

Isto continua a ser tão verdadeiro hoje como era há uma década atrás. A chamada "desglobalização" de que falam alguns economistas não faz a mínima diferença em relação a esta necessidade absoluta de enfrentar a hegemonia do capital globalizado, atrás do qual se perfila a falange dos Estados metropolitanos.

04/Junho/2023

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2023/0604_pd/“de-globalisation”-occurring. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em resistir.info

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