Donald Trump e Kamala Harris (Foto: REUTERS/Brendan McDermid & Evelyn Hockstein)
Do Substack
No final, a eleição foi sobre o desespero. O desespero em relação a futuros que se evaporaram com a desindustrialização. O desespero pela perda de 30 milhões de empregos em demissões em massa. O desespero diante de programas de austeridade e da canalização da riqueza para as mãos de oligarcas vorazes. O desespero sobre uma classe liberal que se recusa a reconhecer o sofrimento que orquestrou sob o neoliberalismo ou a adotar programas do tipo New Deal que possam amenizar esse sofrimento. O desespero diante de guerras fúteis e intermináveis, assim como do genocídio em Gaza, onde generais e políticos nunca são responsabilizados. O desespero sobre um sistema democrático que foi capturado pelo poder corporativo e oligárquico.
Esse desespero tem sido manifestado nos corpos dos marginalizados por meio de vícios em opioides e álcool, jogos de azar, tiroteios em massa, suicídios — especialmente entre homens brancos de meia-idade — obesidade mórbida e o investimento de nossa vida emocional e intelectual em espetáculos banais e no fascínio por pensamentos mágicos, desde as promessas absurdas da direita cristã até a crença ao estilo Oprah de que a realidade nunca é um impedimento para nossos desejos. Estas são as patologias de uma cultura profundamente doente, o que Friedrich Nietzsche chama de niilismo agressivo e despiritualizado.
Donald Trump é um sintoma da nossa sociedade doente. Ele não é a sua causa. Ele é o que é vomitado do processo de decadência. Ele expressa um anseio infantil de ser um deus onipotente. Esse desejo ressoa entre os estadunidenses que se sentem tratados como lixo humano. Mas a impossibilidade de ser um deus, como Ernest Becker escreve, leva à sua alternativa sombria — destruir como um deus. Essa autoimolação é o que vem a seguir.
Kamala Harris e o Partido Democrata, juntamente com a ala establishment do Partido Republicano, que se aliou a Harris, vivem em seu próprio sistema de crenças não-baseado na realidade. Harris, que foi ungida pelas elites do partido e nunca recebeu um único voto nas primárias, alardeou orgulhosamente o seu endosso por Dick Cheney, um político que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de 13%. A cruzada “moral” arrogante e autojustificada contra Trump alimenta o reality-show nacional que substituiu o jornalismo e a política. Reduz uma crise social, econômica e política à personalidade de Trump. Recusa-se a enfrentar e nomear as forças corporativas responsáveis por nossa democracia fracassada [nos EUA]. Permite que os políticos democratas ignorem facilmente sua base – 77% dos democratas e 62% dos independentes apoiam um embargo de armas contra Israel. A conivência aberta com a opressão corporativa e a recusa em atender aos desejos e necessidades do eleitorado neutralizam a imprensa e os críticos de Trump. Esses fantoches corporativos não defendem nada, exceto o seu próprio avanço. As mentiras que eles contam aos trabalhadores, especialmente com programas como o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), causam muito mais danos do que qualquer uma das mentiras proferidas por Trump.
Oswald Spengler, em "A Decadência do Ocidente", previu que, à medida que as democracias ocidentais se calcificassem e morressem, uma classe de "bandidos monetários", pessoas como Trump, substituiria as elites políticas tradicionais. A democracia se tornaria uma farsa. O ódio seria fomentado e alimentado nas massas para incentivá-las a se destruírem.
O sonho americano se tornou um pesadelo americano.
Os laços sociais, incluindo empregos que davam aos trabalhadores estadunidenses um senso de propósito e estabilidade, que lhes davam significado e esperança, foram rompidos. A estagnação de dezenas de milhões de vidas, a percepção de que não será melhor para seus filhos, a natureza predatória das nossas instituições, incluindo educação, saúde e prisões, geraram, junto com o desespero, sentimentos de impotência e humilhação. Isso gerou solidão, frustração, raiva e uma sensação de inutilidade.
“Quando a vida não vale a pena ser vivida, tudo se torna um pretexto para nos livrarmos dela...”, escreveu Émile Durkheim. “Há um estado de ânimo coletivo, assim como há um estado de ânimo individual, que inclina as nações à tristeza... Pois os indivíduos estão muito envolvidos na vida da sociedade para que ela esteja doente sem que todos sejam afetados. Seu sofrimento inevitavelmente se torna o deles.”
Sociedades decadentes, onde uma população é despojada de poder político, social e econômico, instintivamente buscam líderes de culto. Eu vi isso durante a desintegração da antiga Iugoslávia. O líder de culto promete um retorno a uma era de ouro mítica e jura, como Trump faz, esmagar as forças encarnadas em grupos e indivíduos demonizados que são culpados por sua miséria. Quanto mais ultrajantes os líderes de culto se tornam, quanto mais desrespeitam a lei e as convenções sociais, mais ganham em popularidade. Os líderes de culto são imunes às normas da sociedade estabelecida. Esta é a sua atração. Líderes de culto buscam poder total. Aqueles que os seguem lhes concedem esse poder na esperança desesperada de que eles os salvarão.
Todos os cultos são cultos de personalidade. Os líderes de culto são narcisistas. Eles exigem bajulação e obediência total. Eles valorizam a lealdade acima da competência. Eles exercem controle absoluto. Eles não toleram críticas. Eles são profundamente inseguros, uma característica que tentam encobrir com uma grandiosidade bombástica. Eles são amorais e abusivos emocional e fisicamente. Eles veem aqueles ao seu redor como objetos a serem manipulados para o seu próprio empoderamento, prazer e, muitas vezes, entretenimento sádico. Todos aqueles fora do culto são rotulados como forças do mal, levando a uma batalha épica cuja expressão natural é a violência.
Não convenceremos aqueles que entregaram a sua ação a um líder de culto e abraçaram o pensamento mágico através de argumentos racionais. Não os coagiremos à submissão. Não encontraremos salvação para eles nem para nós apoiando o Partido Democrata. Segmentos inteiros da sociedade estadunidense estão agora inclinados à autoimolação. Eles desprezam este mundo e o que este fez com eles. Seu comportamento pessoal e político é deliberadamente suicida. Eles buscam destruir, mesmo que a destruição leve à violência e à morte. Eles não são mais sustentados pela ilusão reconfortante do progresso humano, perdendo o único antídoto para o niilismo.
O Papa João Paulo II, em 1981, emitiu uma encíclica intitulada “Laborem exercens” ou “Através do Trabalho”. Ele atacou a ideia, fundamental para o capitalismo, de que o trabalho era meramente uma troca de dinheiro por trabalho. O trabalho, escreveu ele, não deveria ser reduzido à mercantilização dos seres humanos por meio de salários. Os trabalhadores não eram instrumentos impessoais a serem manipulados como objetos inanimados para aumentar o lucro. O trabalho era essencial para a dignidade humana e a autorrealização. Ele nos dava uma sensação de empoderamento e identidade. Permitía-nos construir uma relação com a sociedade em que sentíamos que contribuíamos para a harmonia e coesão social, uma relação em que tínhamos um propósito.
O papa criticava o desemprego, o subemprego, os salários inadequados, a automação e a falta de segurança no emprego como violações da dignidade humana. Essas condições, escreveu ele, eram forças que negavam a autoestima, a satisfação pessoal, a responsabilidade e a criatividade. A exaltação da máquina, advertiu, reduzia os seres humanos ao status de escravos. Ele clamava por emprego pleno, um salário mínimo suficiente para sustentar uma família, o direito de um dos progenitores ficar em casa com os filhos e empregos e um salário digno para os deficientes. Ele defendia, a fim de sustentar famílias fortes, seguro de saúde universal, pensões, seguro contra acidentes e horários de trabalho que permitissem tempo livre e férias. Ele escreveu que todos os trabalhadores deveriam ter o direito de formar sindicatos com o poder de fazerem greve.
Devemos investir nossa energia em organizar movimentos de massa para derrubar o estado corporativo por meio de atos sustentados de desobediência civil em massa. Isso inclui a arma mais poderosa que possuímos – a greve. Ao voltarmos a nossa ira contra o estado corporativo, nomeamos as verdadeiras fontes de poder e abuso. Expomos o absurdo de culpar a nossa decadência em grupos demonizados, como trabalhadores sem documentos, muçulmanos ou negros. Oferecemos às pessoas uma alternativa ao Partido Democrata submisso às corporações, que não pode ser reabilitado. Tornamos possível a restauração de uma sociedade aberta, uma que sirva ao bem comum em vez do lucro corporativo. Devemos exigir nada menos do que pleno emprego, rendas mínimas garantidas, seguro de saúde universal, educação gratuita em todos os níveis, proteção robusta do mundo natural e o fim do militarismo e do imperialismo. Devemos criar a possibilidade de uma vida de dignidade, propósito e autoestima. Se não o fizermos, garantiremos um fascismo cristianizado e, em última análise, com o ecocídio em aceleração, nossa obliteração.
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