segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Gramsci e o sujeito político

O conceito de hegemonia não apenas designa uma relação com os outros, mas também se torna um elemento central do processo de subjetivação política da classe trabalhadora. (Imagem via elporteno.cl)


Devemos ler Gramsci como um teórico da subjetivação política, voltando à centralidade da dimensão subjetiva na sua filosofia da práxis.

O artigo que se segue é uma revisão de Gramsci e do sujeito político. Subalternidade, autonomia, hegemonia, de Massimo Modonesi (Akal, México, 2023).

Não é tarefa fácil revisitar o pensamento de um autor clássico, produzindo uma leitura original que contribua para renovar debates na teoria política e social. Isto é precisamente o que o último livro de Massimo Modonesi, Gramsci and the Political Subject, consegue. Subalternidade, autonomia, hegemonia (Akal, 2023). Com uma escrita precisa e ágil, uma leitura filológica dos textos Gramscianos e uma apropriação criativa de seus conceitos se combinam aqui com maestria para pensar hoje os processos de constituição, organização e luta das classes subalternas.

Graças a esta combinação, o livro surge no panorama dos estudos Gramscianos como uma corrente de ar fresco. Sem abandonar o rigor na análise textual, Modonesi consegue ir além de um debate excessivamente exegético, superando o interesse pela reconstrução da intencionalidade autoral de Gramsci para propor uma reinterpretação produtiva de seus conceitos que permita abordar problemas centrais da teoria marxista.

Este novo trabalho de Modonesi insere-se assim num projeto teórico de longa duração que inclui mas excede o pensamento Gramsciano e que o autor vem desenvolvendo há quase duas décadas. Um projeto no qual se busca desenvolver uma proposta conceitual capaz de superar os déficits do marxismo ao analisar a dimensão subjetiva dos processos de organização e luta de classes. Esta busca, central para uma sociologia política que possa pensar os movimentos sociais contemporâneos, começa com o pioneiro Subalternidade, antagonismo, autonomia. Marxismos e subjetivação política, de 2010, e continua posteriormente em O princípio antagônico. Marxismo e ação política, 2016.

Mas podemos afirmar que encontra em Gramsci e no sujeito político uma espécie de coroação, pois aqui, a partir das contribuições do marxismo Gramsciano, sintetiza-se uma interpretação sobre a conformação processual, desigual e combinada das vontades coletivas em luta, abrindo a caminho para uma abordagem dos fenômenos do conflito social que se opõe ao individualismo metodológico dominante nos estudos da ação colectiva.

Sob o prisma de uma releitura teórico-política dos textos do comunista italiano, o livro analisa com grande poder de síntese um grande corpus textual, indicando diferentes itinerários para navegar no arquipélago de notas que compõem os Cadernos do Cárcere. Distribuídas em quatro capítulos, essas viagens mostram o desenvolvimento diacrônico dos conceitos nomeados no subtítulo do livro: subalternidade, autonomia e hegemonia. Produzindo uma articulação particular entre os três e acompanhando sua explicação com outras categorias-chave do léxico Gramsciano, Modenesi produz assim o seu "alongamento" e "formalização" necessários para convertê-los nos pilares de uma teoria crítica que dê conta dos momentos do processo de subjetivação das classes em luta.

Fica então evidente a tese central que se desenvolve ao longo do livro: devemos ler Gramsci como um teórico da subjetivação política, voltando à centralidade da dimensão subjetiva na sua filosofia da práxis.

Gramsci e o sujeito político , de Massimo Modonesi (Akal, 2023)

Ao analisar o conceito de subalternidade, Modonesi destaca a condição adjetiva da palavra no pensamento Gramsciano, rejeitando qualquer substantivação dessa condição. Nesse sentido, além de partir das condições materiais que explicam a condição subalterna, o livro a postula como uma condição relacional subjetiva dos oprimidos, caracterizada por um condicionamento de sua consciência e de suas práticas pela relação de dominação em que estão inseridos. . Argumentando contra certas correntes que enfatizam as características dos sujeitos como dominados – tornando-os assim um invariável quase intransponível de sua condição – Modonesi faz de Gramsci um pensador da saída da subalternidade, da construção histórica de um sujeito que, através de sua organização e luta, é capaz de se tornar autônoma e potencialmente dominante.

Esta concepção de subalternidade leva-nos a perceber a presença constante de embriões de organização e resistência que permitem uma potencial ruptura. Processos que marcam um “princípio de cisão”, nas palavras de Gramsci, com as classes dominantes. Não nos encontramos então mais diante de uma condição subalterna fixa, mas sim de uma posição subjetiva que se torna o germe de um processo conflitual que leva à conquista progressiva de espaços de autonomia.

Por isso, e sem negar a permanência de elementos subalternos mesmo naqueles que se rebelam (elementos que nos permitem pensar a consciência contraditória dos sujeitos nas suas lutas), a conceptualização proposta por Modonesi permite-nos compreender a subalternidade como um continuum entre dois pólos – aceitação e questionamento da dominação – que se altera a partir da relação de forças entre as classes em luta, oscilando entre a sujeição às classes dominantes e a constituição de autonomia para os subalternos.

Partindo dessas considerações, o conceito de autonomia aparece necessariamente como o próximo passo para pensar a trajetória política do processo de subjetivação, operando quase como uma espécie de elo com o potencial hegemônico de uma classe. Para isso, Modonesi traça e recupera a noção de autonomia a partir dos textos do período conciliar de Gramsci. Contudo, ao contrário de certas leituras dominantes que minimizam a sua presença posterior no pensamento Gramsciano, Gramsci e o Sujeito Político mostra-nos a persistência do conceito nos Cadernos e sublinha a sua importância fundamental na nomeação e descrição das condições organizacionais e ideológicas que permitem a ruptura com subalternidade e as possibilidades de disputa pela hegemonia.

O conceito de autonomia explica assim duas dimensões fundamentais. Por um lado, a constituição de espaços próprios dos oprimidos, mesmo dentro do vínculo da opressão, que dão conta da possibilidade de estabelecimento de organizações capazes de contestar o poder. Por outro lado, a autonomia explícita no momento da emancipação como a procura de uma sociedade plenamente autónoma, regulada pela decisão dos seus membros e livre de qualquer lógica imposta ou dominação de classe, que aparece em Gramsci como o desenvolvimento máximo de uma hegemonia de os trabalhadores.

A articulação entre subalternidade e autonomia produz assim uma perspectiva interessante para a análise dos oprimidos que incorpora mas vai além das contribuições dos estudos subalternos. Contudo, talvez seja no tratamento do conceito de hegemonia, e no seu diálogo com os dois conceitos anteriores, que encontramos a maior novidade nas propostas apresentadas no livro, tanto em relação às obras anteriores do autor como no que diz respeito a as interpretações mais difundidas do pensamento Gramsciano.

Modonesi busca ir além dos usos da hegemonia como forma de explicar as dinâmicas e os mecanismos de dominação. Trata-se de repensar esse famoso conceito Gramsciano como parte do processo de subjetivação política das classes subalternas e não apenas como nome para sua aquiescência. Desviando o foco da eficácia da “subjugação” e retornando às raízes bolcheviques do conceito que apontava para a constituição do proletariado como classe hegemônica, ressurge então a questão Gramsciana fundamental sobre as condições para a constituição de um coletivo permanente. vontade que pode disputar a hegemonia na sociedade moderna.

Dessa forma, o livro nos convida a nos diferenciarmos das leituras “hegemonistas” de Gramsci, como as presentes no estruturalismo e no pós-marxismo, focadas em descrever as lógicas de dominação impostas de cima. Gramsci e o sujeito político, ao contrário, quer dar conta do aspecto subjetivo e antagônico da hegemonia. Ou seja, enfrentar os efeitos que o processo de disputa para se tornar classe dirigente do grupo social implica para a constituição dos sujeitos em luta.

Visto do prisma da luta dos subalternos, o conceito de hegemonia assume então um duplo significado. Em primeiro plano encontramos a sua compreensão como um processo de “dilatação” ou “alargamento” do sujeito trabalhador, tendo em conta o estabelecimento de alianças com outros grupos subalternos; mas também – e fundamentalmente – mediada pela autonomia, a hegemonia aparece como uma forma de autoconstituição da própria classe. Nesse sentido, Modonesi retoma numerosos debates marxistas contemporâneos sobre a heterogeneidade da classe trabalhadora na tentativa de repensar o conceito de hegemonia para além da sua forma original centrada na constituição da aliança operário-camponesa.

A própria constituição da classe implica processos de “hegemonização” de algumas das suas diversas partes que permitem unificar e dirigir um conjunto de realidades conflitantes que aparecem fragmentadas. A hegemonia, então, não apenas designa uma relação com os outros, mas também se torna um elemento da própria natureza de uma classe trabalhadora que consegue articular um conjunto de lutas, fazendo da subjetivação política um processo que implica distinção em relação às classes dominantes, mas também expansão. do próprio sujeito e agregação de grupos subalternos.

Ao mesmo tempo, a proposta conceitual do livro busca refletir sobre outro aspecto do processo de irradiação hegemônica. Aquilo que Gramsci chama de “devir Estado de uma classe”. Esta segunda dimensão da hegemonia abre a questão sobre as formas políticas que a futura dominação do proletariado pode assumir com base nas sementes da autonomia que ele constrói nas suas lutas ainda dentro da sociedade capitalista.

Mas se, até agora, a função destes germes era vista a partir do prisma da autoconstituição de uma classe ou da extensão da sua influência através de um consenso activo dos grupos subalternos aliados, aqui o problema da sua imposição e direcção na toda a sociedade. Embora o livro não se aprofunde na análise destas formas de dominação dos trabalhadores, no que assumimos ser uma perspectiva epistemológico-política que, contra qualquer receita anterior, aposta na sua constituição no próprio processo de luta, a ênfase que apresenta na ao longo de suas páginas sobre as formas de autonomia de classe e a importância da constituição de organizações de autogoverno nos levam a pensar nesse devir Estado em termos de um novo Estado que escapa a qualquer compreensão ingênua ou instrumental sobre o mero uso das instituições existentes.

Em suma, esta dimensão da hegemonia conduz-nos a uma reflexão original que deve enfrentar o problema da transição, um momento liminar que implica o exercício do poder ao mesmo tempo que o compromisso contínuo com a dissolução das instituições estatais, ao qual Gramsci nomeou como uma empresa regulamentada.

O desenvolvimento conceitual da tríade subalternidade, autonomia e hegemonia, dessa forma, é abordado nos três primeiros capítulos do livro. Na quarta e última parte, analisa-se o conceito Gramsciano de revolução passiva, uma vez que dá conta dos processos de desmobilização e dessubjetivação operados pela classe dominante em resposta às lutas dos subalternos. Desta forma, o livro integra outra vertente do pensamento Gramsciano que Modonesi vinha desenvolvendo em trabalhos anteriores, como Passive Revolutions in America, de 2018, ou The Passive Revolution. Uma Antologia de Estudos Gramscianos, 2022.

O conjunto de reflexões contidas no livro dá conta, assim, da conformação processual e conflituosa das subjetividades políticas. Permite-nos explorar os vários itinerários de autoconstituição de um sujeito produzido no, contra e para além do capital como um processo de auto-subjectificação que parte de uma condição subalterna mas que se explica pela sua capacidade de se tornar autónomo e eventualmente hegemónico.

O retorno à perspectiva aqui desenvolvida abre assim um caminho para a construção de um quadro conceitual a partir do marxismo que se mostre propício à análise dos movimentos políticos e sociais, distinguindo em suas trajetórias elementos subalternos, autônomos e hegemônicos no processo de formação das subjetividades coletivas . Podemos então observar tais processos históricos de luta e mobilização repensando a combinação desses elementos, rompendo com a imagem de uma direção única e incremental na organização e na consciência de classe para dar conta, em vez disso, das contradições, avanços e retrocessos na esfera subjetiva. constituição de uma classe trabalhadora que possa se projetar da subalternidade à hegemonia.

O livro de Modonesi é um convite a repensar o conceito marxista de luta de classes desde Gramsci, observando como as experiências de ação coletiva conflituosa acarretam processos de constituição de um sujeito, ou seja, produzem subjetivação política. Contudo, e como bem afirma o autor, recuperando uma expressão de Valentino Gerratana, “Gramsci sozinho não resiste”, pelo que avançar na construção da constelação conceptual necessária a uma teoria política marxista da subjetivação exige ir com ele, para além dela, recuperar e combinar diversas tradições de pensamento crítico.

Embora em outras obras Modonesi tenha abordado algumas dessas tradições através das contribuições do grupo Socialismo ou Barbária, do operaismo e do autonomismo italiano ou marxismo aberto, neste livro ele deixa em aberto a questão sobre outras possíveis combinações com o pensamento Gramsciano. Uma abertura que, longe de ser uma deficiência, sentimos, configura um compromisso com uma articulação teórico-política com elaborações futuras que surgem dos próprios processos de luta e subjetivação dos subalternos.

Podemos imaginar intersecções produtivas desta perspectiva Gramsciana original com as reflexões atuais dos movimentos feministas, ambientalistas, que ou de trabalhadores precários que, ao mesmo tempo que ampliam a nossa compreensão das diferentes condições que produzem a subalternidade, nos permitem repensar formas de construir uma vontade colectiva que reconheça a expansão dos campos de batalha enquanto continua a perseguir a unidade das várias lutas.


JAVIER WAIMAN

Cientista político e doutor em Ciências Sociais. Pós-doutorado pelo CONICET e professor de Sociologia e Teoria do Estado na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Nacional de Lanús.



 

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