
Joseph Mallord William Turner, Um furacão no deserto (The Simoom), c.1830–2,
JÜRGEN HABERMAS
Introdução ao livro recém-editado
Duas tendências opostas caracterizam a situação espiritual de nossa época – a proliferação de imagens naturalistas de mundo e a crescente influência política de ortodoxias religiosas.
De um lado, os progressos na biogenética, na neurociência e na robótica, conduzidos com esperanças terapêuticas e eugênicas, são apresentados de modo exitoso. Com esse programa, pretende-se que uma autocompreensão objetivada das pessoas em conformidade com as ciências naturais penetre nos contextos cotidianos de comunicação e ação. A colocação em prática de uma perspectiva de autoobjetivação, que reduz tudo o que é compreensível e que pode ser vivenciado a algo observável, também estimularia a disposição a uma correspondente auto instrumentalização.[1]
No que concerne à filosofia, essa tendência se vincula à exigência de um naturalismo cientificista. Não se discute o fato de que todas as operações do espírito humano dependem inteiramente de substratos orgânicos. A controvérsia tem mais a ver com o modo correto de naturalizar o espírito. Uma compreensão naturalista adequada da evolução cultural deve dar conta tanto da constituição intersubjetiva do espírito quanto do caráter normativo de suas operações guiadas por regras.
De outro lado, a tendência à proliferação de imagens naturalistas de mundo vai de encontro a uma inesperada revitalização, assim como da politização em escala mundial, de comunidades de fé e de tradições religiosas. No que concerne à filosofia, a revitalização de forças religiosas, da qual apenas a Europa parece excluída, se vincula à exigência de uma crítica fundamental à autocompreensão pós metafísica e não religiosa da modernidade ocidental.
Não se discute o fato de que as possibilidades de configuração política só existem no interior do universo das infraestruturas técnico científicas e econômicas surgidas no Ocidente e para as quais não existem alternativas. Controversa é, antes, a interpretação correta das consequências da secularização de uma racionalização social e cultural que os defensores das ortodoxias religiosas denunciam cada vez mais como a verdadeira via singular da história mundial do Ocidente.
Essas tendências intelectuais opostas remontam a tradições antagônicas. O naturalismo duro pode ser entendido como uma consequência das premissas do Esclarecimento [Aufklärung] que dizem respeito à crença na ciência, enquanto a consciência religiosa renovada politicamente rompe com as premissas liberais do Esclarecimento. Essas figuras do espírito não se chocam, porém, apenas nas controvérsias acadêmicas, mas se transformam em poderes políticos – tanto no interior da sociedade civil da nação predominante no Ocidente quanto em escala internacional no embate das religiões mundiais e das culturas que dominam o mundo.
Na perspectiva de uma teoria política que se ocupa com fundamentos normativos e com as condições de funcionamento de Estados democráticos de direito, essa oposição revela também uma cumplicidade secreta: se falta em ambos os lados a disposição à autorreflexão, as duas tendências opostas se dividem no trabalho de, em certo sentido, colocar em perigo a coesão da comunidade política por meio da polarização das visões de mundo.
Uma cultura política que, seja em questões de pesquisa de embriões humanos, seja do aborto ou do tratamento de pacientes em coma, se polariza de modo irreconciliável ao longo da linha que separa o par de contrários secular/religioso coloca em xeque o common sense dos cidadãos mesmo na democracia mais antiga. O ethos da cidadania liberal exige de ambos os lados a certificação reflexiva dos limites tanto da fé como do saber.
Como mostra de modo preciso o exemplo dos Estados Unidos, o Estado constitucional moderno também foi inventado para tornar possível um pluralismo religioso pacífico. Apenas o exercício de um poder político secular em conformidade com o Estado de direito, neutro em relação às imagens de mundo, pode garantir a convivência equânime e tolerante de comunidades de fé diferentes que, na substância de suas visões de mundo ou doutrinas, permanecem irreconciliáveis.
A secularização do poder estatal e as liberdades positiva e negativa da prática religiosa são os dois lados de uma mesma moeda. Elas protegeram comunidades religiosas não apenas das consequências destrutivas dos conflitos sangrentos entre elas, mas também da mentalidade antirreligiosa de uma sociedade secularizada. O Estado constitucional só pode proteger seus cidadãos religiosos ou não religiosos uns dos outros se estes, em seu convívio enquanto cidadãos, não apenas encontram um modus vivendi, mas convivem por convicção em uma ordem democrática. O Estado democrático se nutre de uma solidariedade jurídica e não coercitiva dos cidadãos que se respeitam mutuamente como membros livres e iguais de sua comunidade política.
Na esfera pública política, essa solidariedade de cidadãos, que tem um baixo custo, precisa se confirmar também e sobre tudo além dos limites das visões de mundo. O reconhecimento recíproco significa, por exemplo, que cidadãos religiosos e seculares estão dispostos a se ouvir mutuamente e a aprender uns com os outros em debates públicos. Na virtude política da relação civil recíproca se expressam determinadas atitudes cognitivas. Elas não podem ser prescritas, mas apenas aprendidas.
Disso decorre, porém, uma consequência que tem especial interesse em nosso contexto. Na medida em que o Estado liberal requer de seus cidadãos que adotem um comportamento cooperativo que vai além dos limites das visões de mundo, ele tem que pressupor que as atitudes cognitivas exigidas do lado religioso e do lado secular já se formaram como resultado de processos de aprendizagem históricos. Processos de aprendizado desse tipo não são apenas modificações de mentalidade casuais, que “ocorrem” independentemente de ideias racionalmente compreensíveis. Mas eles tampouco podem ser produzidos e controlados através dos media do direito e da política. No longo prazo, o Estado liberal depende de mentalidades que ele não é capaz de produzir com recursos próprios.
Isso fica evidente quando pensamos nas expectativas de tolerância que os cidadãos religiosos têm que cumprir no Estado liberal. Convicções fundamentalistas são incompatíveis com a mentalidade que precisa ser compartilhada por um número suficiente de cidadãos para que a comunidade democrática não desmorone. Na perspectiva da história da religião, as atitudes cognitivas que os cidadãos religiosos precisam adotar em sua relação civil com aqueles que têm outras crenças e com aqueles que não têm crença podem ser entendidas como resultado de um processo de aprendizagem coletivo.
No Ocidente marcado pelo cristianismo, a teologia assumiu evidentemente um papel pioneiro nessa autorreflexão hermenêutica sobre doutrinas herdadas da tradição. A questão sobre se é “bem-sucedida” a elaboração dogmática dos desafios cognitivos colocados pela ciência moderna e pelo pluralismo religioso, pelo direito constitucional e pela moral social secular, e a questão sobre se é possível falar em “processos de aprendizagem” em geral, só podem naturalmente ser julgadas a partir da perspectiva interna dessas tradições que, desse modo, encontram uma conexão com as condições da vida moderna.
Em suma, a formação da opinião e da vontade na esfera pública democrática só pode funcionar se um número suficientemente grande de cidadãos cumpre determinadas expectativas relativas à civilidade de seu comportamento apesar das profundas diferenças de crença e de visões de mundo. Mas os cidadãos religiosos só podem ser confrontados com isso sob a suposição de que eles cumprem de fato os pressupostos cognitivos requeridos para tanto.
Devem ter aprendido a relacionar de modo reflexivo e razoável suas próprias convicções religiosas com o fato do pluralismo religioso e das visões de mundo, e devem ter conciliado o privilégio cognitivo das ciências institucionalizadas socialmente bem como a precedência do Estado secular e da moral social universalista com sua fé. A filosofia, diferentemente da teologia ligada às comunidades de fé, não pode influenciar esse processo. A esse respeito, a filosofia se limita ao papel de observador externo a quem não compete julgar sobre aquilo que no interior de uma doutrina religiosa pode valer como fundamentação ou o que deve ser recusado.
A filosofia entra em campo apenas no lado secular. Pois mesmo os cidadãos não religiosos só podem cumprir as expectativas de solidariedade civil sob a condição de adotar uma determinada atitude cognitiva em relação a seus concidadãos religiosos e às suas manifestações. Quando os dois lados se encontram na confusão de vozes de uma esfera pública pluralista em suas visões de mundo e discutem sobre questões políticas, certas obrigações epistêmicas resultam da exigência de respeito mútuo. Mesmo os participantes que se expressam em uma linguagem religiosa têm a pretensão de serem levados a sério por seus concidadãos seculares. Estes últimos não podem de antemão recusar um conteúdo racional às contribuições formuladas em uma linguagem religiosa.
É certo que faz parte da compreensão comum e compartilhada da constituição democrática que todas as leis, todas as decisões judiciais, todos os decretos e medidas sejam formulados em uma linguagem pública, isto é, igualmente acessível a todos os cidadãos e que sejam capazes de uma justificação secular. Mas, na disputa informal de opiniões da esfera pública política, os cidadãos e as organizações da sociedade civil ainda se encontram aquém do patamar de um recurso institucional ao poder de sanção do Estado. Aqui, a formação da opinião e da vontade não pode ser canalizada por meio de censuras linguísticas nem isolada das possíveis fontes produtoras de sentido.[2] Nessa medida, o respeito que os cidadãos secularizados devem manifestar por seus concidadãos crentes tem também uma dimensão epistêmica.
Por outro lado, apenas cumprindo uma condição cognitiva essencialmente controversa é que se poderia esperar dos cidadãos seculares a abertura para aceitar um possível conteúdo racional de contribuições religiosas – e ainda mais a disposição de participar da tradução cooperativa desses conteúdos dos idiomas religiosos para uma linguagem acessível a todos.
Pois, a seus olhos, o conflito entre convicções seculares e doutrinarias só pode ter prima facie o caráter de um dissenso razoável se for possível tornar plausível de um ponto de vista secular o fato de que as tradições religiosas não são simplesmente irracionais ou absurdas. Apenas sob tal pressuposto os cidadãos não religiosos podem aceitar que as grandes religiões mundiais poderiam trazer consigo intuições racionais e momentos instrutivos de demandas não atendidas, mas legítimas.
Entretanto, isso é objeto de uma discussão aberta que não pode ser prejulgada por princípios constitucionais. Não está de modo algum predeterminado qual lado terá razão. O secularismo da imagem científica de mundo insiste na ideia de que as formas de pensamento arcaicas das doutrinas religiosas foram superadas e desvalorizadas completamente pelos progressos do conhecimento da pesquisa estabelecida. Ao contrário, o pensamento pós-metafísico falibilista mas não derrotista, no curso da reflexão sobre os próprios limites – e sobre a tendência inscrita nele próprio de ultrapassar os limites – se diferencia dos dois lados. Ele desconfia igualmente das sínteses científicas naturalistas e das verdades reveladas.
A polarização das visões de mundo em um campo religioso e um campo secular, que coloca em perigo a coesão entre os cidadãos, é objeto de uma teoria política. Mas, assim que atentamos para os pressupostos cognitivos que condicionam o funcionamento da solidariedade de cidadãos, temos de deslocar a análise para um outro patamar.
Assim como o processo por meio do qual a consciência religiosa se torna reflexiva na era da modernidade, a superação reflexiva da consciência secular também tem um lado epistemológico. A caracterização desses dois processos de aprendizagem complementares já revela a descrição distanciada feita do ponto de vista de um observador pós-metafísico. Mas, do ponto de vista dos participantes, aos quais pertence o próprio observador, a disputa está aberta.
Os pontos controversos são claros. Por um lado, a discussão gira em torno do modo correto de naturalização de um espírito que é, desde sua origem, constituído intersubjetivamente e guiado por normas. A isso corresponde, por outro lado, a discussão sobre a compreensão correta daquele impulso cognitivo marcado pelo surgimento das religiões universais por volta do primeiro milênio antes de Cristo – Karl Jaspers fala da “era axial”.
Nessa disputa, defendo a tese hegeliana, segundo a qual as grandes religiões pertencem à história da própria razão. O pensamento pós-metafísico não pode se compreender a si mesmo se não incluir na própria genealogia as tradições religiosas lado a lado com a metafísica. Aceita essa premissa, seria insensato colocar de lado essas tradições “fortes” como um resíduo arcaico, em vez de explicar o nexo interno que as vincula às formas de pensamento modernas. As tradições religiosas fizeram até hoje a articulação de uma consciência daquilo que falta.
Elas mantêm viva a sensibilidade para o que falhou. Preservam contra o esquecimento as dimensões de nosso convívio social e pessoal, nas quais os progressos da racionalização cultural e social provocaram danos catastróficos. Por que elas não deveriam ainda manter potenciais semânticos cifrados que poderiam desenvolver uma força inspiradora, desde que fossem vertidas em discursos de fundamentação e seu conteúdo de verdade profano fosse liberado?
O presente volume reúne ensaios que se movem no horizonte de tais questionamentos. Eles vieram a lume durante os últimos anos em circunstâncias bastante contingentes e não formam um conjunto sistemático. Mas ao longo de todas as contribuições percorre, como um fio vermelho, a intenção de enfrentar os desafios opostos, mas complementares, do naturalismo e da religião com a insistência pósmetafísica no sentido normativo de uma razão destranscendentalizada.
Os comentários e estudos da primeira parte recordam a abordagem intersubjetivista da teoria do espírito, que persigo há muito tempo. Na linha de um pragmatismo que vincula Kant e Darwin,[3] é possível deflacionar as ideias platônicas com o auxílio do conceito de pressupostos idealizadores, sem levar acabo o antiplatonismo a tal ponto que as operações do espírito guiado por regras sejam reduzidas precipitadamente a regularidades explicáveis nomologicamente.
Os estudos da segunda parte desenvolvem o questionamento central, esboçado antecipadamente aqui, segundo a perspectiva de uma teoria normativa do Estado constitucional, enquanto os textos da terceira parte abordam o tema epistemológico e procuram explicar a posição do pensamento pós-metafísico entre naturalismo e religião. As três contribuições finais retornam a temas da teoria política.
Nelas, me interessam sobretudo as correspondências existentes entre, por um lado, o controle estatal do pluralismo religioso e das visões de mundo e, por outro, a perspectiva da constituição política de uma sociedade mundial pacificada.[4]
*Jürgen Habermas é professor aposentado de filosofia e sociologia na Universidade Johann Wolfgang von Goethe, em Frankfurt. Autor, entre outros livros, de Teoria da ação comunicativa (Unesp).
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