“Casas são feitas para morar, não hotéis ou ativos financeiros para especular”, diz cartaz de manifestante espanhol contra o turismo em massa. Foto: Jorge Guerrero/AFP
Editorial
Mais de 100.000 pessoas — muito mais, segundo os organizadores — marcharam em 40 cidades da Espanha sob o mesmo slogan: Vamos acabar com o negócio imobiliário. Os manifestantes exigem uma redução generalizada nos preços dos aluguéis que reverta os aumentos desproporcionais dos últimos anos e restaure o acesso à moradia como um direito humano. A eloquência com que as organizações políticas, sindicatos e partidos de esquerda que promovem esta iniciativa explicam o problema é inigualável: os preços exorbitantes dos aluguéis são a principal causa do empobrecimento da classe trabalhadora e uma barreira ao acesso à moradia. O enriquecimento de uma pequena minoria rentista em detrimento da asfixia econômica de um grande segmento da sociedade, a impunidade com que as empresas imobiliárias operam e a impossibilidade de construir projetos de vida devido à falta de acesso estável à moradia geraram indignação social e consolidaram o consenso de que a moradia deve deixar de ser um negócio e se tornar um direito.
Esse tema, sem dúvida, repercute no México, onde a cada ano 30.000 famílias são forçadas a deixar a capital devido aos altos custos de moradia, enquanto moradores de algumas cidades onde, até recentemente, o acesso à moradia não estava entre os desafios mais urgentes são repentinamente deslocados por um modelo de turismo predatório. O caso de Chalco, onde uma família de proprietários perturbados assassinou duas pessoas que estavam ocupando ilegalmente sua propriedade naquele município metropolitano, trouxe à tona as consequências dramáticas da falta de acesso à moradia. É importante ressaltar: falta de acesso não é a mesma coisa que falta de moradia.
Na Espanha, no México e em outros lugares, a iniciativa privada tem a mesma resposta à crise imobiliária: flexibilizar as regulamentações e reduzir a burocracia para acelerar a construção de novas moradias, sob o velho dogma de que os aumentos de preços são explicados por assimetrias entre oferta e demanda que podem ser corrigidas simplesmente aumentando a oferta. Como toda teoria econômica liberal, essa abordagem tem o problema de ignorar a realidade. Primeiro, o crescimento populacional está estagnado há décadas em todas as nações ricas e até mesmo em muitas nações de desenvolvimento médio, como as da América Latina. As grandes cidades, que continuam aumentando sua população devido à migração nacional e internacional, o fazem em taxas muito mais lentas do que as experimentadas na segunda metade do século passado, o que não impede que os custos de moradia aumentem a taxas sem precedentes. Além do fator demográfico, eles ignoram o funcionamento real do capitalismo: em uma economia de mercado, a construção de moradias não se traduz automaticamente em maior oferta para quem procura um lar, tanto porque os construtores deixam de lado o setor social para se concentrar nos setores residencial e de luxo – inacessíveis à grande maioria dos trabalhadores – quanto porque os novos imóveis são açambarcados por especuladores e grandes rentistas que os usam para aluguel de férias ou para os chamados nômades digitais nos países ricos. Para garantir que a construção de moradias atenda à demanda em vez de ser engolida pela especulação, as próprias regulamentações que as empresas estão exigindo que sejam desmanteladas são essenciais.
A falácia de que a crise imobiliária é um mero desequilíbrio entre oferta e demanda também busca obscurecer o processo mais significativo do neoliberalismo: a transferência maciça de riqueza de baixo para cima. Em 1984, os trabalhadores nas economias avançadas recebiam cerca de 52% da renda nacional, mas em 2017 eles ficaram com apenas 40%, em comparação com mais de 60% capturados pelos proprietários de capital. Nas chamadas economias emergentes, a perspectiva é mais sombria, pois o ponto de partida já era de 49% e caiu para 37%. Esses números pioraram desde a pandemia e se refletem na disparidade entre o crescimento salarial e o crescimento dos preços dos imóveis.
Em suma, a construção de edifícios residenciais não resolverá a crise imobiliária a menos que a especulação, a ganância das construtoras, os padrões de desigualdade e a concentração de riqueza em poucas mãos sejam enfrentados. Também está claro que o mercado não tem interesse nem capacidade de garantir os direitos humanos, por isso eles devem ser exigidos pelas pessoas e cumpridos pelos governos.
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