
Fontes: CTXT [Imagem: Reunião entre o Conselho da OTAN e a Rússia em Bruxelas no final de janeiro de 2022, um mês antes do início da guerra. / OTAN]
A Europa é a grande perdedora no conflito, mas agora parece determinada a se prejudicar ainda mais, aprofundando a marcha da loucura.
Em The March of Folly: Unreason from Troy to Vietnam, a historiadora Barbara Tuchman aborda a questão intrigante de por que os países às vezes adotam políticas radicalmente opostas aos seus interesses. Essa questão se torna relevante novamente agora que a Europa decidiu agravar ainda mais a loucura em torno da Ucrânia. Continuar neste caminho terá consequências sérias para a Europa, mas abandoná-lo representa um desafio político colossal que exige uma explicação de como a União Europeia foi prejudicada pela sua política em relação à Ucrânia; como é evidente que se ela dobrar essa aposta, ela será ainda mais prejudicada; como essa marcha da loucura foi vendida politicamente; e, finalmente, por que o poder político persiste nessa ideia.
Os custos políticos e económicos da loucura
Apesar de não ter intervindo diretamente no conflito ucraniano, a Europa — e a Alemanha em particular — se tornou uma das maiores perdedoras da guerra devido às sanções econômicas, que tiveram um efeito bumerangue na economia europeia. A energia barata da Rússia foi substituída pela energia cara dos Estados Unidos. Isto teve um impacto negativo no padrão de vida da sociedade e na competitividade do setor manufatureiro; Também influenciou o aumento da inflação na Europa.
Soma-se a isso a perda de um mercado importante, a Rússia, onde a Europa vendia produtos manufaturados e obtinha oportunidades de investimento e crescimento. Além disso, a Europa ficou sem os gastos extravagantes das elites russas: a combinação desses fatores ajuda a esclarecer a estagnação da economia europeia. Como se isso não bastasse, seu futuro econômico fica seriamente comprometido pelo início da insanidade, que ameaça tornar esses efeitos permanentes.
A Europa ficou sem os gastos extravagantes das elites russas
O fluxo maciço de refugiados ucranianos também teve consequências adversas: aumentou a competição salarial; agravou a escassez de moradias, o que fez subir os aluguéis; O sistema escolar e os serviços sociais ficaram sobrecarregados, e os gastos públicos aumentaram. Embora essas consequências tenham impactado todo o território europeu, a Alemanha foi a que mais sofreu. Isso, somado aos efeitos econômicos adversos, contribuiu para turvar o clima político, o que ajuda a explicar a ascensão da política protofascista, especialmente — novamente — na Alemanha.
A Grande Mentira e Como a Loucura é Vendida
A “grande mentira” é uma ideia que Adolf Hitler formulou em Mein Kampf (Minha Luta). Isso significa que se uma mentira descarada associada ao preconceito popular for repetida muitas vezes, ela acabará sendo aceita como verdade. Joseph Goebbels, propagandista nazista, conseguiu aperfeiçoar a teoria da grande mentira na prática. É inegável que muitas sociedades o utilizaram em alguma medida, e o poder político europeu recorreu livremente a ele para vender a marcha da loucura.
A primeira grande mentira é o ressurgimento da narrativa sobre os acordos de apaziguamento de Munique de 1938, que afirma que a Rússia invadirá a Europa Central se não for derrotada na Ucrânia. Essa mentira também é alimentada pelos resquícios da teoria do dominó da Guerra Fria, segundo a qual a conquista de um país desencadearia uma onda de colapsos em outros.
A narrativa de apaziguamento também motiva comparações altamente equivocadas entre o presidente Putin e Hitler, alimentando uma segunda grande mentira: o moralismo maniqueísta que apresenta a Europa como a personificação do bem e a Rússia como a personificação do mal. Essa estrutura impede o reconhecimento da responsabilidade do Ocidente em alimentar o conflito, por meio da expansão da OTAN para o leste e da disseminação do sentimento antirrusso na Ucrânia e em outras antigas repúblicas soviéticas.
A terceira grande mentira diz respeito às capacidades militares da Rússia: o argumento é que seu poder militar representa uma ameaça existencial para a Europa Central e Oriental, e isso dá credibilidade à acusação de expansionismo russo. Nenhuma equação matemática poderia refutá-lo; No entanto, o histórico no campo de batalha indica o contrário, assim como a análise de sua base econômica, que é relativamente pequena em comparação à dos países da OTAN, sem mencionar seu envelhecimento demográfico.
“Apaziguamento de Munique”, “expansivismo russo”, “Rússia como a personificação do mal” e a “ameaça militar russa” são imagens fictícias usadas para deslegitimar a Rússia e, ao mesmo tempo, justificar e encobrir a agressão ocidental. Nunca houve qualquer evidência de que a Rússia pretendia controlar a Europa Ocidental, nem durante a Guerra Fria nem hoje. Pelo contrário, a intervenção da Rússia na Ucrânia foi motivada principalmente pelo medo — em termos de segurança nacional — estimulado pela expansão ocidental da OTAN, algo do qual a Rússia tem reclamado repetidamente desde a desintegração da União Soviética.
A grande mentira envenena a possibilidade de paz, porque é impossível negociar com um adversário que personifica o mal e representa uma ameaça existencial. No entanto, apesar de sua natureza enganosa, as mentiras estão ganhando espaço na opinião pública; Por um lado, porque estão ligados a uma longa história de sentimento antirrusso, incluindo a Guerra Fria e o Pânico Vermelho da década de 1920; Por outro lado, porque apelam à pretensão arrogante de superioridade moral, um dos emblemas da marcha da loucura.
Cortina de fumaça: O establishment europeu intensifica a marcha da loucura
A Grande Mentira ajuda a explicar como o poder político europeu vendeu a marcha da loucura, mas nos convida a perguntar por quê. A resposta é tão simples quanto complexa. A parte simples da análise alerta que o establishment político europeu falhou na política interna e está diante do abismo: abraçar a loucura com maior determinação é uma tentativa de salvação.
O establishment político europeu falhou na política interna e está enfrentando o abismo.
Um exemplo disso é a França, com um presidente, Macron, que é bastante impopular e cuja legitimidade democrática está diminuindo. A estratégia de guerra estrangeira atua como uma cortina de fumaça, redirecionando a atenção das falhas da política interna para um inimigo externo. Assim, Macron apela ao nacionalismo militarista e se posiciona como defensor da França.
Na mesma linha, o primeiro-ministro britânico Keir Starmer intensificou a estratégia política de triangulação, com o Partido Trabalhista seguindo os passos do Partido Conservador. Starmer e seu partido levaram essa estratégia a tal extremo que tudo o que restou do Partido Trabalhista foi seu nome, e eles até superaram os Conservadores com sua postura belicista em relação à Ucrânia. Agora, essas decisões o afundaram politicamente. Em um cenário em que a única coisa oferecida são medidas conservadoras, os eleitores de direita estão escolhendo a marca original, enquanto os eleitores de centro-esquerda estão se abstendo cada vez mais. Em resposta, Starmer optou por expandir o envolvimento da Grã-Bretanha na Ucrânia e participou de sessões fotográficas militares pré-agendadas, numa tentativa de evocar as figuras de Winston Churchill e Margaret Thatcher.
Mas se olharmos para o panorama geral, descobrimos que os sociais-democratas europeus tendem a uma postura ainda mais militarista do que os conservadores. Isso se deve, em parte, ao fenômeno de mimetismo resultante da triangulação, que força esses grupos a tentar constantemente superar seus rivais. Da mesma forma, isso se deve ao infame abandono da oposição ao nacionalismo militarista que definiu a esquerda desde os horrores da Primeira Guerra Mundial. Em outras palavras: muitos sociais-democratas agora se tornaram amigos da loucura.
A animosidade da Europa em relação à Rússia e as longas raízes da loucura
A parte complexa do motivo pelo qual a Europa adotou o paradigma da loucura está em suas raízes longas e emaranhadas, que remontam a muitos anos. Essa história semeou a animosidade institucionalizada em relação à Rússia que agora impulsiona a marcha da loucura europeia. A Europa não tem uma abordagem independente à política externa há setenta anos. Em vez disso, ele se submete à liderança dos EUA e nomeia pessoas alinhadas aos interesses dos EUA para cargos de defesa e política externa que exercem poder.
Essa subserviência se estende às elites da sociedade civil — think tanks, universidades de prestígio e grande mídia — e ao complexo militar-industrial e à comunidade empresarial, que adotaram essa postura na esperança de abastecer as forças armadas dos EUA e obter acesso aos mercados norte-americanos. Tudo isso levou ao sequestro do pensamento político europeu em questões de política externa e à transformação da Europa em um ator subordinado à política externa dos EUA, uma situação que continua a persistir.
Dada a sua falta de autonomia em política externa, a Europa tem se mostrado disposta a apoiar a expansão da OTAN para o leste liderada por Washington na era pós-Guerra Fria. O objetivo dos Estados Unidos era criar uma nova ordem mundial na qual consolidariam sua posição como potência hegemônica, sem que nenhum país fosse capaz de desafiar seu domínio, como a União Soviética havia feito. O processo envolveu três etapas, seguindo o plano diretor articulado por Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA. Primeiro, expandir a OTAN para o leste para incorporar antigos países do Pacto de Varsóvia; Segundo, expandir a OTAN para o leste para incorporar antigas repúblicas soviéticas; Terceiro, concluir o processo com a divisão da Rússia em três estados.
A subserviência da Europa à liderança americana também explica a urgência paralela da União Europeia em se expandir para o leste. Teria sido muito fácil acessar as vantagens econômicas do mercado por meio de acordos de livre comércio, o que também teria possibilitado que empresas europeias aproveitassem a mão de obra barata da Europa Central e Oriental. Longe disso, o alargamento foi escolhido – apesar de ser extremamente dispendioso em termos económicos e de a Europa de Leste não ter uma tradição política democrática comum – porque consolidaria os estados-membros na órbita ocidental e encurralaria a Rússia; Ou seja, a expansão da UE para o leste complementou a expansão da OTAN para o leste.
Por fim, há também fatores idiossincráticos específicos de cada país que servem para explicar a adoção da loucura pela Europa. Um caso que ilustra a animosidade histórica em relação à Rússia é o do Reino Unido, cuja antipatia tem origem no século XIX, quando via a expansão russa na Ásia Central como uma ameaça ao seu domínio na Índia. Soma-se a isso o medo de que a Rússia ganhasse influência diante do declínio do Império Otomano, o que levou à Guerra da Crimeia. Hoje, a animosidade britânica em relação à Rússia decorre da Revolução Bolchevique de 1917 e do estabelecimento do governo comunista, da execução do Czar e sua família e do calote da União Soviética em empréstimos concedidos pela Grã-Bretanha durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1945, menos de seis meses após a assinatura do Acordo de Yalta com a União Soviética, Winston Churchill propôs a Operação Impensável, um plano que incluía o rearmamento da Alemanha e a continuação da Segunda Guerra Mundial contra a Rússia. Felizmente, o presidente Truman recusou. Após a Segunda Guerra Mundial, o serviço secreto britânico apoiou uma revolta na Ucrânia soviética liderada pelo fascista ucraniano e colaborador nazista Stepan Bandera. Este esboço histórico esclarece a extensão da animosidade da classe dominante britânica em relação à Rússia, um sentimento que persiste na concepção de política e segurança nacional hoje.
A expansão da UE para leste complementou a expansão da NATO para leste
Tudo o que foi semeado nessa longa e intrincada jornada histórica agora está sendo colhido com o conflito ucraniano. Dado seu status de ator subordinado, a Europa imediatamente apoiou a resposta dos EUA, apesar dos custos econômicos e sociais e do fato de que o conflito apelava à hegemonia dos EUA, não à segurança europeia.
Pior ainda: devido à expansão anterior da OTAN e da UE, essas instituições anexaram estados — como a Polônia e os países bálticos, entre outros — com uma aversão profunda e ativa à Rússia, tornando-os apoiadores ferrenhos da marcha da loucura. Como membro da OTAN, mesmo antes da intervenção militar da Rússia na Ucrânia, a Polônia acolheu com satisfação a implantação de instalações de mísseis que poderiam representar uma ameaça direta à segurança nacional da Rússia. Na mesma linha, e antes da intervenção na Ucrânia, os países bálticos insistiram na implantação de mais forças da OTAN em seu território.
Quanto à UE, ela escolheu deliberadamente líderes russofóbicos, como Ursula von der Leyen, atual presidente da Comissão Europeia. A mais recente nomeação foi a da estoniana Kaja Kallas, uma nacionalista extremista nomeada Alta Representante da União Europeia para Relações Exteriores e Política de Segurança. Kallas pediu abertamente a dissolução da Rússia e, durante seu mandato como primeira-ministra da Estônia, promoveu veementemente políticas contra a população étnica russa.
Mais papista que o Papa: os frutos políticos e económicos amargos da loucura
Paradoxalmente, foram os Estados Unidos, sob o governo Trump, que romperam com a estratégia bipartidária de segurança nacional dos EUA que defendia o cerco à Rússia e a escalada das tensões. Essa ruptura abre uma oportunidade para a Europa escapar da armadilha em que caiu devido à sua falta de visão política. Contudo, ele se mostra mais papista que o Papa; leal ao estado profundo americano que zela pela segurança nacional.
Tanto o presidente Macron quanto o primeiro-ministro Starmer estão falando sobre o envio unilateral de militares franceses e britânicos para a Ucrânia. Não há dúvida de que isso aumentaria drasticamente o conflito, além de evocar a estupidez dos eventos que levaram a Europa à Primeira Guerra Mundial. O governo trabalhista de Starmer também fala de uma "coalizão dos dispostos", ignorando o fato de que essa frase se refere à invasão ilegal do Iraque pelos EUA.
Enquanto isso, a União Europeia, com a aprovação do establishment político europeu , está promovendo um enorme plano de gastos militares de € 800 bilhões, financiado por títulos. A facilidade com que um plano foi elaborado com um orçamento desta magnitude diz muito sobre o caráter da UE. O dinheiro para o keynesianismo militar está prontamente disponível; O dinheiro para as necessidades da sociedade civil nunca está disponível por razões de responsabilidade fiscal. O Reino Unido, a Alemanha e a Dinamarca, entre outros países, também apresentaram propostas para aumentar seus próprios gastos militares.
Essa deriva prevê a consolidação de uma economia impulsionada pela guerra.
A mudança em direção ao keynesianismo militar terá um impacto macroeconômico positivo, pois é apoiada pelo complexo militar-industrial europeu, um dos principais beneficiários. É isso mesmo: eles fazem canhões, não manteiga. Pior ainda, essa deriva pressagia a consolidação de uma economia impulsionada pela guerra, sem espaço para política fiscal; Ou seja, sem espaço para investimento público em ciência e tecnologia, educação, habitação ou infraestrutura, áreas que realmente contribuem para o bem-estar.
Por outro lado, a mudança em direção ao keynesianismo militar terá consequências políticas negativas, pois fortalecerá a posição política e o poder do complexo militar-industrial e seus proponentes. A celebração do militarismo, por outro lado, está gradualmente permeando a percepção do eleitorado, fomentando o desenvolvimento de movimentos políticos reacionários mais amplos.
Em suma, espera-se que os frutos políticos e econômicos dessa marcha louca sejam amargos e tóxicos. A única maneira de evitá-los é que os liberais e os sociais-democratas europeus recuperem o bom senso, mas temo que as perspectivas sejam sombrias.
Thomas Palley é economista. Membro do grupo Economics for Democratic and Open Societies.Texto traduzido por Cristina Marey Castro .
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