Já se passaram quatro anos sem o psicanalista mais famoso do nosso país, que, não era brasileiro de nascimento, mas que observou nossas mazelas com mais atenção do que muitos que se dizem preocupados com elas
Railson Barboza
“O coletivo (a nação, o partido, o sindicato, a torcida, a gangue, o grupo adolescente de amigos, a própria família) não oferece apenas ideologias e desculpas: ele fornece uma função para cada um de seus membros. Com isso, não preciso pensar para decidir minha vida –preciso apenas preencher minha função. É bom o que é funcional ao grupo -ruim, o que não é”.
Em 2013, sob o título de “Meu vizinho genocida”, o artigo do psicanalista italiano escancarava a tentação do sujeito em se tornar instrumento de manipulação nas mãos de uma ideologia perniciosa e destrutiva. Já naquela época observávamos movimentos díspares em nossa sociedade, em especial no campo político, portadores de intenções que se concretizaram posteriormente. O rompimento com a normalidade se deu a partir do impulso das redes sociais, que se tornaram gradativamente um motor de sustentação aos que buscavam a hegemonia ideológica e o controle das tendências de modo geral. Todavia, como podemos observar atualmente, o cotidiano mudou. As formas de relacionamento e de conhecimento tiveram uma drástica mudança. O fenômeno das inteligências artificiais criou um universo paralelo e manipulável, ao ponto de não termos a certeza da veracidade de muitas informações. Bom, pensando sob a ótica do psicanalista italiano, será que vivemos um mundo novo ou só repetimos padrões que já aconteceram? Por qual motivo Calligaris, mesmo após quatro anos de sua passagem, ainda é tão atual?
Contardo Luigi Calligaris, nascido em 2 de junho de 1948, em Milão, observou o contexto histórico da queda do fascismo e sua continuidade através do cotidiano. Assim como diversos intelectuais italianos renomados, como os filósofos Umberto Eco e Norberto Bobbio, se tornou um antifascista ferrenho e crítico do autoritarismo. O autor conta em sua obra “O grupo e o mal: Estudo sobre a perversão social” (Editora Fosfóro, 2022) que descobriu, com muito atraso, a relação do passado de seu pai, um médico, na resistência a Segunda Guerra Mundial, sendo a maioria das informações adquiridas pelo seu irmão por incidentes ou fragmentos isolados. Diz o autor: “Só então ele [meu irmão] fez as contas e descobriu que era provável que tivesse passado o seu segundo ano de vida agarrado às costas do seu genitor, aos trancos e barrancos pelas montanhas da região da Grigna. Com minha mãe junto, é claro”. Ter passado pela experiência da perseguição durante esse período de caos na Itália proporcionou, para toda família, a criação de valores opostos ao totalitarismo. Foi imerso nesse molde que foi formado Contardo.
O movimento de observar a realidade nos causa estranheza ou até mesmo repulsa. Analisamos o outro sob o espelho dos nossos recalques e fragilidades. Em outras palavras, observamos o outro sempre pela matriz do eu, revelando inúmeras coisas sobre nossa própria conduta. Nossas ações e nossos julgamentos passam por essa matriz: a ação que tomo contra o outro, muitas vezes, nos revela o que mais detestamos em nós (ou quem realmente somos). Contardo, em seu livro publicado postumamente sob o título de O Sentido da Vida (Paidós, 2024), aponta para o componente essencial na ascensão e na perpetuação dos totalitarismos ao redor do mundo: o riso. Por quê? Se quando diminuímos o poder destrutivo de uma fala, de uma postura ou não combatemos um discurso travestido de “liberdade de expressão”, caímos na armadilha da “inofensibilidade”. O autor nos aponta que esses movimentos teriam menos chances de existir se a sociedade, de modo rigoroso e sistemático, nunca achasse “graça nas piadas dos idiotas”, “sobretudo quando nossa cumplicidade for covarde, como quando a gente se esforça a rir para não se indispor com um chefe ou para não contrariar a expectativa de alguém que imaginamos mais poderoso que a gente.” Isso explica muito bem o nascimento de alguns fenômenos em nosso país, não acha?
Umberto Eco nos apontou que a internet “deu voz ao idiota de aldeia”, que anteriormente era ignorado e passou a ter, com o advento das redes sociais, a mesma autoridade de qualquer outro especialista. Calligaris nos recorda que nem mesmo devemos dar voz, nem espaço para reflexão e qualquer reação, a não ser o de desprezo, aos mesmos idiotas. O mero sinal de cumplicidade é preocupante, visto que a vulgaridade presente nos discursos e posturas desses sujeitos não nos acendeu o sinal de alerta. Isso é muito preocupante. Os fascistas e seus simpatizantes, em geral, são definitivamente isso: vulgares. Sob a égide dessa mesma questão, Contardo nos interpelava: “por que a ideia de se transformar em instrumento (abdicando a subjetividade da gente) teve e continua tendo tamanho sucesso?”. A resposta não é descritiva ou aponta para um norte explicativo, mas vale a reflexão a partir dessa mesma problemática: “Para qual razão psíquica fundamental teríamos todos uma predisposição a sermos seres estúpida e covardemente coletivos? Por que preferiríamos ser funcionários do horror a conviver com as incertezas cotidianas do juízo moral? A resposta não cabe aqui. Mas a questão não envelheceu”.
Assim, mais do que procurar respostas para a inclinação dos sujeitos a aderirem ideais autoritários e excludentes, devemos repensar a nossa postura e como estamos nos comportando diante desse fenômeno. Esta é a entrelinha da fala de Contardo.
O psicanalista italiano, que adotou o Brasil como sua casa, foi um viajante do mundo. Sua primeira formação foi na Suíça, numa faculdade onde palestrava o famoso intelectual Jean Piaget, em Epistemologia Genética. Graduou-se em Letras e, posteriormente, se dedicou ao doutorado em Semiologia com o renomado mestre Roland Barthes. Seu interesse pela psicanálise nasce com sua experiência particular sendo analisado. O motivo do interesse pela psicanálise, segundo Calligaris, começou por conta de uma “forte gastrite nervosa”, que com o passar do tempo foi regredindo, graças à análise. Na Escola Freudiana de Paris tornou-se membro em 1975, frequentando durante esse período as apresentações de casos de pacientes ministradas pelo famoso psicanalista francês Jacques Lacan. Foi colunista do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo por 22 anos, além de diversos livros sob sua autoria.
Contardo experimentou o Brasil desde o momento que acabara de pisar, com o normal movimento de estranheza do primeiro encontro, e encontrou muitas semelhanças entre as “vulgaridades” vividas por ele no passado e a que nascia no país naquele momento. Obviamente, aconteceu uma postura radical de recusa dessa vulgaridade, enquanto razão suficiente, na luta contra os ideais autoritários que nasciam através da “normalidade” do cotidiano. Um discurso na internet, uma fala na TV, um comentário preconceituoso com tons de brincadeira, posturas pragmáticas sobre temas cautelosos e necessários, tudo isso se tornou tão trivial ao ponto de não mais nos assustar, configurando as diversas vulgaridades numa só.
João Paulo Ayub Fonseca, num texto escrito em 2022, diz que “o fascismo capitaliza o mal-estar (o medo, a insegurança, o ódio e a intolerância) e oferece em troca, na condição de um alívio provisório, o espetáculo midiático operado por um grande circo de bufões e criminosos que flertam com a violação da lei e dos mais básicos ideais humanitários”. O sujeito da massa que clama por um espaço de mídia, desejando o pertencimento a um ideal ou a um grupo, como reportava Calligaris, capitaliza e adere com maestria essa vulgaridade dos discursos. É palatável, mais fácil de digerir, mas esteticamente deplorável. Porém, nem todos estão preocupados com isso.
Contardo escolheu para si o Brasil como casa, mesmo se considerando um cidadão do mundo. Escolheu o Brasil e o analisou. Entretanto, certamente o Brasil o escolheu para ser seu analista e compartilhar suas crises existenciais. São quatro anos sem o psicanalista mais famoso de nosso país, que por curiosidade, não era brasileiro de nascimento, mas observou atentamente nossas mazelas mais do que muitos que se dizem preocupados por aí.
São quatro anos sem sua genialidade em desnudar a sociedade como um todo.
Railson Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF). Imortal da Academia Fluminense de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12