
Apelidado de “Qatargate”, os assessores do primeiro-ministro israelense são acusados de trabalhar direta ou indiretamente para Doha. (Design: Palestine Chronicle)
O Qatargate é importante porque revela quão próxima é a relação entre Doha e Tel Aviv, mas não fornece nenhum tipo de revelação de que Netanyahu tinha um pacto secreto para financiar o Hamas.
O mais novo escândalo de Israel envolvendo as supostas negociações do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu com o Catar gerou enorme reação negativa, mas está sendo amplamente mal interpretado pela grande mídia ocidental.
Apelidados de “Qatargate”, os assessores do primeiro-ministro israelense são acusados de trabalhar direta ou indiretamente para Doha.
A história do Qatargate foi originalmente exposta pelo jornalista israelense Bar Peleg para o Haaretz News em novembro. O que foi apresentado como furos reveladores dizia respeito a dois assessores de Netanyahu, Yonatan Urich e Srulik Einhorn, que foram acusados pelo Haaretz de usar sua empresa, a Perception, para “branquear” a imagem do Qatar.
As informações reveladas vieram de documentos de 2022 e, de acordo com o meio de comunicação israelense, uma campanha de influência na mídia foi lançada para mudar a percepção de Doha antes da Copa do Mundo da FIFA.
Mas a história não terminou com Urich e Einhorn. O porta-voz de Netanyahu para assuntos militares, Eli Feldstein, junto com Urich, foram presos como parte de uma investigação sobre o que foi apresentado como uma colaboração direta entre o gabinete do primeiro-ministro e o Catar.
Netanyahu não ficou em silêncio em tudo isso e retrata toda a situação como uma "caça às bruxas" que levou seus assessores a serem "mantidos como reféns", enquadrando toda a situação como uma conspiração do Shin Bet (agência de inteligência/segurança doméstica israelense) contra ele.
Compreendendo o escândalo
Para dar sentido a essa história de fora, ela tem que ser analisada por meio de um olhar crítico sobre os assuntos políticos domésticos israelenses e seu clima atual. Embora os fatos publicados pelo Haaretz e outros veículos de mídia israelenses sejam sólidos, algumas de suas interpretações são onde as coisas começam a cair em vieses.
Para começar, essa história não é exatamente nova, e o Haaretz já a vem expondo há algum tempo.
Também não houve nenhuma determinação sobre a gravidade do caso que está sendo investigado pelas autoridades israelenses, embora tecnicamente também não seja ilegal que alguém trabalhe em uma campanha de relações públicas pró-Catar.
Mas a questão nem começa com a cobertura da mídia israelense, em vez disso, ela está ligada a duas questões primárias que datam de anos atrás. Entender essas duas questões ajudará a informar quaisquer análises externas, ultrapassando os vieses e preconceitos antipalestinos que existem na imprensa israelense.
Essas são as transferências de dinheiro de ajuda do Catar para o Hamas e a tentativa do primeiro-ministro israelense de formar o que pode ser chamado de uma quase ditadura.
A relação Qatar-Israel
A relação entre Tel Aviv e Doha, embora não ratificada por nenhum acordo formal de normalização, tem sido bastante aberta há décadas.
Apesar do relacionamento ser complexo, já que o Catar historicamente financiou o Hamas e forneceu refúgio para a liderança do movimento, não há dúvidas de que os laços entre Israel e o Catar não são nenhuma novidade.
De fato, autoridades e civis israelenses viajam livremente para Doha há muito tempo, mesmo em momentos em que seus vizinhos proibiam isso oficialmente (em particular, havia visitas).
Para o público doméstico israelense, o principal problema que eles têm com o Catar é seu apoio ao Hamas e à Al-Jazeera, que tem trabalhado de muitas maneiras para minar Israel na esfera da mídia. Essa percepção do Catar como sendo um “financiador do terrorismo” é, portanto, uma arma política útil para qualquer oficial israelense usar contra o outro.
Em 2017, ocorreu uma grande mudança na dinâmica regional. O Catar foi colocado sob cerco por seus vizinhos, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (EAU), que exigiram o fim de seu apoio ao Hamas, grupos alinhados à Irmandade Muçulmana em geral, e a dissolução da Al-Jazeera.
A Autoridade Palestina (AP) também decidiu cortar e/ou reduzir significativamente os salários que historicamente concedeu a seus antigos funcionários e membros na Faixa de Gaza.
A decisão da AP veio em meio à pressão israelense que impediu que a receita tributária os alcançasse, além de outras pressões exercidas pelos EUA também, além de seus próprios problemas internos amplamente autoinfligidos que afetaram a economia da Cisjordânia. Isso também aconteceu logo após um acordo ser fechado entre a AP e o Hamas, que foi projetado para que a AP assumisse a administração civil da Faixa de Gaza.
O acordo de reconciliação Hamas-AP quase teve sucesso, com as forças da AP até mesmo se deslocando para a Travessia de Rafah e causando grandes celebrações por toda Gaza, por pessoas esperando ver o alívio do cerco. Os israelenses e americanos decidiram aplicar pressão, levando ao colapso da iniciativa.
No ano seguinte, em 30 de março de 2018, o povo de Gaza, de todo o espectro político, lançou um movimento de protesto em massa não violento pedindo o fim do bloqueio israelense.
Enquanto os antigos funcionários da AP perderam repentinamente seus meios de subsistência, os protestos foram uma tática que o Hamas decidiu endossar como um meio de tentar aliviar o bloqueio em Gaza. No final das contas, o Hamas não atirou em israelenses durante o período inicial dos protestos, apesar dos constantes ataques aéreos israelenses e do massacre de centenas de manifestantes desarmados.
Dezenas de milhares de manifestantes desarmados foram deliberadamente alvejados e feridos por fogo israelense, além das centenas que foram executadas, mas a mídia ocidental ignorou a questão ou tentou justificá-la. Nações ocidentais alegaram que Israel estava “defendendo sua fronteira” de ameaças inexistentes, enquanto a AP permaneceu em silêncio.
Um acordo com o Catar
À medida que as tensões começaram a ferver e o Hamas percebeu que havia esgotado todas as opções diplomáticas e não violentas, o governo israelense decidiu fechar um acordo com o Catar que permitia a transferência de pagamentos em dinheiro para Gaza que eram usados para subsidiar combustível e pagar salários. As transferências vieram na forma controversa de malas cheias de dinheiro, entregues por autoridades do Catar através de território controlado por Israel.
Netanyahu e seu governo haviam concedido aprovação para as transferências a fim de tentar impedir o Hamas de aplicar pressão militar sobre Israel, interrompendo o lançamento de foguetes, por exemplo. No início, essa tática funcionou, apesar dos repetidos surtos, iniciados por Israel a cada vez. Isso foi até 2021, quando a agressão de Israel em Jerusalém causou uma revolta, que foi seguida por uma resposta do Hamas que levou a um conflito de 11 dias.
Mais tarde naquele ano, Netanyahu foi deposto do governo, enquanto seus aliados e extremistas israelenses continuaram a invadir a soberania de Al-Aqsa enquanto intensificavam seu programa de limpeza étnica contra palestinos nativos de Jerusalém. Durante esse período, que levou à queda do governo de Netanyahu, críticas começaram a surgir para as transferências do Catar para o Hamas na imprensa israelense.
Quando Yair Lapid e Naftali Bennett formaram um governo de compartilhamento de poder entre 2021 e 2022, ambos assumindo o poder por um período de tempo cada, os fundos do Catar ainda estavam sendo processados, mas o método da mala foi alterado devido às críticas que surgiram.
Este ponto é fundamental, pois todas as figuras da oposição israelense que alegavam que Netanyahu era o único responsável pela transferência de dinheiro para o Hamas estavam quase todas também implicadas.
Então, após 7 de outubro de 2023, a mídia israelense que se opõe a Netanyahu e seus aliados da coalizão começou a espalhar alegações de que o primeiro-ministro estava "financiando o Hamas" e os havia "apoiado". Embora alguns desses relatórios revelem informações importantes, assim como algumas das investigações internas israelenses sobre 7 de outubro, eles também são publicados com propósitos políticos e estratégicos.
Antes do início do genocídio em Gaza, houve uma grande crise política entre a coalizão governante e a oposição por causa da iniciativa de reforma judicial de Benjamin Netanyahu.
O esforço foi visto por cerca de metade da população israelense como uma iniciativa positiva que já deveria ter sido tomada há muito tempo, enquanto a outra metade do país o viu como uma tentativa não apenas de derrubar o modelo de democracia liberal de Israel, mas também uma tentativa de judaizar sua nação secular.
Portanto, o governo Netanyahu acabou se tornando talvez o mais divisivo da história de Israel. Ele fez com que a Histadrut (União Trabalhista Israelense), grande parte do establishment da mídia de Israel, serviços de inteligência, tribunais, militares e um grande segmento da elite política tomassem medidas diretas para forçar o fim das políticas que estavam sendo impostas.
Centenas de milhares de israelenses protestaram semana após semana contra a coalizão governante. Todo esse contexto é realmente importante para entender o Qatargate e as diferentes linhas de propaganda adotadas quando se trata do assunto.
Implicações do Escândalo
O jornalista israelense responsável pela divulgação da história do Qatargate, Bar Peleg, apareceu recentemente no Haaretz Podcast.
Ao encerrar o segmento que cobria a história, Peleg fez uma admissão bastante reveladora, afirmando que as ações que ele havia descoberto não são necessariamente ilegais segundo a lei israelense e reconheceu que campanhas de influência financiadas por Doha também foram descobertas na Europa.
Ele afirmou que a questão central do escândalo era o fato de que o dinheiro da ajuda do Catar tinha sido usado para financiar o braço armado do Hamas, as Brigadas Qassam, que ajudaram a viabilizar o ataque de 7 de outubro.
Peleg afirma a alegação de que a ajuda do Catar havia financiado o Al-Qassam como se fosse um fato estabelecido. Essa alegação depende principalmente de uma investigação do Shin Bet israelense sobre os eventos de 7 de outubro, que concluiu que 4 milhões das transferências de 30 milhões de dólares estavam sendo desviadas para financiar o Al-Qassam.
Entretanto, nunca houve nenhuma evidência concreta para apoiar essa afirmação, apenas avaliações internas israelenses.
No final de março, duas reportagens — uma do Canal 12 de Israel e outra de sua emissora pública Kan — declararam que tanto o chefe da Diretoria Militar israelense quanto o Shin Bet alertaram Netanyahu em 2019 que o Hamas poderia estar canalizando milhões da ajuda do Catar para Mohammed al-Deif (comandante do al-Qassam).
Embora Netanyahu tenha negado que algum documento tenha sido entregue a ele, o que é esperado, ainda há algumas lacunas na lógica aqui e uma completa falta de provas.
Israel evidentemente tinha pouco conhecimento do funcionamento interno do braço militar do Hamas, o que fica evidente pelos inúmeros fracassos durante o ataque a Gaza.
Além disso, é um exagero acreditar que eles tenham recebido alguma evidência concreta de que Mohammed al-Deif estava especificamente recebendo os fundos, já que a quantidade de informações sobre ele era extremamente escassa e as várias tentativas de Israel de assassiná-lo durante a guerra foram anunciadas, antes de serem retiradas, com a confirmação de que ele havia sido morto só surgindo depois que o cessar-fogo de 19 de janeiro entrou em vigor.
A narrativa de Netanyahu aqui é que os 4 milhões que o Hamas estava enviando para Qassam, de acordo com as estimativas da inteligência israelense, não vinham das doações de ajuda do Catar. Basta dizer que esse ponto, tocado pela mídia israelense, não é um fato comprovado. Pode acabar se revelando verdade, mas simplesmente não há provas.
A evidência mais forte é o relatório do Shin Bet, que também diz que o financiamento iraniano e que os aliados de Netanyahu fazendo provocações na Jerusalém ocupada foram fatores contribuintes. Não é como se o relatório do Shin Bet estivesse culpando ou focando profundamente apenas nos 4 milhões supostamente enviados para al-Qassam. Além disso, todas as contas documentadas pareciam mostrar que o dinheiro havia sido gasto em coisas como combustível e salários.
O que precisa ser entendido aqui é que, apesar da veracidade das alegações sobre o que aconteceu com o dinheiro da ajuda do Catar, a questão está sendo usada como uma ferramenta política pela oposição de Benjamin Netanyahu. Uma oposição que tem exatamente a mesma posição racista sobre o povo palestino.
Muitas vezes, quando se analisam questões envolvendo Netanyahu, é deixado de lado na cobertura da mídia ocidental o fato de que Israel tem seus próprios problemas políticos internos, que ninguém se importa em explicar ou examinar criticamente.
Culpar o atual primeiro-ministro por tudo e tentar apresentá-lo como amigo do Hamas é uma linha usada por sionistas liberais que estão tentando transformar o ódio coletivo israelense pelos palestinos em uma arma para minar o primeiro-ministro internamente.
Políticos israelenses, assim como figuras do establishment no Shin Bet, Mossad e no exército, há muito tempo estão em contato com seus colegas no Catar, isso não é novidade. Foi revelado recentemente que Israel está participando ao lado do Catar, assim como de outros 11 países, em exercícios conjuntos de força aérea, o que refletiu mal tanto em Tel Aviv quanto em Doha.
O desespero de Netanyahu
O primeiro-ministro israelense está atualmente em uma batalha em andamento com o ex-chefe do Shin Bet, Ronen Bar, a quem ele demitiu contra a vontade do procurador-geral de Israel, a quem ele também demitiu.
Netanyahu está tentando desesperadamente manter sua coalizão extremista unida e, para fazer isso, ele está expurgando internamente todos que questionam suas táticas, substituindo essas pessoas por pessoas leais e bajuladores.
O desespero de Netanyahu é tão extremo que ele contratou elementos de seu próprio exército e serviços de inteligência, o que causou um conflito doméstico que muitas autoridades israelenses, antigas e atuais, ameaçaram que poderia causar uma guerra civil.
O Qatargate é importante porque revela quão próxima é a relação entre Doha e Tel Aviv, mas não fornece algum tipo de revelação de que o primeiro-ministro atualmente procurado pelo TPI por crimes de guerra tinha um pacto secreto para financiar o Hamas que possibilitou o dia 7 de outubro; que é a conclusão que a mídia israelense anti-Netanyahu está mais ou menos tentando retratar.
Não há dúvidas de que Benjamin Netanyahu desempenhou um papel na falha em prever o ataque do Hamas em 7 de outubro, mas colocar a culpa somente nele e fingir que ele é o único responsável pela derrota militar mais devastadora já infligida a Israel é simplesmente falso.
Embora a mídia israelense anti-Netanyahu possa não argumentar isso diretamente, ela tende a destacar os fracassos do primeiro-ministro israelense acima dos outros, e isso abre caminho para que analistas ocidentais, que não são versados na política interna israelense, tirem conclusões sobre uma conspiração entre Netanyahu e o Hamas.
(A Crônica Palestina)

– Robert Inlakesh é jornalista, escritor e documentarista. Ele se concentra no Oriente Médio, especializando-se na Palestina. Ele contribuiu com este artigo para o The Palestine Chronicle.
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