sábado, 5 de abril de 2025

Vôos interrompidos: o que restou do projeto de soberania nacional da Pan Air ao Gripen

Caça Gripen (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

O Gripen não caiu por obsolescência. Foi abatido em pleno voo por interesses geopolíticos que encontraram, na Lava Jato, seu míssil mais eficaz

Reynaldo Aragon e Sara Goes

Houve um momento, não muito distante, em que o Brasil ousou sonhar com soberania. Não apenas no discurso — mas nos sistemas, nos cabos, nos chips. Um projeto de país em que a defesa nacional não dependesse do humor de potências estrangeiras nem da assinatura de CEOs de multinacionais. Um projeto em que a Força Aérea voasse com aviões modernos construídos não só com metal e combustível, mas com ciência, pesquisa e soberania.

Esse projeto tomou forma no início da década de 2010, quando o Brasil optou por adquirir o caça sueco Gripen NG da Saab, dentro do programa FX-2. A decisão ia além da compra de aeronaves: previa a incorporação de tecnologia nacional, integração de armamentos desenvolvidos localmente, e fortalecimento da indústria de defesa brasileira — especialmente em sinergia com os países do sul global. O Brasil, como membro dos BRICS, apostava em um modelo de cooperação tecnológica entre nações não alinhadas à lógica militar da OTAN.

O coração desse projeto era a Mectron Engenharia, empresa brasileira que desenvolvia sistemas de mísseis, radares e comunicação. Sob controle da Odebrecht Defesa e Tecnologia (ODT), a Mectron participava do desenvolvimento do míssil A-Darter em parceria com a África do Sul, com o objetivo de armá-lo no Gripen nacional. Também era responsável por integrar datalinks brasileiros à aeronave. Era, enfim, uma tentativa real e concreta de criar um Gripen — com autonomia de decisão, operação e dissuasão.

Mas o ataque à soberania nacional não começou nos anos 2010.

Em 1965, a ditadura militar brasileira cassou arbitrariamente as operações da Panair do Brasil, companhia aérea fundada em 1929 e nacionalizada nos anos 1940, que até então era a maior da América Latina. A Panair foi muito mais que uma empresa de aviação: foi instrumento de integração nacional, com uma malha que conectava o Brasil profundo — inclusive o até então isolado Nordeste — às principais capitais do país e ao mundo. Suas aeronaves levavam engenheiros, projetos, equipamentos e autoridades para regiões que o Estado mal alcançava por terra. Ao cortar os voos da Panair, o regime militar não apenas entregou o setor aéreo a aliados econômicos: interrompeu um processo de costura territorial que dava ao Brasil a chance de se pensar inteiro, conectado e soberano.

A cassação da Panair foi o aviso: todo projeto de soberania que não se submeta será abatido em pleno voo.

Décadas depois, esse padrão se repetiria com novos nomes e métodos. A partir de 2014, a Operação Lava Jato passou a atuar como instrumento central da guerra híbrida contra o Brasil. O discurso anticorrupção serviu de cortina de fumaça para o desmonte das principais empresas de engenharia, petróleo e defesa do país. A ODT foi implodida. A Mectron, desintegrada. O projeto do míssil nacional, paralisado. A cadeia produtiva da soberania — rompida.

Com a destruição desses pilares, abriu-se espaço para a entrada de atores estrangeiros em áreas estratégicas. E foi nesse vazio que Israel avançou.

A Elbit Systems, gigante bélica israelense, assumiu o controle de sistemas fundamentais da defesa brasileira através de sua subsidiária AEL Sistemas, com sede em Porto Alegre. Entre seus encargos, está o fornecimento do capacete com visor integrado, dos sistemas eletrônicos embarcados e da guerra eletrônica do Gripen. Ou seja: a aeronave que deveria representar a autonomia dos BRICS agora depende de uma potência estrangeira acusada de crimes de guerra, com alianças militares profundas com os EUA e a OTAN.

Essa dependência é mais que tecnológica. Ela é estratégica e diplomática. Porque o Brasil, mesmo sob forte pressão da sociedade civil, não pode romper relações com o Estado de Israel. Não pode, ainda que o mundo inteiro tenha visto — e denunciado — o massacre sistemático do povo palestino na Faixa de Gaza, onde mais de 30 mil civis foram assassinados em menos de seis meses. Mesmo diante do apartheid escancarado, das imagens de crianças carbonizadas, de hospitais destruídos, de jornalistas e funcionários da ONU executados — o governo brasileiro responde com recuos diplomáticos, silenciado pela dependência cibernética, tecnológica e militar.

Romper relações com Israel hoje, ainda que justa e necessária do ponto de vista moral e humanitário, significaria enfrentar uma vulnerabilidade inaceitável no atual sistema de defesa nacional. Sistemas travariam. Dados seriam inacessíveis. Missões poderiam ser abortadas. É como se estivéssemos de mãos atadas, em nome de uma segurança que, no fundo, não nos pertence.

Essa condição colonial da era digital — em que a soberania se mede por controle de código-fonte e firmware — é o legado mais profundo da Lava Jato. Desmontou-se um projeto nacional em nome de uma falsa moralidade. Entregou-se a soberania a um Estado estrangeiro em nome de uma “blindagem” que cobra, em troca, silêncio diante do genocídio.

Agora, em 2025, há sinais tímidos de que o país tenta retomar as rédeas. O governo anunciou a estatização da Avibras, empresa de defesa com projetos de mísseis táticos e sistemas estratégicos de lançamento, ameaçada de falência após anos de abandono. Também foi anunciada a meta de elevar os gastos com defesa para 2,5% do PIB até 2030, com foco na reestruturação da indústria nacional e recuperação da capacidade de projetar poder com autonomia.

Mas esses passos são ainda hesitantes diante do estrago feito. Não há reconstrução soberana possível sem revisão profunda da cadeia de dependências tecnológicas que hoje impedem o Brasil de tomar decisões plenamente livres — inclusive no campo da política externa.

O Gripen não caiu por obsolescência. Foi abatido em pleno voo por interesses geopolíticos que encontraram, na Lava Jato, seu míssil mais eficaz. No lugar dele, voa hoje um caça moderno, ágil — e submisso.

Investir em defesa é urgente. Retomar empresas estratégicas como a Avibras, antecipar a entrega de submarinos nucleares e ampliar o orçamento militar são movimentos fundamentais para um país que deseja afirmar sua soberania diante de um cenário internacional cada vez mais conflagrado. No entanto, há uma lição amarga que a história recente nos ensina: não há soberania militar possível sem soberania informacional. Os milhões investidos em mísseis, sistemas navais e aviões de combate podem ser revertidos contra o próprio país caso a infraestrutura institucional, científica e tecnológica nacional não esteja protegida de golpes, sabotagens e retomadas autoritárias. Uma extrema-direita no poder, alinhada a interesses estrangeiros, pode colocar em risco todo o conhecimento acumulado, transferindo tecnologias críticas para empresas externas ou desmontando novamente nossas capacidades estratégicas — como já ocorreu após a destruição da Odebrecht Defesa e da Mectron. Por isso, a reconstrução da soberania nacional exige, antes de tudo, um pacto político e civilizacional pela soberania informacional: investimento em ciência, em redes seguras, em autonomia digital e, sobretudo, na estabilidade das instituições democráticas. A soberania se constrói com aço, mas se mantém com código-fonte, com democracia, com infraestrutura cognitiva e com povo mobilizado. Sem isso, toda tecnologia é apenas um vetor de colonização potencial.



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