sexta-feira, 8 de julho de 2022

Vivemos num mundo pré-furtadiano


Por ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA*
https://aterraeredonda.com.br/

Reflexões sobre o vazio estrutural do pensamento econômico ocidental

O título do artigo remonta ao vazio estrutural presente em boa parte do pensamento econômico ocidental. Aparentemente inexistem as ferramentas conceituais e um método minimamente objetivo e coerente que nos habilitem a captar as transformações recentes da economia-mundo capitalista.

Tomo a liberdade de utilizar um exemplo de economista não filiado ao pensamento ortodoxo e que goza de apreço junto aos heterodoxos, especialmente no Brasil, para realçar que esse vazio não é privilégio do pensamento hegemônico em economia.

Tenho simpatia por Dani Rodrik, professor da Escola de Governo da Universidade de Harvard. Ele não tem a pompa dos economistas neoliberais repletos de certezas. Realiza pesquisa rigorosa e não acredita numa teoria econômica universal. Conhece a realidade de várias economias da periferia, até por ter nascido na Turquia e estudado por lá. Em síntese, o pensamento econômico encontra-se melhor do que estaria sem a sua presença.

Portanto, nada contra Dani Rodrik. Ele cumpre o seu papel e o faz muito bem. Acontece, contudo, que o seu universo conceitual é limitado. Não nos ajuda a compreender o mundo e tampouco a transformá-lo. E vejam bem: dos espécimes de economistas com prestígio internacional, ele é – repito! – um dos melhores que temos.

Apresento abaixo algumas ideias de Dani Rodrik veiculadas em uma entrevista e três artigos, publicados no jornal Valor econômico no primeiro semestre de 2022. Em se tratando de intervenções para um público amplo, elas não revelam todo o seu pensamento. Mas são suficientes para o nosso objetivo, pois nos indicam como o autor organiza as suas ideias em torno dos conceitos que ele julga importantes.

Dani Rodrik

Para o economista de Harvard, desde os anos 1990, iniciou-se a era da “hiperglobalização”. Como o autor já havia “prognosticado” em obras anteriores, a hiperglobalização gerou tensões internas nas sociedades. Daí a necessidade de outro “tipo de globalização”, onde se encontre um “ponto de equilíbrio” entre a soberania nacional e a integração aos mercados internacionais de comércio e de investimentos.[i]

Em artigo de 12 de maio de 2022, dois meses após a sua entrevista, Rodrik afirma que a solução para os estragos da “hiperglobalização”, não é a “desglobalização”, mas uma “globalização melhor”. Que seja capaz de conciliar “as prerrogativas do Estado-nação e as exigências de uma economia aberta”. Trata-se, enfim, de “ressuscitar o espírito de Bretton Woods”, “quando a economia global trabalhava para os objetivos econômicos e sociais domésticos”.

Pelo que o autor sugere, no período pós-1945, houve outra “globalização”, a qual ele não nomeia, mas que parece ter sido mais saudável – para quem e em que países, Dani Rodrik não esclarece. Enfim, tudo mudou com a “hiperglobalização” dos anos 1990, quando se inverteu a lógica: a economia global se tornou o fim supremo, enquanto a sociedade (global), ou as várias sociedades, passaram a servir de meio.[ii]

Em livro de 2011, Dani Rodrik procura trazer uma inovação para o debate econômico internacional ao lançar o que ele chama de “trilema político fundamental da economia mundial”. No seu entender, não é possível conjugar simultaneamente democracia, soberania nacional e globalização econômica [iii]. Uma das “dimensões” deve ser atenuada em benefício das demais. Como não se pode sacrificar a democracia ou a soberania nacional, justamente o que teria ocorrido com a “hiperglobalização”, resta como alternativa tornar a “globalização” mais “inteligente” e sujeita a outras determinações.

A argumentação é elegante, bem-intencionada e até soa “progressista”. Mas não convence. Por quê? A “globalização” – “hiper”, “des” ou “melhor” – é apenas a fraude inocente[iv] utilizada em substituição ao termo que importa no debate, e que atende pelo nome de “capitalismo”. O leitor ou a leitora poderiam afirmar, com razão, que ele utiliza o termo mais corriqueiro no debate. Mas permito-me rebater dizendo que este não conceito se encaixa como uma luva, ou seja, é “conveniente”. Em que sentido?

A “globalização”, tal como conceituada por Dani Rodrik, sonega o fato de que o capitalismo na sua longa duração se concentra em determinados centros hegemônicos de alta acumulação, articulando ao seu redor por mecanismos os mais diversos, e sempre de maneira subordinada, as semi-periferias e as periferias.

E que, nestas economias, o trilema democracia, soberania nacional e globalização faz pouco sentido. Em vez do equilíbrio entre Estado-nação e economia aberta, o primeiro se vê comprometido pela imposição de certos padrões de inserção externa, o que, aliás, não é um produto da genérica “hiperglobalização”, pois está fundado em raízes históricas.

Dani Rodrik passa ao largo da complexidade do capitalismo, produzindo uma interpretação rasa. Chega a afirmar que a “globalização” é a extensão mundial do capitalismo,[v] como se ele avançasse como uma mancha a alcançar todos os países, que devem por sua vez fazer uso da soberania nacional conforme a sua concepção idealizada.

Ora, a expansão do modo de produção regido pelo capital, de Karl Marx em diante, apenas se entende a partir da sua manifestação mundial. As estratégias de desenvolvimento capitalistas construídas “nacionalmente” apenas se consumam quando logram superar as relações de dependência constituídas historicamente e estruturadas por meio de um sistema internacional hierárquico, como nos demonstra Celso Furtado.[vi]

No último artigo da série, Dani Rodrik critica o excepcionalismo estadunidense – “o que é bom para os EUA é bom para o mundo”[vii] – e a maneira como esta potência encara e reage à “ameaça” chinesa, o que apenas contribui, no seu entender, para aguçar as tensões internacionais.

EUA e China

O autor não entende este conflito geoeconômico e político como resultante do declínio da hegemonia dos Estados Unidos – pois a potência exerce agora uma dominação sem consentimento [viii] – e da correspondente ascensão chinesa, a única economia capaz de conciliar soberania nacional com uma inserção externa pautada por fins internos. Dessa forma, a “financeirização” e a “transnacionalização” das duas demais potências acabam servindo aos interesses da potência ascendente.

De quebra, a China empreende uma profunda transformação estrutural das suas forças produtivas, alterando assim a interação entre os velhos e o novo centro da economia-mundo capitalista, com impactos decisivos para as semi-periferias e as periferias[ix].

Dualismo produtivo

Em outro artigo da série publicada no Valor econômico, Dani Rodrik recupera o conceito de “dualismo produtivo”, o qual conforme a sua concepção “está no cerne da economia do desenvolvimento”. Para então citar Arthur Lewis como um dos expoentes deste “novo ramo da ciência econômica”.[x]

Dani Rodrik refere-se a um artigo clássico do economista caribenho, escrito em 1954. Na síntese do economista de Harvard, uma economia desenvolvida é aquela em que as tecnologias de alta produtividade prevalecem em toda a economia. Já nos países subdesenvolvidos, existe um estreito setor moderno que usa tecnologias de vanguarda e outro setor tradicional, com baixa produtividade.

No modelo de Lewis, seria possível saltar do “subdesenvolvimento” para o “desenvolvimento” por meio do controle das variáveis econômicas. O moderno cresceria ampliando os lucros com base no excedente da força de trabalho até que esta se esgotasse. Neste momento, um país desenvolvido novinho em folha viria ao mundo.

Não é possível saber se Dani Rodrik tem uma queda pelo didatismo reducionista, ou se a sua compreensão da “economia do desenvolvimento” deixa a desejar, mas a sacada que ele extrai do paralelo com Lewis é interessante: “o dualismo produtivo se tornou uma característica crítica e visível das economias avançadas”.[xi]

O seu problema está em comparar situações socioeconômicas que se diferenciam no tempo e no espaço, como se a história não trouxesse transformações estruturais. Na sua entrevista, Dani Rodrik se propõe a “juntar” história e teoria econômica para tirar a prova dos nove [xii]. O que é bem diverso de partir de uma “visão historicamente enraizada do desenvolvimento econômico”, tal como proposta por Hobsbawm[xiii].

Celso Furtado

Um dos principais expoentes dessa nova concepção metodológica sobre o desenvolvimento econômico durante o século XX foi o economista Celso Furtado. Não nos parece que as suas ferramentas conceituais e o método histórico-estrutural, que com ele chegou ao seu ápice na América Latina, sirvam de referência para os autores de renome internacional e inclusive para muitos dos heterodoxos brasileiros.

No primeiro caso, Celso Furtado foi relegado em grande medida à condição de marginal terceiro-mundista. Já no segundo caso, o mestre Furtado parece não contribuir para a boa colocação de papers no mercado internacional de revistas acadêmicas. Fica assim confinado ao campo do pensamento econômico, social e político brasileiro, com importantes contribuições produzidas pela academia nas últimas duas décadas.

Poderia citar outros intelectuais, não apenas economistas, que compartilharam da mesma perspectiva renovadora em termos metodológicos, levando a reflexão sobre o (sub)desenvolvimento para outro patamar. Mas o mote do texto, inscrito no seu título, é lançar a ideia de que vivemos num mundo “pré-furtadiano” em termos analíticos.

Como assim? Para Celso Furtado, por exemplo, não faz sentido pensar a “economia do desenvolvimento” como um “novo ramo da ciência econômica”. Já em livro de 1961 – depois de revelar na introdução que tateara “terras quase inexploradas” durante uma década, quando a simples referência a “diferenças estruturais” era encarada como uma insuficiente assimilação da teoria econômica –, ele é, enfim, capaz de vaticinar: a teoria do desenvolvimento não cabe dentro das categorias da análise econômica.[xiv]

Por meio de raciocínio por contraste, em vez do raciocínio analógico de boa parte da economia do desenvolvimento produzida por centro, ele comprova que as premissas do modelo teórico dominante são restritas, impedindo a ampliação do seu escopo – e exigindo, no limite, a sua ruptura – para dar conta dos inúmeros casos especiais.

Se a sua concepção do desenvolvimento permite esboroar as fronteiras entre o econômico e o não econômico, ele trata de esmiuçar, ao longo dos anos 1970, a transformação das relações entre centro e periferia a partir da nova unidade de comando econômico e político, representada pelas firmas transnacionais. A problemática desenvolvimento-subdesenvolvimento, agora subsumida à dominação-dependência, aponta para uma visão global do capitalismo que engendra uma constelação de formas sociais heterogêneas no centro e na periferia.[xv]

Na sua última obra teórica, Celso Furtado defende uma aproximação entre os processos de acumulação, de estratificação social e de concentração do poder, como essencial para se compreender o processo de atualização histórica do capitalismo e suas ramificações nos centros e nas periferias cada vez mais complexos e multifacetados, pois se diversificam os mecanismos de subordinação e dependência.

Impõe-se assim um processo de ressignificação dos seus conceitos fundamentais a partir de um olhar atento às descontinuidades, tal como no método histórico-estrutural por ele aprimorado. Do contrário ficaremos a ver navios, comandados pelo nonsense dominante ou pelo bom senso dos colunistas convenientes ao sistema, sem sabermos como o capitalismo realmente funciona nas suas várias configurações históricas e espaciais.

A história nunca fica lá atrás e nem está pronta para seguir adiante, se não houver método que reconstrua teoria e história simultaneamente e nos prepare para novas empreitadas de invenção cultural e transformação social.

*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia (Alameda).

 

Notas


[i] Entrevista de Dani Rodrik a Daniel Rittner, “A economia global mudou e ficará mais fragmentada”, in: Valor Econômico, p. A22, 15 mar. 2022.

[ii] RODRIK, D. “Uma globalização melhor pode surgir”, in: Valor Econômico, A19, 12 mai. 2022.

[iii] RODRIK, D. The globalization paradox: democracy and the future of the world economy. New York, W.W. Norton, 2011, p. xviii-xiv.

[iv] GALBRAITH, J. K. A economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 11.

[v] RODRIK, 2011, p. 233.

[vi] FURTADO, C. Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 114-116.

[vii] RODRIK, D. “O outro lado do excepcionalismo dos EUA”, in: Valor Econômico, A15, 9 jun. 2022.

[viii] ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996, p. 27-31.

[ix] Para um aprofundamento desta argumentação, ver BARBOSA, A. F. “A ascensão chinesa, as transformações da economia-mundo capitalista e os impactos sobre os padrões de comércio na América Latina”, in: Revista Tempo do Mundo, IPEA, n. 24, 2020.

[x] RODRIK, D. “Desenvolvimento rumo ao Norte”, in: Valor Econômico, A15, 13 abr. 2022.

[xi] Idem, ibidem.

[xii] RODRIK, D.“A economia global mudou e ficará mais fragmentada”, in: Valor Econômico, p. A22, 15 mar. 2022.

[xiii] HOBSBAWM, E. “Sobre história”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 107, 119-120.

[xiv] FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, 3ª. edição. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965, p. 11, 16 e 87.

[xv] FURTADO, C. Introdução ao Desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural, 3ª. edição revista pelo autor. São Paulo: Paz e Terra, 2020, p. 26-30, 75-76.

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