O exercício do poder social real tem de ser legitimado. Ninguém obedece sem razão. No mundo moderno, quem cria a legitimação do poder social que será a chave de acesso a todos os privilégios são os intelectuais. Pensemos na Lava Jato e em sua avassaladora influência na vida do país. A “limpeza da política” que o procurador Deltan Dallagnol, o intelectual da operação, preconiza para o país é uma mera continuidade da reflexão de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro, como veremos em detalhe mais adiante. Certamente Faoro não seria tão primário e oportunista, mas, independentemente de suas virtudes pessoais, são suas ideias de que o Estado abriga uma elite corrupta que vampirizaria a nação que legitimam toda a ação predadora do direito e das riquezas nacionais comandada pela Lava Jato.
O que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional ávido por “privatizar” a riqueza social em seu bolso. Destruir a Petrobras, como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a mando da elite do atraso, destruiu, significa empobrecer o país inteiro de um recurso fundamental, apresentando, em troca, não só resultados de recuperação de recursos ridículos de tão pequenos, mas principalmente levando à destruição de qualquer estratégia de reerguimento internacional do país. Essas ideias do Estado e da política corrupta servem para que se repasse empresas estatais e nossas riquezas do subsolo a baixo custo para nacionais e estrangeiros que se apropriam privadamente da riqueza que deveria ser de todos. Essa é a corrupção real. Uma corrupção legitimada e tornada invisível por uma leitura distorcida e superficial de como a sociedade e seus mecanismos de poder funcionam.
A construção de uma elite toda poderosa que habitaria o Estado só existe, na realidade, para que não vejamos a elite real, que está “fora do Estado”, ainda que a “captura do Estado” seja fundamental para seus fins. É uma ideia que nos imbeciliza, já que desloca e distorce toda a origem do poder real. Nesse esquema, se fizermos uma analogia com o narcotráfico, os políticos são os “aviõezinhos” do esquema e ficam com as sobras do saque realizado na riqueza social de todos em proveito de uma meia dúzia. Combater a corrupção de verdade seria combater a rapina, pela elite do dinheiro, da riqueza social e da capacidade de compra e de poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e atravessadores financeiros.
O “imbecil perfeito” é criado quando ele, o cidadão espoliado, passa a apoiar a venda subfaturada desses recursos a agentes privados imaginando que assim evita a corrupção estatal. Como se a maior corrupção – no sentido de enganar os outros para auferir vantagens ilícitas – não fosse precisamente permitir que uma meia dúzia de super-ricos ponha no bolso a riqueza de todos, deixando o resto na miséria. Essa foi a história da Vale, que paga royalties ridículos para se apropriar da riqueza que deveria ser de todos, e essa será muito provavelmente a história da Petrobras. Esse é o poder real, que rapina trilhões e ninguém percebe a tramoia, porque foi criado o espantalho perfeito com a ideia de Estado como único corrupto.
É por conta disso que a crítica das ideias dominantes é tão importante. Combatê-las é iniciar um processo de aprendizado para nos libertarmos da situação de imbecilidade e idiotia na qual fomos, todos nós, levados pela estratégia de legitimação do poder real no nosso país. Por conta disso, temos que examinar de que modo “a interpretação dominante” do país ajudou e pavimentou o trabalho sujo da mídia de distorção sistemática da realidade. Sem essa ajuda dos intelectuais mais respeitados entre nós, que produziram uma interpretação falsamente crítica de nossa realidade, a mídia não poderia ter feito seu trabalho de modo tão fácil e que penetrou tão profundamente no imaginário da população.
Como não quero repetir argumentos já explicitados em outros livros, muito especialmente no A tolice da inteligência brasileira,2 farei aqui algo distinto. Como a falsa interpretação dominante, vendida como crítica social entre nós, se baseia na efetiva negação da escravidão como nossa semente societária, vou procurar reconstruir os principais elementos da gênese escravista e procurar perceber sua influência até hoje.
O presente não se explica sem o passado, e apenas a explicação que reconstrói a gênese efetiva da realidade vivida pode, de fato, ter poder de convencimento. Essa é, inclusive, a razão da força de convencimento do culturalismo conservador entre nós. Ele supostamente explica tudo sem lacunas. Mas, antes de tudo, vamos explicitar, brevemente que seja, como a semente escravista foi silenciada e substituída por uma interpretação falsa cientificamente e conservadora politicamente. Foi isso que a fez servir tão bem de pressuposto implícito para todo o ataque midiático de hoje em dia.
O trabalho de distorção sistemática da realidade realizado pela mídia foi extremamente facilitado pelo trabalho prévio de intelectuais que forjaram a visão dominante, até hoje, da sociedade brasileira. Como os pensadores que estudam as regras da produção de conhecimento e da ciência sabem muito bem, todo o conhecimento humano é limitado historicamente. Isso significa que, durante décadas e até séculos, todo o conhecimento humano é dominado por um “paradigma” específico.3 Um “paradigma” é o horizonte histórico que define os pressupostos para qualquer tipo de conhecimento. Normalmente, todas as pessoas são influenciadas pelo paradigma na qual são criadas e ninguém, em condições normais, pensa além de seu tempo.
Isso acontece tanto nas ciências exatas quanto nas ciências humanas. Na medicina, por exemplo, antes do conhecimento da ação de microrganismos na produção das doenças, imaginava-se que as doenças eram causadas por fluidos misteriosos que se apoderavam dos corpos, daí o uso das sangrias e das ventosas no tratamento dos doentes. O avanço efetivo do conhecimento se dá, portanto, com a “superação de paradigmas” envelhecidos mais do que pela mera adição de conhecimentos dentro do contexto de paradigmas superados.
O mesmo acontece no contexto das ciências humanas ou sociais. Uma das teses fundamentais que venho defendendo nos meus livros há quase vinte anos é a de que a percepção da sociedade brasileira é dominada por uma interpretação que se traveste de científica e que constitui um “paradigma” específico. Como dentro de um mesmo paradigma convivem interpretações que parecem, inclusive, ser opostas, quando são, no máximo, a imagem invertida no espelho de algo muito semelhante, a questão principal para a superação dos paradigmas científicos é perceber seus pressupostos. É necessário ganhar distância em relação àquilo, precisamente, que é percebido como óbvio e evidente por todos.
Em uma medicina, por
exemplo, cujo pressuposto seja de que as doenças são causadas por fluidos misteriosos
que se apoderam do corpo, a mera substituição ou até a inversão de práticas
consagradas de cura em nada muda o “paradigma” dominante. Ao contrário, a
crítica dentro de um mesmo paradigma só o torna ainda mais forte como
referência fundamental, seja para quem concorda ou para quem quer “inovar”. A
inovação possível dentro de um mesmo paradigma é sempre superficial e nunca
sequer toca o aspecto principal.
As ciências sociais também possuem seus paradigmas históricos. Apenas para citar uma modificação mais recente e importante para nossos objetivos, é interessante notar a passagem do paradigma “racista” para o “culturalista” nas ciências sociais. Até a década de 1920, o racismo fenotípico, baseado na cor da pele e nos traços fisionômicos, era reconhecido como ciência tanto internacionalmente como nacionalmente. Era ele que esclarecia, por exemplo, a questão fundamental de explicar a diferença de desenvolvimento entre os diversos povos. Pouco a pouco esse tipo de racismo foi criticado e substituído pelo culturalismo. O culturalismo julgava ter vencido o paradigma racista e tê-lo superado por algo não só cientificamente superior, mas também moralmente melhor.
Afinal, não seria mais simplesmente habitar um corpo com certas características fenotípicas ou certa cor de pele que explicaria o comportamento das pessoas, mas, sim, o estoque cultural que ela herda. Essa explicação tornou-se tão dominante que ela rapidamente saiu dos círculos científicos e tomou o senso comum que compõe o conjunto de crenças dominantes compartilhadas pela esmagadora maioria de indivíduos de uma sociedade.
O culturalismo tornou-se uma espécie de “senso comum internacional” para a explicação das diferenças sociais e de desenvolvimento relativo no mundo inteiro. O instante de ouro do culturalismo foi a entronização da teoria da modernização produzida especialmente nos EUA do segundo pós-guerra e disseminada a partir daí no mundo inteiro. Ela explicava precisamente o porquê de algumas sociedades serem ricas e adiantadas e outras pobres e atrasadas. Os EUA foram assim transformados em modelo exemplar para o mundo, e comparações empíricas4 com outros países foram realizadas em escala massiva para demonstrar que os EUA eram o paraíso na terra e todos os outros países, realizações imperfeitas desse modelo.
Na base desse argumento estava a herança cultural do protestantismo individualista americano como paradigma insuperável para a constituição de uma sociedade rica e democrática. Talcott Parsons mobilizou seu prestígio e sua inteligência para esse fim, e as melhores cabeças nos EUA e no mundo se prestaram a esse serviço, que foi regiamente financiado pelo governo americano tanto nos EUA, quanto nos outros países, inclusive no Brasil.5
Ainda que a teoria da modernização, enquanto conhecimento de vanguarda, tenha deixado de ser sexy com o tempo, sendo criticada pelos seus seguidores mais conscientes,6 ela ainda é um pressuposto implícito de tudo que se faz nessa área até hoje. Embasa as análises não só do Banco Mundial e do FMI e de todos os órgãos internacionais, como também de todas as “teorias” dominantes no mundo. Mesmo os pensadores mais críticos e talentosos nunca a criticaram enquanto um pressuposto intocável da percepção da diferença de desenvolvimento entre os países.7
A mídia no mundo todo repete, reproduz e amplia, como se isso tudo fosse conhecimento real e indisputado, esse tipo de percepção para seus ouvintes e leitores. Afinal, a mídia não produz conhecimento. Ela apenas distribui e eventualmente, como no nosso caso, em um contexto de total desregulação do trabalho midiático, enfatiza alguns aspectos e encobre outros tantos de acordo com seus objetivos comerciais e políticos. Mas ninguém na mídia “cria” conhecimentos. O prestígio do conhecimento percebido como autêntico é sempre produto de especialistas treinados. A mídia está condenada a se utilizar desse material, daí uma percepção adequada e crítica do conhecimento tido como científico ser tão importante para uma análise não só do papel político da mídia, mas das crenças que as pessoas compartilham na vida cotidiana sem qualquer defesa contra seus efeitos.
Minha tese, no entanto, não é apenas a de que as ciências sociais no mundo todo ainda estão sob o domínio total – na área da produção científica dominante – ou sob domínio parcial – na área da produção científica crítica – do paradigma da teoria da modernização. Minha segunda tese, nesse contexto, é a de que o paradigma culturalista é, na verdade, uma falsa ruptura com o racismo científico “racial”. E minha terceira tese é a de que as ciências sociais dominantes no Brasil repetem esse mesmo esquema e esse mesmo falso rompimento com o “racismo científico” da cor da pele. Ou seja, caro leitor, em resumo, ainda estamos tratando as doenças nas ciências sociais brasileiras como se essas fossem produto de fluidos misteriosos no corpo e não causadas pela ação de microrganismos.
O falso rompimento com o racismo científico é de fácil comprovação. Quando se apela para o “estoque cultural” para explicar o comportamento diferencial de indivíduos ou de sociedades inteiras, temos sempre um aspecto central dessa ideia que nunca é discutido ou percebido: seu racismo implícito. Em outras palavras, o culturalismo da teoria da modernização – e de nosso culturalismo tupiniquim também, como veremos – é uma continuação com outros meios do racismo científico da cor da pele e não a sua superação. Os dois fazem parte, portanto, do mesmo paradigma e ambos continuam a achar que são fluidos misteriosos que causam as doenças.
Onde reside o racismo implícito do culturalismo? Ora, precisamente no aspecto principal de todo racismo, que é a separação ontológica entre seres humanos de primeira classe e seres humanos de segunda classe. Iremos, no decorrer deste livro, usar o termo “racismo” não apenas no seu sentido mais restrito de preconceito fenotípico ou racial. Iremos utilizá-lo também para outras formas de hierarquizar indivíduos, classes e países sempre que o mesmo procedimento e a mesma função de legitimação de uma distinção ontológica entre seres humanos sejam aplicados. Afinal, essas hierarquias existem para servir de equivalente funcional do racismo fenotípico, realizando o mesmo trabalho de legitimar pré-reflexivamente a suposta superioridade inata de uns e a suposta inferioridade inata de outros.
Quando os teóricos da modernização de ontem e de hoje dizem que o protestantismo individualista, tipicamente americano, cria seres excepcionais, mais inteligentes, produtivos e moralmente superiores, esvai-se qualquer diferença com o racismo científico que separa as pessoas pela cor da pele. Pior ainda. Ao substituir a raça pelo estoque cultural, dá a impressão de cientificidade, reproduzindo os piores preconceitos. Os seres superiores seriam mais democráticos e mais honestos do que os inferiores, como os latino-americanos, por exemplo. Tornam-se invisíveis os processos históricos de aprendizado coletivo e se criam distinções tão naturalizadas e imutáveis quanto a cor da pele ou supostos atributos raciais.
O culturalismo, falso cientificamente como ele é, cumpre assim exatamente as mesmas funções do racismo científico da cor da pele. Presta-se a garantir uma sensação de superioridade e de distinção para os povos e países que estão em situação de domínio e, desse modo, legitimar e tornar merecida a própria dominação. Hoje em dia, na Europa e nos EUA, absolutamente ninguém deixa de se achar superior aos latino-americanos e africanos. Entre os melhores americanos e europeus, ou seja, aqueles que não são conscientemente racistas, nota-se o esforço “politicamente correto” de se tratar um africano ou um latinoamericano como se este fosse efetivamente igual. Ora, o mero esforço já mostra a eficácia do preconceito que divide o mundo entre pessoas de maior e de menor valor. A desigualdade ontológica efetivamente sentida, na dimensão mais imediata das emoções, tem que ser negada por um “esforço” do intelecto que se policia. Os rituais do politicamente correto são explicáveis em grande medida por esse fato.
Isso ajuda as camadas dominantes dos países centrais a legitimar seu próprio sistema social para seu “povo”, que não deve reclamar do seu sistema posto que seria superior aos outros. E ajuda as mesmas camadas superiores internacionalmente, já que é mais fácil expropriar riquezas de povos que se acham mesmo inferiores e desonestos. O raciocínio do tipo “entregar a Petrobras para os estrangeiros é melhor que deixá-la para nossos políticos corruptos” se torna justificável precisamente nesse contexto, apesar de absurdo.
Cria-se, com isso, uma mentalidade do “senhor”, dos países que mantêm uma divisão internacional do trabalho que os beneficia como “merecimento”, e uma mentalidade de “escravo”, daqueles povos criados para a obediência e para a subordinação. Esse dado da superioridade dos outros é percebido por todos como tão óbvio quanto o fato de que o Sol se põe todos os dias para nascer de novo no dia seguinte. É um pressuposto tão óbvio para os indivíduos comuns como o é para os especialistas.
O racismo culturalista passa a ser uma dimensão não refletida do comportamento social, seja na relação entre os povos, seja na relação entre as classes de um mesmo país. Um brasileiro de classe média que não seja abertamente racista também se sente, em relação às camadas populares do próprio país, como um alemão ou um americano se sente em relação a um brasileiro: ele se esforça para tratar essas pessoas como se fossem gente igual a ele. O que antes era ciência passa a ser, por força dos meios de aprendizado, como escolas e universidades, e meios de divulgação, como jornais, televisão e cinema, crença compartilhada socialmente. Por força tanto da legitimidade e do prestígio da ciência quanto do poder de repetição e convencimento midiático, as pessoas passam a pensar o mundo de tal modo que favorece a reprodução de todos os privilégios que estão ganhando.
Que pressuposto é esse que todos, especialistas ou não, se utilizam implicitamente sem jamais refletir sobre ele? O pressuposto nunca refletido no caso é a separação da raça humana entre aqueles que possuem espírito e aqueles que não o possuem, sendo, portanto, animalizados e percebidos como corpo. A distinção entre espírito e corpo é tão fundamental porque a instituição mais importante da história do Ocidente, a Igreja Cristã, escolheu como caminho para o bem e para a salvação do cristão a noção de virtude como definida por Platão. Este, por sua vez, definia a virtude nos termos da necessidade de o espírito disciplinar o corpo percebido como habitado por paixões incontroláveis – o sexo e a agressividade à frente de todas – que levariam o indivíduo à escravidão do desejo e à loucura.8
Note bem, leitor, que não foi a leitura de Platão – em uma época em que pouquíssimos sabiam ler – que fez com que essa hierarquia nos penetrasse de tal modo que hoje a percebemos como tão óbvia e pré-reflexiva quanto o ato de respirar. Foi o trabalho diário, secular e silencioso de milhares de padres e monges que todos os dias, primeiro na Europa e depois nas regiões mais remotas, incutia nos camponeses e nos citadinos essa noção muito particular de virtude como necessária para a salvação. E isso em uma época histórica na qual as pessoas tinham a salvação no outro mundo como ponto fundamental de suas vidas.
É assim, afinal, que as ideias dominantes passam a determinar a vida das pessoas comuns e seu comportamento cotidiano sem que elas tenham qualquer consciência refletida disso. Ela, a ideia, une-se a interesses – no caso o interesse religioso de angariar fiéis – e passa pela ação institucional que cria os seus agentes, sacerdotes e monges, e uma ação continuada no tempo em uma dada direção e um conteúdo específico. É precisamente essa ação continuada no tempo, atuando sempre em um mesmo sentido, que logra mudar a percepção da vida e, portanto, em consequência, o comportamento prático e a vida real e concreta como um todo para uma enorme quantidade de pessoas.
Foi por conta dessa ação institucional, primeiro religiosa, e depois, hoje em dia, pela ação da mídia e da indústria dos bens de consumo cultural, como cinema e livros populares, que essa hierarquia moral que separa os homens e as mulheres em seres de primeira e de segunda classe ganhou nossos corações e nossas mentes. Ela manda em nossas ações e nossos pensamentos ainda mais pelo fato de nunca sequer termos jamais refletido acerca de sua influência no nosso comportamento diário e na nossa vida como um todo. Sem a consciência crítica da ação dessas ideias sobre nosso comportamento, somos todas vítimas indefesas de uma concepção que nos domina sem que possamos sequer esboçar reação.
Como nunca refletimos sobre essa ideia-força e suas consequências, ela se presta como nenhuma outra a separar e hierarquizar o mundo de modo prático e muito diferente da regra jurídica da igualdade formal. Ela é, inclusive e por conta disso, muito mais eficaz que todos os códigos jurídicos juntos. Não só a separação entre povos e países, mas também entre as classes sociais, entre os gêneros e entre as “raças”, é construída e passa a ter extraordinária eficácia prática precisamente por seu conteúdo aparentemente óbvio e nunca refletido.
Afinal, as classes superiores são as classes do espírito, do conhecimento valorizado, enquanto as classes trabalhadoras são do corpo, do trabalho braçal e muscular, que as aproxima dos animais. O homem é percebido como espírito, em oposição às mulheres definidas como afeto. Daí a divisão sexual do trabalho, que relega as mulheres ao trabalho invisibilizado e desvalorizado na casa e no cuidado dos filhos. Nós não refletimos nunca acerca dessas hierarquias, assim como não refletimos sobre o ato de respirar. É isto que as fazem tão poderosas: elas se tornam naturalizadas. Esquecemos que tudo que foi criado por seres humanos também pode ser refeito por nós.
Como não percebemos essas hierarquias, elas mandam em nós todos de modo absoluto e silencioso. O fato de não as percebermos facilita enormemente seu efeito perverso. No caso das mulheres, das quinhentas maiores empresas do mundo, 492 são dirigidas por homens. De algum modo, essa hierarquia perversa está na cabeça também dos que escolhem os CEO das grandes empresas, fazendo com que os homens sejam maioria esmagadora.
Se essa hierarquia moral é invisível para nós, seus efeitos, ao contrário, são muitíssimo visíveis. O mesmo esquema possibilita que o branco se oponha ao negro como superior também pré-reflexivamente. Mesmo as supostas virtudes do negro são ambíguas, posto que o animalizam com a força física e o apetite sexual. O grande problema dessas hierarquias que se tornam invisíveis e pré-reflexivas é sua enorme eficácia para colonizar a mente e o coração também de quem é inferiorizado e oprimido.
Nos EUA e na Europa, essas ideias que os elevam e dignificam servem para espalhar um sentimento de superioridade difuso que abrange toda a sociedade. Ele serve, portanto, como legitimação interna nesses países e é uma espécie de equivalente funcional do colonialismo anterior: serve para justificar e sacralizar todas as relações fáticas de dominação na ordem mundial. O culturalismo do mais forte serve também, muito especialmente nos EUA, a prestar o mesmo serviço que o racismo contra os negros sempre possibilitou nos EUA: dotar a classe baixa dos brancos do Sul do país de um orgulho racial para compensar a sua pobreza material relativa se comparada aos brancos mais ricos do Norte.
A vantagem comparativa do culturalismo racista sobre o racismo clássico é que, como não se vincula à cor da pele, até os negros americanos podem se sentir superiores, por exemplo, aos latinos e estrangeiros. A utilidade prática desse racismo ocultado, que é o culturalismo para os países dominantes e, muito especialmente, para suas classes dominantes, é muito maior que a do racismo explícito que vigorava antes.
Como se deu a construção do paradigma racista/culturalista entre nós? Como é possível que alguns de nossos indivíduos mais inteligentes tenham construído concepções de mundo que nos humilham, nos rebaixam e nos animalizam? Isso tudo pensado como se fosse destino imutável? Que americanos e europeus se deixem colonizar por esse tipo de concepção de mundo que os dignifica é lamentável, mas é compreensível. Afinal, se retiram vantagens bem concretas desse fato. Que os latino-americanos em geral e os brasileiros em particular tenham se deixado e ainda se deixem, até os dias de hoje, colonizar por uma concepção racista e arbitrária que os inferioriza e lhes retira a autoconfiança e a autoestima não é apenas lamentável. É uma catástrofe social de grandes proporções. Como as ideias são fundamentais para a ação prática, jamais seremos um povo altivo e autoconfiante enquanto permanecermos vítimas indefesas desse preconceito absurdo.
Não teria se realizado tamanho ataque midiático baseado nesse racismo contra si mesmo, na noção de corrupção como dado cultural brasileiro, como fundamento de todos os golpes de Estado, e jamais teria se realizado um embuste de proporções gigantescas como a operação Lava Jato, sem esse pressuposto conferido pelas ideias dominantes contra as quais não temos defesa consciente. Afinal, é preciso convencer todo um povo que ele é inferior não só intelectualmente, mas, tão ou mais importante, também inferior moralmente. Que é melhor entregar nossas riquezas a quem sabe melhor utilizá-las, já que outros são honestos de berço, enquanto nós seríamos corruptos de berço.
Além disso, se juntamos o preconceito do suposto patrimonialismo congênito, com o Estado como lugar da elite corrupta, com a noção antipopular e preconceituosa de “populismo”, também produto de intelectuais, que diz que nosso povo é desprezível e indigno de ajuda e redenção contaminando toda a política feita em seu favor, explicamos em boa parte a miséria da população brasileira. A colonização da elite brasileira mais mesquinha sobre toda a população só foi e é ainda possível pelo uso, contra a própria população indefesa, de um racismo travestido em culturalismo que possibilita a legitimação para todo ataque contra qualquer governo popular.
Todo racismo, inclusive o culturalismo racista dominante no mundo inteiro, precisa escravizar o oprimido no seu espírito e não apenas no seu corpo. Colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso. De nada adianta americanos e europeus proclamarem suas supostas virtudes inatas, se africanos, asiáticos e latino-americanos não se convencerem disso. Do mesmo modo, de nada adianta nossa elite do dinheiro construir uma concepção de país e de nação para viabilizar seus interesses venais se a classe média e a população como um todo não for convencida disso.
É aí que entram os intelectuais com seu prestígio e a mídia com seu poder de amplificar e reproduzir mensagens com duplo sentido: mensagens que fazem de conta que esclarecem o mundo como ele é, mas que, no fundo, existem para retirar das pessoas toda compreensão e toda defesa possível.
Ninguém na mídia cria nenhuma ideia. Falo aqui, obviamente, de ideias-força, aquele tipo de pensamento que conduz uma sociedade em um sentido ou em outro e é restrito a intelectuais e especialistas treinados. A mídia retira seu poder de fogo desse reservatório de ideias dominantes e consagradas. Ela é limitada no seu alcance pelo prestígio que essas ideias e seus autores, que ela veicula, desfrutam em uma sociedade.
Daí que seja fundamental perceber como as ideias são criadas e qual o seu papel na forma como a sociedade vai definir seu caminho específico. Não apenas a mídia, mas também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática, quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo repositório de ideias. Novamente, não somos formigas. Em vez de um código genético que define por antecipação o comportamento das formigas e das abelhas, nós só podemos construir e reproduzir um padrão de comportamento por força de ideias que nos ajudam a interpretar o mundo. Afinal, são essas ideias que irão esclarecer os indivíduos e as classes sociais acerca de seus objetivos, interesses e conflitos. Como não somos abelhas nem formigas, mas um tipo de animal que interpreta a própria ação, toda a nossa ação no mundo é influenciada, quer saibamos disso ou não, por ideias. São elas que nos fornecem o material que nos permite interpretar nossa própria vida e dar sentido a ela.
Por conta disso, quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. Por conta disso também, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece no mundo de acordo com seus interesses.
No mundo moderno, a dominação de fato tem quer ser legitimada cientificamente. Quem atribui prestígio hoje em dia a uma ideia é o prestígio científico, assim como antes era o prestígio religioso ou supostamente divino. É a ciência hoje, mais que a religião, quem decide o que é verdadeiro ou falso no mundo. Por conta disso, toda informação midiática, no jornal ou na TV, procura se legitimar com algum especialista na matéria que esteja sendo discutida. Nessa estratégia de dominação, que é mais simbólica que material, é a posse do que é tido como verdadeiro que permite também se apoderar do que é percebido como justo e injusto, honesto e desonesto, correto ou incorreto, bem ou mal e assim por diante. Controla-se a partir do prestígio científico, portanto, tudo que importa na nossa vida.
Essa é a raiz também, como não poderia deixar de ser, do culturalismo racista que discutimos acima e que manda na nossa interpretação e justificação do mundo hoje em dia. Não por acaso, a dominância do culturalismo racista é um efeito da dominação americana a partir do século XX, muito especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial. O racismo cultural americano vai substituir – com enormes vantagens – o racismo fenotípico ou racial do racismo científico que vigorou na fase do colonialismo europeu do século XIX e do começo do século XX.
O novo racismo culturalista americano foi implementado como política de Estado e não foi deixado à ação espontânea de ninguém. A teoria da modernização recebeu dinheiro pesado do departamento de Estado americano, sob o comando de Harry Truman no pós-guerra, para se tornar paradigma universal. A partir daí, a teoria da modernização americana virou uma espécie de coqueluche mundial. Milhares de trabalhos foram realizados nas duas décadas seguintes com o intuito de mostrar como os EUA eram o modelo universal para o planeta. Todos os outros países eram uma espécie de realização incompleta desse modelo. Depois, todos os países colonizados receberam também dinheiro de fundações americanas para veicularem essa teoria e seus pressupostos implicitamente racistas no mundo inteiro, inclusive no Brasil.
Mas no Brasil, onde a comparação com os EUA foi a obsessão de todos os intelectuais desde o começo do século XIX, a elaboração de nosso culturalismo racista invertido, contra nós mesmos, foi realizada por mãos nativas e antes mesmo da coqueluche mundial do paradigma culturalista racista da teoria da modernização. Somos, por assim dizer, escravos tão subservientes que antecipamos os desejos do nosso senhor antes mesmo que ele o tenha expressado. Somos escravos de casa, escravos de confiança, daqueles que se candidatam a ser um agregado da família, sonho que nossos intelectuais compartilham com nossa elite e nossa classe média em relação aos EUA. Daí que a elaboração de teorias racistas que nos rebaixam e humilham tenha sido paralela e relativamente independente desse movimento internacional e político mais óbvio, como estratégia americana de dominação política por meio da ciência no pós-guerra.
Assim, se na década de 1930, enquanto Talcott Parsons dava os primeiros passos em seu engenhoso esquema a partir do qual se tornaria a influência máxima da teoria da modernização no mundo, se desenhava no Brasil a sua contraparte “vira-lata”, produto mais típico do pensamento do escravo dócil, ponto a ponto a imagem invertida daquilo que Parsons construía como autoimagem da superioridade dos americanos no mundo.9 Se Parsons e seus seguidores iriam construir a imagem dos americanos como objetivos, pragmáticos, antitradicionais, universalistas e produtivos, nossos pensadores mais influentes iriam construir o brasileiro como pré-moderno, tradicional, particularista, afetivo e, para completar, com uma tendência irresistível à desonestidade.
O começo dessa aventura brasileira no pensamento, no entanto, não foi tão mal assim. Gilberto Freyre foi a figura demiúrgica desse período. Intelectual ambíguo e contraditório – aos meus olhos o brasileiro mais genial na esfera do pensamento, ainda que conservador na política –, Freyre construiu todo o enredo do Brasil moderno prenhe de ambiguidade e de contradições como seu criador. Como homem de seu tempo, Freyre era prisioneiro do racismo científico. Tendo sido exposto, no entanto, nos anos 20 do século passado, ao culturalismo, à época de vanguarda, de Franz Boas, que influenciou decisivamente a antropologia e as ciências sociais americanas críticas do racismo científico,10 Freyre elaborou uma interpretação culturalista que procurou levar o culturalismo vira-lata ao seu limite lógico.
Como não percebia o principal, que é a assimilação de pressupostos implicitamente racistas no coração do próprio culturalismo, Freyre lutou bravamente dentro do paradigma do culturalismo racista, para tornar ao menos ambígua e contraditória a condenação prévia das sociedades ditas periféricas em relação às virtudes reservadas aos americanos e europeus. Freyre procurou e conseguiu criar um sentimento de identidade nacional brasileiro que permitisse algum “orgulho nacional” como fonte de solidariedade interna. Foi nesse contexto que nasceu a ideia de uma cultura única no mundo, luso-brasileira, percebida como abertura cultural ao diferente e encontro de contrários. Daí também todas as virtudes dominadas, posto que associadas ao corpo e não ao espírito que singularizam o brasileiro para ele mesmo e para o estrangeiro: a sexualidade, a emotividade, o calor humano, a hospitalidade, etc. Antes de Freyre inexistia uma identidade nacional compartilhada por todos os brasileiros.
Freyre procura, na realidade, utilizar-se de todas as ambiguidades implícitas no paradigma que define o espírito na sua virtualidade de inteligência e moralidade superior contra o corpo animalizado. O corpo em Freyre é percebido como domínio das emoções reprimidas pelo espírito que não apenas pensa e moraliza, mas que também controla, higieniza e segrega. A segregação racial explícita dos americanos seria um símbolo da ausência de emoção como defeito e doença. A emoção, afinal, que pode ser sádica, mas que pode também aproximar e permitir o aprendizado de contrários, criando combinações originais que era, nos seus sonhos, o que o Brasil já era e ainda poderia melhorar.
Freyre foi o criador
do paradigma culturalista brasileiro vigente até hoje dominado pelas falsas ideias
da continuidade com Portugal e da emotividade como traço singular dessa
cultura. No entanto, sua leitura se tornou dominada dentro desse mesmo
paradigma culturalista racista de se pensar o Brasil e sua singularidade. Darcy
Ribeiro talvez seja o seguidor mais influente daquela corrente que enxerga o
Brasil como potencialmente tendo uma mensagem original para o mundo. Muitos são
freyrianos sem o saber.
Lembro artistas como Glauber Rocha ou Jorge Mautner e até Caetano Veloso, que imaginam perscrutar essa mesma originalidade pela intuição artística. São seguidores, como todos nós em certo sentido, de uma ideia que foi Freyre que deu corpo e materialidade.
Independentemente da questão se esse conjunto de atributos é verdadeiro ou falso – a identidade nacional não é definida pelo seu valor de verdade e sim por sua eficácia na produção de uma comunidade imaginária que se percebe como singular –, foi Freyre quem sistematizou e literalmente construiu a versão dominante da identidade nacional em um país que, antes dele, não tinha construído nada realmente eficaz nesse sentido.
Sua versão, no entanto, foi logo criticada por Sérgio Buarque de Holanda. Buarque vai se aproveitar de todas as ideias fundamentais de Freyre – ainda que todas as citações dele desapareçam paulatinamente nas versões subsequentes de seu clássico Raízes do Brasil –,11 mas vai utilizá-las de modo muito pessoal. Todo o esforço de Freyre em ver aspectos positivos ou pelo menos ambíguos no que ele via como “legado brasileiro” foi invertido e transformado em unicamente negativo. Não obstante, foi o mesmo homem plástico e emotivo de Freyre como representação da singularidade brasileira que se tornou a matéria-prima para a construção da ideia de “homem cordial” como expressão mais acabada do brasileiro para Sérgio Buarque.
Sérgio Buarque opera duas transformações essenciais no paradigma inventado por Freyre que irão possibilitar que o culturalismo racista, agora na versão vira-lata de Buarque, se torne o porta-voz oficial do liberalismo conservador brasileiro. Versão vira-lata essa, por servir precisamente de legitimação perfeita para o tipo de interesse econômico e político da elite econômica que manda no mercado, se tornaria a interpretação dominante da sociedade brasileira para si mesma até hoje.
A primeira transformação é a mutação radical do brasileiro pensado genericamente sem distinções de classe enquanto pura negatividade na noção de homem cordial. A segunda é o alongamento da noção de homem cordial na noção de Estado patrimonial. As duas noções conjugadas constroem a ideia do brasileiro como vira-lata da história, sendo a imagem invertida no espelho do protestante americano transformado em herói.
Iremos detalhar essa crítica no fim do livro quando comprovarmos que é essa ideia que está por trás de tudo que se diz hoje em dia no Brasil da direita à esquerda, de Deltan Dallagnol a Fernando Haddad, do espectro político. Mas algumas ideias são importantes já agora para saber o que criticamos e como essa concepção cria uma interpretação falsa de fio a pavio sobre a sociedade brasileira.
Muitos imaginaram, ingenuamente, inclusive intelectuais reconhecidos, que o simples fato de o homem cordial ser definido como negatividade seria marca de uma concepção crítica que se contraporia ao conteúdo afirmativo e celebratório de Freyre. Nada mais ingênuo. A real crítica a Freyre exigiria a crítica dos pressupostos culturalistas/racistas do paradigma que o influenciou, coisa que Sérgio Buarque jamais fez, muito antes pelo contrário. Ele, na realidade, regrediu em relação a Freyre, que havia, ao menos, procurado criticar, ainda que dentro do paradigma culturalista/ racista, a tese do americano e do europeu como seres divinamente superiores. Sérgio Buarque nem isso sequer tentou. Aceita a viralatice do brasileiro como lixo da história de bom grado e degrada e distorce a percepção de todo um povo como intrinsecamente inferior. E ainda tira onda de crítico, seguido por cerca de 90% da intelectualidade nacional, por ter supostamente descoberto as razões da fraqueza nacional.
O embuste se torna completo por ter também inventado o conceito ao mesmo tempo mais fajuto e mais influente de todo o pensamento social brasileiro, que é a noção de patrimonialismo. O patrimonialismo defende que o Estado no Brasil é um alongamento institucionalizado do homem cordial e tão vira-lata quanto ele. Abriga elites que roubam o povo e privatizam o bem público. Isso é bem menos que uma meia verdade. Mostrarei, ao fim deste livro, em detalhe, que essa noção, inclusive, é um contrabando malfeito de uma noção weberiana inutilizável no caso brasileiro. Essa noção é central para a legitimação do liberalismo conservador brasileiro e se tornou, como consequência da própria defesa dos interesses econômicos e políticos conservadores envolvidos, na própria interpretação dominante dos brasileiros sobre si mesmo, seja na direita seja na esquerda (que se deixa colonizar intelectualmente pela direita) do espectro político.
A interpretação de Sérgio Buarque, que logra ser a cobertura perfeita para todos os interesses e privilégios que estão ganhando, se torna dominante por fazê-lo dando a impressão de crítica radical, daí sua genialidade e perpetuação no tempo. Os discípulos, que são maioria tanto na direita como na esquerda, apenas repetem o paradigma. Torna todos os nossos conflitos reais invisíveis ao construir a singularidade brasileira a partir do homem cordial, do homem emotivo como negatividade e como potencialmente corrupto, já que dividiria o mundo entre amigos e inimigos e não de modo “impessoal”, que ele imagina, em uma idealização descabida e infantil, existir em algum lugar. O Estado patrimonialista seria a principal herança do homem cordial e principal problema nacional.
Está criada a ideologia do vira-lata brasileiro. Inferior, posto que percebido como afeto e, portanto, como corpo, opondo-se ao espírito do americano e europeu idealizado, como se não houvesse personalismo e relações pessoais fundando todo tipo de privilégio também nos EUA e na Europa. A emoção nos animalizaria, enquanto o espírito tornaria divinos americanos e europeus. Como seres divinos, os americanos seriam seres especiais que põem a impessoalidade acima de suas preferências, explicando com isso a excelência de sua democracia, assim como sua honestidade e incorruptibilidade. As falcatruas globais do mercado financeiro americano, que ficaram públicas na crise de 2008, construídas para iludir e enganar os próprios clientes e drenar o excedente mundial em seu favor, são, certamente, invenção de algum brasileiro cordial que passou por lá e inoculou o vírus da desonestidade nessas almas tão puras.
Mas Sérgio Buarque também esconde a nossa hierarquia social, já que se esquece de explicar a gênese daquele tipo de capital que, para ele, singularizaria o Brasil. O capital do homem cordial é o capital de relações pessoais, ou aquilo que Roberto DaMatta, discípulo de Sérgio Buarque como quase todos, chamaria mais tarde de “jeitinho brasileiro”, uma suprema bobagem infelizmente naturalizada pela repetição e usada como explicação fácil em todos os botecos de esquina do Brasil.
Ora, caro leitor, quem tem acesso a relações pessoais importantes é quem já tem capital econômico ou capital cultural sob alguma forma anteriormente. Ou você conhece alguém que desfrute desse tipo de privilégio sem dinheiro ou conhecimento incorporado? Sua explicação nega, portanto, a origem de toda desigualdade que separa classes com acesso privilegiado aos capitais econômico e cultural das classes que foram excluídas de todo acesso a esses capitais. E são precisamente esses caras que escondem os mecanismos sociais responsáveis pela exclusão de tantos os que se passam por críticos sociais.
Mas Sérgio Buarque não para aí. Sua análise é totalizante e explica tudo. Ele cria muito especialmente a “Geni” brasileira – para usar um termo do filho, este verdadeiramente genial – que seria o Estado sempre corrupto. O mercado é divinizado pela mera oposição com o Estado definido como corrupto, e sua corrupção tanto “legal” (quando “compra” o Legislativo para passar leis de seus interesses, impor juros altos a toda a população e privatizar o orçamento público e as empresas estatais) quanto ilegal (quando manda para o exterior valores de evasão fiscal que superam em muito toda a corrupção estatal da história somada), tornada invisível. É verdade que essa contraposição explícita não é obra de Sérgio Buarque, e sim de outra “vaca sagrada” do panteão de grandes intelectuais brasileiros que é Raymundo Faoro. Mas Sérgio Buarque já abre a possibilidade ao demonizar o Estado e poupar o mercado da mesma demonização.
Sérgio Buarque, ao localizar a “elite maldita” no Estado, torna literalmente invisível a verdadeira elite de rapina que se encontra no mercado. Um mercado capturado por oligopólios e atravessadores financeiros. Como a elite que vampiriza a sociedade está, segundo ele, no Estado, abre-se caminho – vazio esse que foi logo preenchido por seus discípulos – para uma concepção do mercado que fosse o oposto do Estado corrupto. Com isso, não só o poder real é tornado invisível, mas o Estado, tornado o suspeito preferido – como os mordomos nos filmes policiais – de todos os malfeitos. Essa ideia favorece os golpes de Estado baseados na corrupção seletiva, mote que sempre é levado à baila quando o Estado hospeda integrantes não palatáveis pelo mercado ávido de capturar o Estado apenas para si.
Uma ideologia melhor para os interesses da elite econômica não existe. A leitura de Sérgio Buarque foi ensinada nas escolas e nas universidades de todo o país – como acontece até hoje – e tornou possível fazer do mote da corrupção apenas do Estado o núcleo de uma concepção de mundo que permite a elite mais mesquinha fazer todo um povo de tolo.
Essa concepção não é apenas de Sérgio Buarque nem é algo dos longínquos anos 1930. Ela é Brasil 2017 na veia! Todos os pensadores de prestígio a seguiram desde então, como Raymundo Faoro (que a esquerda colonizada intelectualmente pela direita adora), Fernando Henrique Cardoso, Roberto DaMatta e uma infinidade de discípulos menores. Quem fala sobre o Brasil na imprensa, seja de direita ou de esquerda, repete os truísmos dessa visão arcaica e vazia. O culturalismo racista e liberal conservador é a única teoria explicativa abrangente e totalizadora que o Brasil possui e que, antes de meu próprio trabalho crítico, jamais havia sido efetivamente criticada nos seus pressupostos fundamentais.
Ela, no entanto, influencia a sociedade como um todo na formação escolar desde tenra idade. Todo brasileiro enquanto criança aprende a perceber o Brasil com os pressupostos envenenados da teoria culturalista e sua cantilena das três raças formadoras, da continuidade com Portugal e a necessidade pseudocrítica de combate à corrupção só do Estado. Nas universidades, em todos os cursos, são as vacas sagradas do culturalismo conservador, Sérgio Buarque à frente, que ensinam o jovem a (não) perceber e a (não) compreender os reais problemas brasileiros. Depois, são os profissionais no direito, na mídia, nas empresas, na administração do Estado, etc. que irão comandar suas ações sob a égide mais ou menos consciente dessas ideias. Ela se tornou o pano de fundo não discutido, de tão óbvio e de tão repetido por todos, de como o país é percebido.
Afinal, nós não vemos a sociedade em que vivemos com olhos imaculados como se tivéssemos nascido hoje. Nós a (não) percebemos sempre por meio do acúmulo de noções e ideias que nos foram transmitidas por pessoas dignas de nossa confiança. É por meio desses “óculos”, compostos por ideias que se tornam tão óbvias que não mais refletimos sobre elas, que nós (não) percebemos o mundo que nos rodeia. Daí ser de suma importância refletir sobre esse conjunto de ideias fundamentais que comandam nosso comportamento e nossas avaliações do mundo. Isso é decisivo para qualquer ação consciente no mundo e para que não sejamos enganados por todos os interesses encobertos e que visam nossa desinteligência.
Foi, afinal, esse conjunto de ideias falsas que nos amesquinham e retiram nossa autoestima que tornou possível a grande farsa do golpe de maio de 2016 e de todos os outros golpes supostamente contra a corrupção. Foi e ainda é essa teoria vira-lata e falsa de fio a pavio, por último, mas não menos importante, que forneceu à mídia todos os subsídios, que já estavam previamente na cabeça de seu público leitor e telespectador desde a escola primária, para sua obra de distorção sistemática da realidade.
Restou à mídia apenas o trabalho facilitado de selecionar contra quem seria mobilizado o ataque moralista conservador que nossos intelectuais construíram contra o povo e em benefício de uma ínfima elite. Sem esse consenso intelectual/conservador prévio, a mídia não poderia ter sido tão eficaz na sua obra de fraudar sistematicamente a realidade para a legitimação da trama do golpe de 2016 e para justificar o injustificável assalto ao bolso coletivo – a verdadeira corrupção tornada invisível – em nome da corrupção seletiva, para inglês ver, só do Estado e de suas empresas.
Quando empresas
brasileiras e empresários brasileiros entram em cena como na operação Lava
Jato, isso só acontece pelo mais descarado viralatismo: para chantagear
politicamente essas empresas em delações que criminalizem a esquerda ou
políticos que não cumpram a agenda corporativa dos órgãos de controle. Assim
como para, consciente ou inconscientemente, atender a interesses geopolíticos americanos
que visam a permanência do Brasil como mero exportador de matéria-prima.
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