A guerra na Ucrânia caminha para seu desfecho da mesma forma que iniciou: como um embate direto entre os Estados Unidos e a Rússia. No entanto, há uma diferença fundamental: se antes a rivalidade entre essas potências resultou na guerra, agora elas colaboram em prol da paz. O que, aliás, retrospectivamente dá razão a todos aqueles – entre os quais nos incluímos – que, contra a leitura amplamente dominante acerca de tal conflito, sustentaram a tese de que, em essência, tratava-se de um conflito entre o Ocidente global (sob a liderança dos Estados Unidos e a bandeira da OTAN) e a Rússia, interposto pela Ucrânia – não se tratando, desse modo, de um conflito entre Rússia e Ucrânia, supostamente motivado pela vontade da primeira de perpetuar ou reconstruir sua zona de influência na Europa Oriental e Central, ou mesmo além.
Propomos aqui traçar um balanço desses três anos de guerra, analisando a recente reviravolta em seu curso, os ganhos e perdas registrados por seus diferentes protagonistas e, consequentemente, discernir as possibilidades que se abrem para cada um deles.
Um palhaço na Casa Branca
A guerra na Ucrânia emergiu da determinação da OTAN em expandir sua influência na Europa Central e Oriental, contrariando os compromissos verbais assumidos após a queda do Muro de Berlim. Apesar das crescentes objeções russas, essa expansão progrediu durante duas ondas sucessivas, em 1999 e 2004, atingindo um ponto crítico em 2008, quando se cogitou integrar a Ucrânia e a Geórgia à Aliança Atlântica. Tal adesão colocaria a OTAN em contato direto com a Rússia, deixando o país vulnerável a uma invasão através da extensa planície ucraniana além do rio Dnieper, além de representar uma ameaça à estratégica base naval russa de Sebastopol. Moscou deixou claro que entraria em guerra caso essa “linha vermelha” fosse cruzada.
As potências ocidentais não levaram a advertência em conta. Em 2014, durante os eventos do Euromaidan, o Ocidente contribuiu para a instalação de um governo pró-ocidental e antirrusso em Kiev, o que agravou as tensões com as populações russófonas e russófilas dos oblasts (regiões administrativas) ao leste do país e de Odessa, resultando na eclosão de uma guerra civil. Ao mesmo tempo, trataram com desdém as propostas russas que estavam em fase de conclusão no âmbito da Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa (CSCE), visando um acordo que levaria à neutralização (“finlandização”) da Ucrânia. Tudo isso ocorreu após os Estados Unidos se retirarem, em 2001, do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (assinado em 1972) e, em 2018, do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (assinado em 1988). Assim, a via para a guerra estava aberta.
Durante três anos, a guerra foi travada pelos ocidentais, por intermédio da Ucrânia, contra a Rússia, com o objetivo de forçá-la a aceitar o que já havia declarado inúmeras vezes que jamais aceitaria. Os erros de julgamento iniciais durante a operação militar russa, a mobilização nacional e o ímpeto nacionalista da sociedade ucraniana alimentaram as ilusões de que a guerra poderia ser vencida e de que, com o apoio massivo dos ocidentais, a Ucrânia poderia expulsar o agressor de suas fronteiras.
No entanto, essas ilusões foram rapidamente dissipadas após o fracasso da contraofensiva ucraniana, conduzida entre junho e agosto de 2023, apesar do robusto suporte logístico e militar dos ocidentais. Desde então, a situação ucraniana se deteriorou progressivamente, tanto no campo das operações militares quanto em relação à coesão interna da sociedade ucraniana, apesar das dezenas de bilhões de dólares em ajudas de todos os gêneros (armamentos, munições, treinamento de tropas, assistência técnica, inteligência, empréstimos, incentivos etc.) que os ocidentais forneceram, sem contar as sanções comerciais e financeiras impostas ao agressor russo. Para qualquer observador lúcido, está claro que a evolução da situação nos últimos meses só pode conduzir a uma derrota militar no curto ou médio prazo.
Para evitar chegar a esse ponto, a nova administração Trump decidiu pôr fim a essa guerra, buscando um acordo com a Rússia, transformando-a em um adversário com quem um pacto seria possível. A razão fundamental para essa reviravolta é que, mais do que para seus antecessores, a mais elementar entre as prioridades do governo Trump é enfrentar o desafio representado pelo crescimento chinês, que ameaça a primazia global dos Estados Unidos. Nesse contexto, a questão ucraniana tornou-se secundária, e sua resolução passou a ser uma necessidade urgente e de baixo custo. Essa estratégia repete o que os EUA fizeram nas últimas décadas ao fim de eventos nos quais foram derrotados, como no Vietnã, em 1973; no Iraque, em 2011; no Haiti, em 1995; e no Afeganistão, em 2021: optam por se retirar, deixando aos seus aliados locais e inimigos de véspera a responsabilidade de gerir o caos produzido por sua intervenção, em suma, lavando as mãos.
A única diferença é o estilo no qual o cenário se repete desta vez. Tendo sido o palhaço (re)eleito em novembro passado, o silêncio envergonhado de Obama ou a contrição acompanhada de lágrimas de crocodilo de Biden deram lugar à negação estrondosa das esmagadoras responsabilidades dos Estados Unidos no caso, que adotou a postura conveniente de pomba para fazer esquecer seu papel de falcão. O flagrante fracasso militar ucraniano foi atribuído a Kiev, que não quis mobilizar os jovens do país para enviá-los ao campo de batalha, bem como aos seus aliados europeus, que não colocaram dinheiro suficiente tanto para apoiar o esforço de guerra da Ucrânia quanto para assegurar sua própria defesa. Além disso, seguindo sua lógica extrativista, Trump pretende recuperar seu investimento no subsolo da Ucrânia, rico em terras raras.
Pânico em Londres, Paris, Berlim, Varsóvia…
… e nas outras capitais europeias. Pois, sem compreender o que se passou, inventam para si um futuro imaginário, no qual acreditam que terão de enfrentar o grande lobo mau russo, agora sozinhas – sem a ajuda do Tio Sam. E, como consideram não ter os meios para isso no plano militar – o único que eles consideram ou pelo menos favorecem –, lançam programas insanos de rearmamento, jogando para o alto centenas de bilhões de euros que, até ontem, diziam não existir quando se tratava de aumentar salários, fortalecer serviços públicos e atender às necessidades sociais mais básicas. Isso anuncia um novo período de austeridade extrema para suas populações, sem lhes oferecer outra perspectiva senão apertar ainda mais o cinto durante anos para, no final, “morrer pela liberdade”, instaurando desde já um clima de preparação para a guerra.
Contudo, o caráter imaginário desse cenário futuro é denunciado pela natureza incoerente de seus próprios discursos. Pois os mesmos que hoje afirmam que os russos estão à nossa porta e que não temos meios de impedi-los de nos invadir são aqueles que, ontem mesmo – ou, às vezes, no mesmo discurso –, clamavam ser necessário e justo ajudar os ucranianos, inclusive enviando tropas, porque era possível vencer o rival às margens do Dnieper ou no Donbass. Afinal, o que é a Rússia: um ogro sanguinário insaciável ou um colosso com pés de argila?
Esse cenário também é imaginário porque ignora a realidade da correlação de forças no campo de batalha. Após três anos de guerra, as tropas russas conseguiram conquistar, laboriosamente e com precaução, apenas um quinto do território ucraniano. Questão digna de um problema de matemática para uma turma de Ensino Fundamental: a esse ritmo, quanto tempo os cossacos levarão para fazer seus cavalos beberem água nas periferias de Brest e Lisboa?
Imaginário, além disso, pois assim como antes de 2022, os europeus não escutam o que dizem os russos nem lhes dão crédito. Os russos repetiram incessantemente que não aceitariam que as forças da OTAN chegassem à sua porta na Ucrânia e que, se a Aliança insistisse nos intentos de expansão, dariam início à guerra. E foi exatamente o que fizeram. Mas quando foi que os ouvimos declarar que tinham outras reivindicações, ao menos em relação a seus vizinhos imediatos ou, para além disso, em relação à Europa Ocidental? Mas se há hipocrisia da parte deles, por que acusá-los ao mesmo tempo de cinismo?
O perigo, porém, é que, por mais imaginário que seja, esse cenário acabe se tornando uma profecia autorrealizável. Pois, ao reacender a corrida armamentista na Europa, cria precisamente uma situação propícia à guerra. Isso porque, ao contrário do que diz o velho adágio romano, quando se prepara a guerra, obtém-se… a guerra! Não foi isso o que se viu, mais uma vez, com o período iniciado nos anos 1990 mediante a expansão da OTAN na Europa Central e Oriental, supostamente para assegurar a paz?
Presas em posições “campistas” face aos conflitos interimperialistas ou internacionais, é exatamente esse cenário que a maioria das organizações de esquerda e extrema esquerda adota, chegando a denunciar qualquer distanciamento crítico em relação a elas como pró-russismo ou até mesmo filoputinismo. Já tendo se alistado na cruzada antirrussa sob a bandeira estrelada, falhando em sua missão de mobilizar as classes populares contra a guerra, essas organizações estão prontas para se engajar novamente, caindo uma vez mais na armadilha da União Sagrada. E, com isso, permitem que a extrema direita monopolize o discurso antiguerra, oferecendo-lhe mais uma oportunidade de ressoar preocupações populares e estimular sua audiência. Ao mesmo tempo, proporcionam ao bloco político-midiático dominante a chance de associar qualquer crítica a sua posição à extrema direita.
Pior que isso, impedem a denúncia e a luta junto às classes populares, não apenas contra as múltiplas formas de agravamento da exploração (no plano salarial e fiscal, por meio do aumento do desemprego e da degradação dos serviços públicos etc.), que essas ameaças e necessidades imaginárias servirão para legitimar como “incontestáveis”, mas também contra um keynesianismo militarista – isto é, uma forma de impulsionar a economia e, portanto, aumentar ainda mais os lucros, sem passar pelo aumento da demanda por bens de consumo, favorecendo exclusivamente a demanda por bens de destruição, financiada por impostos e pela dívida.
Nem é preciso dizer que tal reativação econômica beneficiará, acima de tudo, o maior exportador de equipamentos e tecnologias militares, os Estados Unidos, ainda que alguns países europeus (nesta ordem: França, Alemanha, Itália, Reino Unido e Espanha) possam esperar aumentar sua própria produção e exportação.
Blues em Kiev
Mas os que mais sofreram com tudo isso são, evidentemente, os ucranianos, os únicos que tiveram que entrar na jaula dos leões. Foram eles que pagaram o preço mais alto, em termos de deslocamentos e exílios massivos da população, de mortes militares e civis e de destruição, por conta do jogo cínico dos ocidentais, que precipitaram um conflito que se desenrolou sobre o seu solo e cujas linhas de frente ocuparam, com o intuito de forçar a mão dos russos e enfraquecê-los de maneira duradoura. Não restam dúvidas de que acreditaram (e ainda acreditam) que esse era o único meio de defender sua soberania e integridade territorial, quando outra via era possível: a do compromisso com a Rússia, o que lhes teria permitido preservar o essencial em ambos os planos. Uma via que os ocidentais lhes impediram de seguir, tanto antes quanto logo após o início da ofensiva russa em 24 de fevereiro de 2022: enquanto um acordo russo-ucraniano estava à vista no final de março, foram eles que convenceram os ucranianos a desistir dessa possibilidade.
E são novamente os ucranianos que estão prestes a pagar um preço elevado quando chegar o momento – que não deve tardar – de uma paz imposta. Pois essa paz será assinada agora sob as condições que os russos, vencedores no campo de batalha, aceitarão ou imporão. Depois disso, ainda terão que reembolsar a enorme dívida de guerra que acumularam e reconstruir um país parcialmente devastado pela guerra, com uma população consideravelmente reduzida (de 45 milhões em 2013 para 33 milhões em 2023, segundo os
dados). Tudo isso enquanto ruminarão a amargura da derrota e da traição, sobre a qual terão bastante tempo para refletir, lembrando-se do aviso célebre: “Que Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu!”.
Cabeça fria em Moscou
A sobriedade das últimas declarações do poder moscovita contrasta com os delírios megalomaníacos de Washington, a febril angústia das capitais europeias e a persistente teimosia de Zelensky em seu erro inicial. No entanto, a Rússia teria todo o direito de se vangloriar. Longe de desmoronar por sofrer as sanções comerciais e financeiras implementadas pelos ocidentais, como estes haviam anunciado urbi et orbi, o país se recuperou após uma entrada militar fracassada, demonstrando a solidez de suas alianças, em especial com a China e o Irã, e se apresenta até o momento como o grande vencedor do conflito, prestes a alcançar os objetivos a que havia se proposto.
Sem dúvida, também sabe que vencer a guerra não basta, é preciso ganhar a paz. E, para tanto, terá que pagar o preço de sua vitória, entre o qual está computado o fato de que, embora a temida OTAN não mais poderá se estabelecer na Ucrânia, ela se encontra presente ao longo dos 1.340 quilômetros de suas fronteiras compartilhadas com a Finlândia. A isso se somam os programas de rearmamento maciço que os aliados europeus da OTAN (ou do que restou dela) pretendem implementar. Sem contar, por fim, o ódio duradouro que a Rússia terá provocado em grande parte da população ucraniana e naqueles que apoiaram sua causa.
Se faz parte dos planos dos russos evitar que uma nova Guerra Fria se instale na Europa, não há outra solução para eles senão propor, como fizeram repetidamente antes da guerra na Ucrânia, a convocação de uma conferência de paz no âmbito da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Além de encerrar as especulações sobre suas ambições expansionistas, ambições que, aliás, seriam difíceis de encontrar na história recente das relações internacionais (quando e onde a Rússia realizou operações semelhantes à invasão dupla do Iraque ou à do Afeganistão?), poderão argumentar com seus adversários ocidentais que nunca se escolhe o inimigo, mas é sempre com ele que, eventualmente, se acaba assinando a paz.
E nós?
Diante das políticas de rearmamento desenfreado, do clima de guerra e da vigília armada cultivada pelos governos belicistas europeus com o apoio da grande maioria dos meios de comunicação reunidos, a esquerda (e especialmente a esquerda radical) precisa corrigir seus erros de ontem e anteontem. É necessário convocar uma mobilização de massas em toda a Europa para interromper imediatamente uma política que já faz com que alguns digam que será preciso escolher entre “pensões ou munições“
1 e que pavimenta o caminho para uma possível descida aos abismos.
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