Há décadas a dívida africana
mobiliza a atenção das instituições financeiras internacionais e das
associações que reclamam pura e simplesmente sua anulação. Alguns países se
desendividaram graças ao aumento do preço das matérias-primas, porém, outros
construíram novos passivos e são ameaçados por fundos abutres
por Sanou Mbaye / http://www.diplomatique.org.br/
Na euforia das independências,
conquistadas nos anos 1960, os países da África subsaariana quiseram romper com
a divisão internacional do trabalho que lhes dava o papel de exportadores de
matérias-primas e importadores de bens manufaturados. Eles se esforçaram para
diversificar suas economias pela industrialização e ampliação de suas
capacidades produtivas, mas se chocaram imediatamente com uma dificuldade: com
a notável exceção da África do Sul e da Rodésia (atual Zimbábue), na época
governadas por uma minoria branca, nenhum desses países tinha acesso aos
mercados internacionais de capitais por não possuírem a chave mágica entregue
pelas agências de classificação de risco. Eles foram então obrigados a se
limitar aos fundos privados garantidos pelos Estados, aos fundos bilaterais
acordados pelo Clube de Paris1 e aos fundos multilaterais emprestados pelas
organizações internacionais: Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial
e Banco Africano de Desenvolvimento (BAD).
Ao mesmo tempo, as receitas das
exportações com as quais eles contavam para investir encolheram, principalmente
em função da queda do preço mundial dos produtos agrícolas, cujo índice passou
de 155 em 1977 para 94 em 2002. Os custos de suas importações, por sua vez,
aumentaram sem parar. Em 1979, a alta das taxas de juros dos Estados Unidos,
decidida unilateralmente para lutar contra a depreciação do dólar, acabou de
explodir a dívida do continente.
Desse modo, para “higienizar”
suas contas, os países africanos se voltaram novamente para as instituições
financeiras internacionais. Estas lhes ofereceram os “remédios que matam”: os
programas de ajuste estrutural (PAS) – os quais impõem a desregulação
financeira, o livre-comércio, as privatizações, a redução dos salários, os
arrochos orçamentários etc. Esses programas se multiplicaram, prescrevendo a
todos a mesma poção liberal (ler o quadro).
Juros das agências de
classificação
Por meio da iniciativa Países
Pobres Muito Endividados (PPME), lançada em 1996, 36 países, dos quais trinta
africanos, foram beneficiados por uma diminuição total de US$ 76 bilhões do
valor de suas dívidas bilaterais e multilaterais. No entanto, segundo o Comitê
pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), essas medidas são uma
enganação: o valor da dívida da África subsaariana passou de US$ 2 bilhões em
1970 para US$ 331 bilhões em 2012, apesar de os reembolsos efetuados no período
chegarem a US$ 435 bilhões, o equivalente a quatro vezes o capital emprestado.2
Além disso, os países africanos
enfrentam os fundos de investimento batizados de “abutres”. Estes compram a
preço de banana, de “segunda mão”, dívidas de Estados em dificuldade. Eles
aguardam o retorno desses países a uma situação normal (o fim dos problemas
políticos, por exemplo) e convertem as dívidas diante de jurisdições dos
Estados Unidos e do Reino Unido para a cobrança das dívidas, dos atrasos de
reembolsos e dos juros. Uma primeira onda atingiu a África entre 2000 e 2008,
ano da crise financeira mundial. O número exato de ataques é difícil de
avaliar, pois, para não afetarem sua imagem, os Estados preferem evitar a
midiatização e negociam com os fundos abutres fora dos tribunais.
Segundo o FMI, dezessete
processos foram iniciados contra PPME, dos quais quinze africanos.3 Em abril de
2014, uma decisão da Corte de Apelação dos Estados Unidos deu razão à República
Democrática do Congo (RDC) contra o fundo abutre FG Hemisphere Associates. Em
primeira instância, este tinha obtido o direito de tomar bens da Sociedade
Geral de Estradas e Minas (Gécamines) com a justificativa de que esta deveria
responder pelas dívidas do Estado ao qual pertence. O FG Hemisphere reclamava
US$ 104 milhões da RDC a título de um contrato de fornecimento de energia que
não foi pago.
Obviamente, desde a crise
financeira de 2008, os fundos abutres se voltaram para os mercados europeus,
mas nem por isso deixaram de lado a África. Em 2010, o BAD criou a Facilidade
Africana de Apoio Jurídico (Faaj), a fim de sensibilizar os governos para a
importância dos aspectos jurídicos da gestão da dívida soberana. A Faaj insiste
na necessidade de eles serem acompanhados por conselheiros experientes.
Dois acontecimentos suscitam ao
mesmo tempo uma esperança de desenvolvimento e um temor de reendividamento.
Primeiro, a presença cada vez mais firme no panorama africano de países
emergentes, como China, Índia, Coreia do Sul, Malásia, Turquia e Brasil. Desde
o início dos anos 1990, as exportações de matérias-primas a preços melhores
trouxeram um real benefício aos países da região. Isso aumentou as opções de
crescimento econômico e lhes deu uma chance de reduzir o saldo de suas dívidas
graças ao crescimento das receitas externas.
Foi assim que a Nigéria, maior
potência econômica do continente, pôde, em novembro de 2005, pagar dois terços
dos US$ 18 bilhões que devia aos credores do Clube de Paris. Em 2009, Angola se
tornou o principal parceiro comercial africano da China. Pequim anulou a dívida
angolana, de 67,38 milhões de yuans (R$ 34 milhões), e suprimiu as taxas de
alfândega para as importações de 466 categorias de produtos em favor de Luanda.
O mapa dos investimentos chineses recobre o dos recursos naturais preciosos:
Sudão, Angola e Nigéria para petróleo; África do Sul para carvão e platina; RDC
e Zâmbia para cobre e cobalto.
Se o engajamento crescente de
Pequim abre possibilidades, ele também traz riscos para o desenvolvimento
africano. Os chineses tomaram o controle de certas indústrias locais,
adquirindo de uma só vez as cotas de exportação sobre os mercados ocidentais de
produtos africanos como o têxtil. Pequim estuda o mercado da Etiópia, cujas
exportações de têxteis cresceram 257% em dez anos. Da mesma forma, o modelo de cooperação
adotado consiste em um pacote que combina investimentos diretos, empréstimos
concessionais (que compreendem uma parte em doações – em princípio, pelo menos
35%), comércio e ajudas públicas. Sem regras de repartição dos custos, nem
sempre é possível determinar se os empréstimos concessionais são incluídos no
valor da dívida ou são parte integrante da ajuda. Levando em conta o importante
volume de empréstimos desse tipo, a preocupação quanto ao fardo futuro da
dívida dos países africanos aumenta se, na ótica chinesa, os empréstimos
concessionais forem assimiláveis à ajuda.
Segundo acontecimento: a abertura
para a África dos mercados de capitais. Diversos países agora receberam a chave
que constitui o grau de investimento atribuído pelas agências de classificação
de risco – Congo-Brazzaville, Costa do Marfim, Egito, Gana, Quênia, Moçambique,
Uganda, Ruanda, Senegal e Zâmbia, principalmente. Essa nota se revelou, na
maioria dos casos, superior ou igual à de nações industrializadas como a
Turquia, o Brasil ou a Argentina. O interesse dos investidores internacionais
por esses mercados aumentou nos últimos anos. Eles consideram a maioria deles
mercados intermediários a alto rendimento. Os investidores institucionais
nacionais – tais como bancos, empresas de seguro ou previdência privada – e os
investidores privados locais também são ativos.
Desde 2007, países como Senegal,
Gabão e Gana levantaram centenas de milhões de dólares no mercado de capitais.
A tendência é aumentar. O Quênia vai lançar um título de crédito de US$ 25
bilhões para a construção de um segundo porto, de um gasoduto de 2 mil
quilômetros e de uma estrada para o transporte do petróleo a partir do Sudão do
Sul.4 Na Etiópia, a barragem da Renascença foi financiada graças a títulos
subscritos pelos próprios etíopes.
Entre os países africanos que
souberam atrair os capitais privados pela emissão de títulos, figura Ruanda,
cujo Banco Central emitiu seus primeiros empréstimos em dólares em abril de
2013. Segundo o index Bloomberg, os investidores obtiveram um nível de
rentabilidade da ordem de 9,3%, o que é superior à taxa de 6,6% gerada pelos
mercados dos países emergentes. Como explica Aboubacar Fall, presidente do
Conselho de Gestão da Faaj, “esse sucesso financeiro se deve essencialmente à boa
qualidade das reformas estruturais empreendidas por Ruanda há diversos anos,
assim como à diversificação das bases de sua economia”.5
Os medos de Christine Lagarde
Segundo a agência de
classificação de risco Fitch, as emissões de dívidas soberanas dos Estados
subsaarianos devem atingir US$ 6 bilhões em 2015, depois do recorde de US$ 6,25
bilhões do ano passado. Quênia, Costa do Marfim, Gana e Senegal consideram
levantar este ano entre US$ 500 milhões e US$ 1,5 bilhão em eurobonds no
mercado de capitais.
Esse agravamento de empréstimos
pode gerar o temor de uma nova crise da dívida. Em maio de 2014, durante
encontro em Maputo, Moçambique, a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde,
revelou-se preocupada a banqueiros, ministros da Economia e bancos centrais da
África subsaariana: “Os governos deveriam se mostrar atentos e prudentes, a fim
de não sobrecarregarem seus países com dívidas públicas”, alertou, antes de
precisar que, ainda que isso representasse “um financiamento suplementar”, era
também “uma vulnerabilidade suplementar” (Les Échos, 30 maio 2014).
Orisco de superendividamento, no
entanto, permanece limitado. As finanças públicas melhoraram, cinco países da
região (Benin, Togo, Guiné-Bissau, Burkina Faso e Costa do Marfim) estampam
inclusive superávit, a inflação está controlada, as reservas de moeda
estrangeira e as poupanças aumentaram, a dívida externa foi reduzida. Assim,
para Tiémoko Meyliet Koné, governador do Banco Central dos Estados da África do
Oeste (BCEAO), “as perspectivas de crescimento da União Econômica e Monetária
do Oeste Africano (Uemoa)6 são favoráveis. Elas mostram que a dívida deveria
permanecer estável no conjunto dos Estados-membros”.7 Os países da Uemoa
preveem emitir 2,865 trilhões de francos CFA (R$ 15 bilhões) em dívida em 2015.
O BCEAO prevê um crescimento econômico de 7,2% na sub-região, contra 6,6% em
2014, enquanto o FMI tabela em 5,8% para o conjunto da África subsaariana em
2015.
Para mobilizar os fundos
necessários aos grandes investidores dos quais necessitam particularmente na
agricultura, na energia e na infraestrutura, os governos africanos e as
empresas públicas e privadas recorrem cada vez mais aos empréstimos nos
mercados de capitais nacionais, regionais e internacionais. O investimento
público, essencial para recuperar o atraso econômico, agora ocupou seu lugar
nas políticas nacionais.
BOX
Quatro mecanismos
Iniciativa Países Pobres Muito
Endividados (PPME): programa de redução das dívidas gerado pelo Banco Mundial e
pelo FMI. Lançado em 1996, ele se organiza em torno de medidas de liberalização
da economia que permitem a um país ser declarado elegível (ponto de decisão),
depois ter diminuições provisórias de sua dívida até que ela se torne
“suportável” (ponto de conclusão). Os credores acordam então uma redução
estabelecida do valor da dívida. O impacto da iniciativa PPME pode ser medido
principalmente pelos índices de serviço da dívida. Para os 36 países que
tocaram o ponto de decisão, o serviço da dívida relacionado ao PIB passou,
segundo o FMI, de 2,9% em média em 2001 para 0,9% em 2011.
Iniciativa para o Alívio da
Dívida Multilateral (IADM): lançado em 2005 pelo G8 de Gleneagles, ela se
dirige aos países que atingiram o ponto de conclusão da iniciativa PPME. Estes
se beneficiam de uma anulação do conjunto de suas dívidas para com o FMI, o
Banco Mundial e o Banco Africano de Desenvolvimento.
Acordos de Parceria Econômica
(APE): regem as relações comerciais entre a União Europeia e os países da
África, do Caribe e do Pacífico (ACP).1 Eles preveem medidas de livre-comércio.
Africa Growth Opportunity Act
(Agoa): lei votada pelo Congresso dos Estados Unidos em 2000 e renovada em
2014. Graças a tarifas preferenciais, ela facilita a exportação para o mercado
norte-americano de uma lista de produtos provenientes dos quarenta países
africanos declarados elegíveis (http://trade.gov/agoa).
1
Ler Jacques Berthelot, “Le baiser de la mort de l’Europe à l’Afrique” [O
beijo da morte da Europa na África], Le Monde diplomatique, set. 2014.
Sanou Mbaye
Economista e escritor senegalês,
é autor de L’Afrique au secours de l’Afrique, L'Atelier, Ivry-sur-Seine, 2009
1
Criado em 1955, o Clube de Paris reúne vinte Estados credores dos países
do Sul.
2
“Les chiffres de la dette 2015”[Os números da dívida 2015], CADTM,
Bruxelas. Disponível em: . Ler também Demba Moussa Dembélé, “Les masques
africains de M. Anthony Blair” [As máscaras africanas de Tony Blair], Le Monde
diplomatique, nov. 2005.
3
“Heavily Indebted Poor Countries Initiative and Multilateral Debt Relief
Initiative – Statistical Update” [Iniciativa PPME e alívio multilateral da
dívida – atualização estatística], FMI, Washington, 2 abr. 2013.
4 Sarah
McGregor, “Kenya Spends 25 Billion on Bond-Backed Port for Oil: Freight”
[Quênia gasta US$ 25 milhões em porto para petróleo: frete], Bloomberg.com, 4
set. 2012.
5
“Fonds vautours: comment l’Afrique évite le syndrome Argentine” [Fundos
abutres: como a África evita a síndrome argentina], 7 ago. 2014. Disponível em:
.
6
A Uemoa reúne Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, Mali,
Níger, Senegal e Togo.
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