Por Ronald Augusto1 // http://www.sul21.com.br/
Antes da resenha
Quando um prefácio vence tanto os limites protocolares dos agradecimentos e das ofertas às pessoas que se mostraram importantes à consecução da obra, como põe de lado o rodeio das informações que a bem da verdade não colaboram em nada para a sua compreensão, pode-se dizer que neste caso estamos diante de um texto relevante, integrado e indispensável ao conjunto. Isto é, uma apresentação com estas características não pode ter sua significação subestimada. Embora Ernst Cassirer não descarte de todo alguns traços tradicionais da forma do prefácio – os agradecimentos e os reconhecimentos, por exemplo, estão lá –, em seu prefácio ele afirma e prepara o leitor para algumas questões que julgo importante destacar.
Em primeiro lugar, Cassirer confessa que em Filosofia das Formas Simbólicas (1923) desprezou a máxima estilística de [Gotthold Ephraim] Lessing segundo a qual “Um livro grande é um livro mau”. Em Ensaio sobre o homem2 – ainda que se trate de um livro de mais de quatrocentas páginas – o filósofo alega que não pretende repetir não digo o erro, mas, antes, um estilo mais excessivo ou dispersivo que teria caracterizado a obra anterior. Ao mesmo tempo, desde o título, o livro que é objeto da presente resenha, denuncia o estilo literário eleito e conquistado pelo filósofo para dar forma ao seu pensamento: o ensaio.
De qualquer modo, é inegável que há certa monumentalidade implicada no livro de Cassirer, e um dos riscos possíveis é o leitor ficar com a impressão de que devido à grande massa de temas à primeira vista amplamente divergentes, ele talvez esteja, com efeito, diante de “um mixtum compositum das coisas mais disparatadas e heterogêneas”. Afinal de contas a obra se ocupa de tópicos psicológicos, ontológicos e epistemológicos e, além disto, avança através de capítulos dedicados ao Mito e Religião, Linguagem e Arte, Ciência e História. Em outras palavras, há espaço para uma análise que aponte eventuais perdas de foco ou desvios desnecessários em Ensaio sobre o homem. Entretanto, Ernst Cassirer aposta que o leitor não dará atenção a tais objeções, aliás, seu objetivo é convencê-lo “de que todos os temas tratados [neste livro] são apenas, afinal, um único tema”. A forma ensaística do pensamento filosófico de Cassirer justifica em algum grau o entendimento de que seu percurso discursivo embora se desdobre em caminhos diferentes, todos eles convergem, finalmente, a um mesmo centro.
O centro temático, então, é o homem. Mas apesar desta constatação óbvia, em nenhum momento Cassirer, segundo suas próprias palavras, pretendeu escrever um livro “popular”. Por outro lado, ele também admite que seu leitor-modelo não é apenas o especialista ou o filósofo. Para Cassirer a razão de sua empreitada está no fato de que “os problemas fundamentais da cultura humana têm um interesse humano geral”, por isso seuEnsaio sobre o homem não abdica da pretensão de tornar acessíveis estas questões para o público geral.
Encerro este preâmbulo a algumas passagens do prefácio ao Ensaio sobre o homem chamando a atenção para mais um dado que reforça o apetite ensaístico de Cassirer nesta obra. Como se estreitasse a intimidade com seu leitor o filósofo confessa que desejou fortemente [grifo meu] não impor-lhe uma teoria pronta e acabada por meio de um estilo dogmático. De fato, por meio do estilo ensaístico (forma literária), estilo que supõe uma espécie de deriva tanto interpretativa quanto narrativa, o texto de Cassirer permite que o leitor assuma a posição de julgar por si mesmo, pois há espaços a serem preenchidos por um pensamento livre em direção ao qual ele é incitado.
A resenha propriamente dita: Capítulo I
No que respeita à resenha, cujo foco se circunscreve aos três primeiros capítulos da obra, me parece adequado parodiar Lessing, ou seja, entendo que também uma resenha grande é uma resenha má. De outra parte, na tentativa de não exceder os limites funcionais pressupostos na máxima estilística de Lessing, espero não deixar lacunas demasiadas à leitura do intérprete mais atento.
No “Capítulo I” (A crise do conhecimento de si e do homem), Ernst Cassirer traça um panorama ou, por assim dizer, uma genealogia da filosofia antropológica (às vezes ele também se refere a uma filosofia do homem). O filósofo expõe a questão (entendida como problema fundamental da cultura humana e do interesse humano geral) entrelaçando uma visão diacrônica e outra sincrônica, isto é, no interior da linearidade histórica e dos debates filosóficos que se sucedem no tempo (diacronia) a questão o “que é o homem?” (sincronia) subjaz a uma crise geral do conhecimento. Cassirer apresenta as transformações por que passa esta questão a cada época e como ela ainda permanece aberta.
O capítulo em questão começa com uma afirmação que faz lembrar as primeiras linhas da Metafísica de Aristóteles. Ambos os pensadores se comprometem com afirmações fortes e ambiciosas. O grego diz que: “Todos os homens, por natureza, desejam conhecer”. O filósofo alemão, por seu turno, afirma: “Que o conhecimento de si é a mais alta meta da indagação filosófica parece ser geralmente reconhecido”. Ainda que possamos vislumbrar exceções ao que parece ser a regra, seja para a tese aristotélica, isto é, sabemos que há homens que não desejam conhecer; seja para a tese de Cassirer, isto é, nem sempre o conhecimento de si se revela como uma meta tão relevante assim para a filosofia. No entanto, mesmo que déssemos crédito a objeções deste tipo, algo nos diz – talvez a experiência e a percepção – que ambos os filósofos mais acertam do que erram em suas respectivas apostas. Tanto de um lado como de outro, haveria como que um impulso ou uma disposição natural capaz de desencadear no processo cognitivo humano uma tensão dialética que às vezes direciona seu desejo para o exterior (o mundo), às vezes o faz se voltar para o interior de si mesmo (o homem).
No que toca a uma filosofia do homem que se afigura em processo, Cassirer apoia sua afirmação num olhar em direção ao continuum dos conflitos entre as diferentes escolas filosóficas ao longo do tempo. Para o filósofo o autoconhecimento como meta da indagação filosófica sempre esteve no horizonte dos debates mais importantes. O filósofo considera que o papel, por exemplo, do ceticismo na história das disputas filosóficas, foi apenas o de propor uma contraposição a um “resoluto humanismo”. À medida que a crítica cética põe em questão ou deprime a certeza objetiva do mundo externo, o que entra em cena é a necessidade de o homem voltar seus pensamentos para o seu próprio ser.
Por outro lado, a imagem de que o desejo de conhecer se caracterizaria por uma fissura entre esferas incomunicáveis ou inconciliáveis – conhecimento do mundo versus autoconhecimento – não corresponde à noção de que os indícios de uma filosofia antropológica estão prefigurados na tese primeira da doutrina metafísica de Aristóteles. De fato, Cassirer prefere não dissociar o autoconhecimento desse desejo de conhecimento algo extrovertido e que, aparentemente, ajusta a sua mira tão só para o mundo.
Nesta reconstituição de uma genealogia (lato sensu) da filosofia do homem, Cassirer apresenta os marcos significativos – filósofos, escolas e visões religiosas – deste pensamento que parece se afirmar sobre o ponto de vista de que, para além do mero interesse teórico e especulativo, o autoconhecimento se trata de uma “obrigação fundamental do homem”. Uma exigência moral que, de acordo com o filósofo, se inicia assim:
Os primeiros passos na direção da vida intelectual e cultural do homem podem ser descritos como atos que implicam uma espécie de ajuste mental ao ambiente. À medida que a cultura humana progride, porém, logo encontramos uma tendência oposta da vida humana. Desde os primeiros vislumbres de consciência humana, encontramos uma visão introvertida da vida que acompanha e complementa essa visão extrovertida. Quanto mais esse desenvolvimento se afasta dessas origens, mais essa visão introvertida vem ao primeiro plano.
O desejo de conhecer descrito por Aristóteles, a curiosidade natural do homem determinada por seu aparato perceptivo treinado para a extroversão, acha um desvio ou se deixa seduzir pela introversão. Para Cassirer essa mudança de direção não significa uma contradição definitiva, mas uma transvaloração, um ajuste (um imperativo) na direção do que de fato interessa: o problema do homem. Afinal, uma pretendida explicação do mundo está inextrincavelmente entrelaçada – ou, talvez, em situação de dependência com relação – a uma explicação do homem. O pensamento socrático representa um desses marcos indicativos da reversão do conhecimento e sua meta investigativa. Cassirer identifica no grande personagem filosófico de Platão um discurso que põe em questão o predomínio da cosmologia no pensamento grego. Mas Sócrates não chega a se confrontar diretamente com as teorias de seus predecessores. Os problemas da física e da metafísica que animaram outros filósofos gregos do período são deixados de lado por Sócrates. Sequer uma teoria ética congruente, segundo Cassirer, encontramos em Sócrates. “Resta apenas uma questão:”, afirma Cassirer, “o que é o homem?”.
Sócrates sustenta e defende sempre o ideal de uma verdade objetiva, absoluta e universal. Mas o único universo que ele conhece, e ao qual se referem todas as suas indagações, é o universo do homem. Sua filosofia – se é que ele possui uma filosofia – é estritamente antropológica.
Seguindo os rastros formativos desta filosofia do homem, Ernst Cassirer se detém diante do conflito entre as visões estoica e cristã a respeito do assunto. A concepção estoica confere ao homem um sentimento tanto de harmonia com a natureza como da sua autonomia moral em relação à natureza. Mas em seguida o estoicismo teve que se confrontar com os fundamentos da moralidade e da fé cristã. O aspecto inconciliável entre os dois ideais que, segundo Cassirer, às vezes estão em conjunção em algum pensador individual, diz respeito à declarada independência absoluta do homem. Esta independência, que para os estoicos sabia a uma virtude fundante, era interpretada pela teoria cristã como um vício e erro decisivos. A autonomia em relação à moral e àataraxia advinda da relação harmônica com mundo natural significa para o estoico uma espécie de plenitude aqui e agora, mas que do ponto de vista da teoria cristã não pode ser aceita, porque o acesso a uma plenitude verdadeira decorreria de o homem empreender um movimento em direção a Deus, bem imutável supremo. Na visão cristã o homem não poderia engendrar (pecado da soberba), por si mesmo, semelhante harmonia, ela seria, antes, uma graça concedida por Deus.
Cassirer identifica nesta conversação crítica entre estoicismo e cristianismo exemplo de um dos traços distintivos da filosofia antropológica. Seu modus faciendi não se enquadra na imagem clássica de um demorado e progressivo desenvolvimento de ideias gerais, nem nos toleráveis termos hegelianos de “um processo dialético em que cada tese é seguida de sua antítese”. “Se quisermos”, como argumenta Cassirer a propósito da filosofia antropológica,
apreender os seus reais sentido e importância, deveremos escolher, não o modo épico de descrição, e sim o dramático. Pois não somos confrontados com um desenvolvimento pacífico de conceitos ou teorias, mas com um choque entre poderes espirituais conflitantes. A história da filosofia antropológica está cheia das mais profundas paixões e emoções humanas.
Um dos poderes em jogo nestes conflitos através dos quais avança a filosofia antropológica e, ao mesmo tempo, ponto incontornável no escopo da pergunta “o que é o homem?”, trata-se do conceito de razão. Ernst Cassirer reserva ao medieval Santo Agostinho um espaço especial neste ponto do debate.
[continua na próxima coluna]
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1 Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro(2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente emhttp://www.sul21.com.br/jornal/
2 CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994, PP. 3-72. Quase todas as citações subsequentes e entre aspas presentes no corpo desse texto são extraídas da obra supracitada.
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