terça-feira, 13 de setembro de 2016

Mercado versus Estado na Europa de hoje: debate no Foro Europeu de Alpbach

O problema do capitalismo é que existem dois mercados cruciais que não podem funcionar como mercados livres: o mercado do dinheiro e o mercado de trabalho.

               Yanis Varoufakis *, para o Sin Permiso // www.cartamaior.com.br

Em outubro de 2015, tive a oportunidade de debater em Munique com o professor Hans Werner Sinn sobre a união monetária europeia, e, de modo mais amplo, sobre a economia da Europa. Neste 30 de agosto, foi a vez de debater, no Foro Europeu de Alpbach, com Clemens Fuest, o sucessor do professor Sinn na presidência do Instituto Ifo. O evento de Alpbach foi organizado a partir da seguinte proposta/pergunta:

“A economia de mercado é o melhor modelo. Terá também sucesso em enfrentar os desafios que enfrentamos no futuro”. Concorda com esta afirmação?
Se trata de uma pergunta excelente para 1920, e talvez para os Anos 80. Hoje, parece uma distração. Uma pergunta interessante academicamente, mas que não é tão relevante tendo em vista os mais duros desafios da atualidade.

Nos tempos em que se dava a dinâmica Mercado versus Estado, a ordem espontânea versus os agentes coletivos ou a instituição do Estado, havia um debate entre intelectuais como Oskar Lange, Friedrich von Hayek, Joseph Schumpeter, John Maynard Keynes, Michal Kalecki, etc. Hayek comentou uma vez que o problema do socialismo de planificação centralizada é que só pode se aplicar por meios que os socialistas desaprovariam. A queda da União Soviética e seus satélites reforçou a máxima de Hayek.

Desde 2008, o que temos visto é outra implosão. Conforme os mercados financeiros desregulados desabam, seguindo a trilha de Northern Rock, Merrill Lynch e Lehman’s Brothers, o mesmo acontecia com os dogmas neoliberais, aqueles que diziam que os mercados financeiros, uma vez liberados da regulação, encontrariam seu próprio equilíbrio estável autorregulado. Pelo contrário, quando os governos se apressuraram em resgatar os bancos sem nacionalizá-los, terminamos com um absurdo darwinismo invertido, que se baseia na sobrevivência dos piores fracassos: quanto mais insolvente se mostra um banqueiro, maior é sua capacidade de se apropriar de parte do superavit produzido pelos trabalhadores e pelo capital industrial. E assim, no mundo pós 2008 – e parafraseando Hayek –, as soluções de livre mercado só podem se aplicar com meios Hayek desaprovaria.

Os fracassos do socialismo são compreensíveis: uma grave incapacidade para produzir inovações favoráveis às massas e uma tendência ao autoritarismo com matizes de corrupção. O problema inerente do capitalismo de livre mercado, por outro lado, é que existem dois mercados cruciais que não podem funcionar de maneira confiável como mercados livres: um deles é o mercado do dinheiro, o outro é o mercado de trabalho.

Se temos alguma dúvida de que os princípios de mercado (por exemplo, os argumentos convencionais acerca da interação entre oferta e demanda para produzir equilíbrio e eficiência) sucumbem no mercado de dinheiro, consideremos dois fatos que configuram nossa realidade contemporânea:

– Taxas de juros negativas: como pode ser negativo o preço de uma `mercadoria´ (ou seja, dinheiro-crédito), a menos, claro, que o dinheiro-crédito seja o tipo de mercadoria com o qual os mercados não podem negociar?

– O Programa de Compras do Setor Público do BCE (Banco Central Europeu) se vê hoje obrigado, em sua batalha perdida contra a deflação, a comprar dívida privada de empresas particulares, ou seja, a escolher quais dívidas de quais empresários deve priorizar, e quais não…

Nem a primeira nem a segunda parecem consistentes comparadas com a comovedora crença de que o dinheiro é igual que qualquer outra mercadoria, cuja quantidade e preço são determinadas pela oferta e pela procura.

O segundo mercado que não pode (e não deveria ser permitido) operar como livre mercado é o mercado de trabalho. Da mesma forma que o mercado do dinheiro, onde o preço (taxa de juros) atualmente está em queda, mas onde a demanda do mesmo (ou seja, a exigência de fundos para investir) não chega a ser estimular –, no mercado de trabalho, o preço (que seriam os salários) igualmente se vê em queda constantemente, enquanto a demanda (que seriam os empregos) segue catatônica, e em alguns casos, como na Grécia, diminui.

Assim, desde a perspectiva das medidas políticas, não se trata de uma questão de livre mercado versus agentes coletivos ou o Estado. Hoje, na Europa, vemos combinados os piores aspectos dos mercados com os piores aspectos da intervenção do Estado (por exemplo, o supra Estado) para produzir uma crise existencial no que diz respeito à União Europeia e à nossa democracia. Estamos num momento como o dos Anos 30, pouco depois da quebra do setor financeiro, com a Grande Depressão já arrasando, e poucos anos antes de que a Europa entrasse num ponto sem retorno, perdendo o controle diante de um abismo político e ético.

A Europa está se desintegrando por causa de um mecanismo de reforço mútuo da deflação, dos baixos investimentos, do autoritarismo e da fragmentação econômica e política. As raízes desta desintegração podem ser encontradas no DNA da União Europeia. O bloco não foi criado sobre a base nem do livre mercado nem do socialismo, mas sim como um cartel de indústrias pesadas e pesadamente oligopólicas, que logo seria ampliado para incluir a agricultura a grande escala e os bancos.

Este cartel foi alimentado amorosamente, nos Anos 50 e 60, pelos Estados Unidos, a maior economia com superavit do mundo, que proporcionou ao cartel a moeda e a gestão macroeconômica centralizada que necessitava. Em resumo, os Estados Unidos reciclavam seus superavits enviando à Europa e ao Japão uma parte dos mesmos. E assim seguiram até que perderam esse superavit, deslizando a uma posição de deficit, em meados dos Anos 60. Por conseguinte, em 1971, os Estados Unidos concluíram esse sistema de reciclagem global do superavit através do que eu denomino “eurexit”: expulsando a Europa da área do dólar (quer dizer, do sistema de Bretton Woods).

Do final dos Anos 70 até 2008, foram de novo os Estados Unidos que proporcionaram, uma vez mais, o mecanismo de reciclagem global do superavit, que tornava o cartel de Europa sustentável, só que desta vez por meio dos mercados financeiros descentralizados e do pujante deficit por conta corrente dos Estados Unidos, que estava proporcionando às fábricas alemãs (e também às japonesas e chinesas) a demanda efetiva que ansiavam. E como se financiou este deficit? Atraindo 70% dos benefícios dos alemães, japoneses e chineses a Wall Street, para bancar os deficits norte-americanos. No embalo desse maremoto de fluxos de capital, a financeirização se tornou mais e mais encorpada, o que levou, inevitavelmente, a… 2008.

A união monetária da Europa só podia funcionar antes de 2008, faltava capacidade para absorver o choque depois de 2008. Desde o começo, se reforçou os atuais desequilíbrios no seio da Zona Euro (como previmos muitos), inundando a região de deficit com empréstimos que criariam bolhas prontas para estourarem logo, garantindo que, na ausência de qualquer mecanismo de reciclagem de perdas e superavits (ou de algum procedimento racional de insolvência), fosse inevitável uma crise de dívida deflacionária, uma crise que, em lugares como a Grécia, adotasse a forma de Grande Depressão, ou na forma de juros negativos e baixos investimentos, como na Áustria e na Alemanha.

Após 2008, tanto os Estados Unidos como a Europa fracassaram em recuperar seu equilíbrio e sair do que Larry Summers denomina sua “estagnação secular”. Entretanto, a Europa está lidando com o problema de forma bastante, bastante pior que os Estados Unidos, e está, na verdade, se desintegrando – diferente dos Estados Unidos, que continuam sendo sólidos, apesar dos melhores esforços da sua classe política. Investigar que tipo de perguntas os responsáveis políticos estadunidenses e europeus se fizeram em 2008 nos ajudaria a entender melhor o que houve.

Em Washington, eles se perguntaram: “o que devemos fazer para impedir que esta crise nos consuma?”. Em Bruxelas, se perguntaram: “o que podemos fazer para fingir que as regras que concebemos há quinze anos, que agora sabemos que são impossível de se respeitar, ainda são necessárias?”. A resposta à segunda pergunta só oferecerá uma solução à crise em caso de um acidente muito improvável…

Para arredondar esta análise, me lembro de um desenho humorístico dos Anos 80, no qual apareciam dois homens que olham para baixo, da janela de cristal de um arranha-céu de Nova York, enquanto um diz ao outro: “Necessitamos desesperadamente de um governo totalitário, para que se apliquem as políticas econômicas liberais”. Pois bem, temos hoje uma troica totalitária, que passa por cima de parlamentos e dos governos, a mesma que, em nome da política econômica liberal, está provocando que nossos mercados de dinheiro esmaguem os fundos de pensões, que os mercados de trabalho gerem miséria, que nossa Europa se desintegre.

Em conclusão, nossa escolha não está entre o livre mercado e a intervenção do Estado. Nossa escolha é mais interessante que esta: podemos nos agrupar ao longo da Europa, para se levantar contra a pérfida combinação entre a grande deflação, o autoritarismo e a xenofobia, que hoje se fortalece cada vez mais, tornando-se ponta de lança da desintegração da Europa, nos empurrando a uma reedição dos Anos 30 do século passado. Para que superemos esta situação, necessitamos tomar emprestadas as melhores ideias de diferentes tradições ideológicas, assim como os melhores instrumentos oferecidos pelos mercados e pelos estados. Senão, podemos desperdiçar nossas energias corrompendo as margens da atual miscelânea de políticas fracassadas, enquanto debatemos perguntas que parecem resgatadas dos panoramas de quase cem anos atrás.

* Yanis Varoufakis foi ministro de finanças do governo grego do Syriza e é professor de política econômica da Universidade de Atenas.

Tradução: Victor Farinelli

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