quinta-feira, 15 de junho de 2017

Envelhecer no Brasil é revolucionário

É primordial o compromisso com a democracia, inclusão, justiça social e participação de todos cidadãos em ações que possam construir o mundo mais solidário

    Neusa Pivatto Müller

A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Rede Internacional de Prevenção à Violência à Pessoa Idosa declararam o dia 15 de junho como o Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa, tendo sido celebrado pela primeira vez em 2006, com realização de campanhas em todo o mundo.

Em forma de abandono, maus tratos, abuso econômico ou de negligência, a violência se traduz em relações impróprias no plano individual, doméstico ou institucional, caracterizando rejeição, isolamento ou discriminação.

Ainda que se caracterize como um atentado contra os direitos humanos fundamentais, a compreensão das razões que levam a tal violência exige análise das relações sociais, econômicas e culturais no contexto em que ela se produz.

Não só as limitações físicas próprias da idade definem a vulnerabilidade da população, mas o medo de represálias ou violência, o sentimento de culpa e vergonha por depender de outros, as limitações cognitivas, a desconfiança, o isolamento social e a incapacidade de reação.

Constata-se que o conjunto de normas, leis, programas e serviços relacionados à proteção às pessoas idosas são insuficientes para garantir sua exequibilidade. Impõem-se novas políticas públicas e novas atitudes que caracterizem a necessária mudança cultural para garantir o respeito que a pessoa idosa merece, fazendo valer seu direito humano de ser tratado com igualdade, dignidade e respeito.

O conceito de violência, para o qual se usam sinônimos como “maus tratos” e “abusos”, refere-se aos processos, às relações sociais interpessoais, de grupos, de classes, de gênero, ou objetivadas em instituições, quando empregam diferentes formas, métodos e meios de aniquilamento de outrem, ou de sua coação direta ou indireta, causando-lhes danos físicos mentais e morais.

Os abusos podem ser físicos, psicológicos e sexuais; assim como abandono, negligências, abusos financeiros e autonegligência. A negligência, conceituada como a recusa, omissão ou fracasso por parte do responsável pela pessoa idosa em prover os cuidados de que necessita, é forma de violência tanto doméstica quanto institucional, donde podem originar lesões e traumas físicos, emocionais e sociais.

Mesmo sendo superior a população feminina em todas as faixas etárias, as mortes por violência predominam entre os homens. Mais da metade das causas de violência ocorrem em razão de acidentes de trânsito e transporte, quedas e homicídios.

Os casos notificados de abusos físicos contra a pessoa idosa envolvem: traumatismos, dor, lesão e coação física; maus-tratos sexuais (qualquer forma de intimidade mediante a força e a ameaça); maus-tratos materiais ou econômicos que se caracterizam pelo desvio dos recursos materiais ou financeiros destinados ao cuidado do idoso, negligência pode ser entendida como a omissão na provisão ou administração de cuidados adequados; e maus-tratos psicológicos que consistem na interferência negativa conduzindo a um padrão de comportamento destrutivo, evidenciado sob as formas de rejeição, isolamento e discriminação.

Em relação à população idosa, a percepção é a de que é uma pessoa experiente, completamente desenvolvida e que, portanto, sabe cuidar-se. Tal estereótipo é tão difundido que não é incomum o sentimento de que a pessoa idosa é um ser em decadência, obsolescência e dotado de poucas necessidades.

Chega-se ao paroxismo de privá-la de suprir algumas dessas necessidades, como as de natureza afetiva e sexual, esta última, aliás, vista até como imprópria para a idade.

Em muitas situações, porém, a próprias pessoas idosas contemporizam e toleram tal violência, como que admitindo a inevitabilidade desse tipo de comportamento por parte de seus familiares jovens, a quem, evidentemente, nem sempre desejam ações repressivas.

Dessa realidade surgem outros problemas, como as subnotificações de casos de violência, que se refletem em distorções estatísticas, dificultando a detecção e compreensão de muitas situações fáticas, em prejuízo da adoção de providências adequadas, tanto por parte do poder público, quanto dos próprios familiares eventualmente desconhecedores da violência perpetrada.

A concertação entre o cumprimento da legislação vigente, as políticas públicas e as iniciativas privadas é fundamental para dar resposta aos desafios do envelhecimento demográfico e ao perfil das necessidades e expetativas das pessoas idosas.

Os ganhos da pessoa idosa, em anos de vida, produzem alterações na existência humana, no presente e futuro, e exigem novos comportamentos, estilos de vida, expectativas e valores provocando um questionamento sobre representações sociais estereotipadas e a ter em conta a explosão de singularidades, no âmbito do direito inclusivo.

Considera-se premente o alcance da sustentabilidade dos sistemas e mecanismos formais e informais, nacionais e locais de proteção social, especialmente no que refere a prevenção e enfrentamento da violência. Tais iniciativas devem abranger estas diferentes dimensões e a proteção, devendo prioritariamente, responder às situações de maior vulnerabilidade, como o agravamento da desigualdade.

Torna-se imperativa a adequação entre o envelhecimento demográfico e o perfil das necessidades e expectativas das pessoas idosas. Sendo assim, se faz necessário que o governo assuma seu compromisso de trabalhar assiduamente para que se fortaleça a legislação dos Direitos da Pessoa Idosa em sua conotação mais ampla e contemporânea, incluída, aqui, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa assinada pelo Brasil em 2015, que demanda atenção especial e encaminhamento ao congresso para ratificação; e promova o reconhecimento do papel que a população idosa desempenha no desenvolvimento político, social, econômico e cultural de suas comunidades.

As ações de conscientização devem abranger a sensibilização profissional e da opinião pública, visando sancionar e erradicar todas as formas de violência contra a pessoa idosa com ênfase na discriminação baseada no gênero, incluindo a violência sexual. Conscientização e prevenção são estratégias de intervenção social, que buscam objetivos diferentes, mas de forma complementar.

É urgente que se amplie as campanhas de informação e a conscientização permanente e acessível para analisar o fenômeno da violência em todas as suas dimensões, e enfatizar a gravidade do problema da violação dos direitos fundamentais contra a população idosa e suas implicações criminais.

A conscientização tem como objetivo sensibilizar a população, torná-la ciente do problema por meio de informações que revelem as situações de violência contra a pessoa idosa e promovam a compreensão de suas causas. Desta forma criam-se as condições para que os indivíduos possam se posicionar de maneira crítica frente a essa realidade de violência e modificá-la. Sensibilização, entretanto, não é apenas informar. A informação é essencial, mas insuficiente. Entre as ferramentas de sensibilização se destaca a publicidade social (folhetos informativos, cartazes, cartilhas etc.) e a realização de seminários, encontros e fóruns de discussão.

É preciso assegurar a incorporação e a participação equitativa de mulheres e homens idosos no desenho e na aplicação das políticas, dos programas e planos que lhes dizem respeito. E garantir o acesso equitativo de mulheres e homens idosos na previdência social e em outras medidas de proteção social, principalmente quando eles não gozam dos benefícios da aposentadoria.

É assustador o conteúdo constante na proposta de reforma da previdência que, sabidamente, fará com que a população trabalhe até a morte. Nada mais violento, especialmente porque é pensado e arquitetado por um congresso que tem por obrigação legislar em prol dos/as que mais necessitam.

Cabe um apelo especial à sociedade brasileira para que se junte aos gestores públicos para um compromisso enquanto nação em defesa da população idosa. Para além desse compromisso é necessário estabelecer relações intergeracionais com lealdade. É necessária uma nova postura ética e conduta social. Vivemos um processo de desconexões com o humano, vivemos numa cultura centrada no poder. Vivemos uma crise ética.

É urgente e necessária uma escuta profunda. É preciso dedicar atenção especial aos vazios de proteção social onde persiste dificuldade de acesso a direitos fundamentais. Sabemos que a tarefa é árdua e exige atos de coragem, atos que revolucionem e se fundamentem no espírito de solidariedade e cooperação, o qual deve estar sempre iluminado e potencializado por um desejo enorme de cada um/uma de nós de compartilhar, crescer e ser em um mundo onde a serenidade e o otimismo fluam em permanência.

É o que de mais revolucionário podemos construir: uma sociedade menos violenta. Apesar dos percalços éticos, políticos e econômicos, precisamos de ação e coragem para enfrentar a violência e o autoritarismo que atualmente se intensificam. É primordial o compromisso com a democracia, a inclusão, a justiça social e a participação de todos os cidadãos nas ações que possam construir, através de uma dimensão educadora e ética, que procure uma vida melhor e apropriada às exigências de um mundo mais solidário, justo e humano.

* Neusa Pivatto Müller é cientista social e ex-coordenadora Nacional da Política de Direitos da Pessoa Idosa


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