segunda-feira, 17 de setembro de 2018

A Gente Somos Inútil, por Armando Coelho Neto


A Gente Somos Inútil*

por Armando Rodrigues Coelho Neto

O desastre social que o Brasil enfrenta já não pode mais ser omitido. Segundo publicação recente da Folha de São Paulo, entre 2014 e 2017, o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza no Brasil cresceu 33%, o que significa 6,3 milhões de novos pobres no país. A cotação do dólar disparou para patamar superior a R$ 4,20, o que impacta, entre outros, os preços dos combustíveis (o litro do diesel já é vendido nas bombas a R$ 3,70, e o da gasolina a R$ 5,00). Há, segundo o IBGE, 13 milhões de desempregados. Falta trabalho, no todo ou em parte, para nada menos que um quarto (24,6%) dos brasileiros em idade de trabalhar. Congelou-se o investimento público por vinte anos, e cortam-se verbas da saúde, da educação, da assistência e dos programas sociais, que estão sendo descontinuados ou tornados inócuos.

A engenharia nacional foi absolutamente impactada. O fim do conteúdo nacional na política da Petrobras, a maior empresa brasileira, resultou no declínio de uma vasta cadeia produtiva. O fechamento de unidades de refino no Brasil e a substituição pela importação de derivados de petróleo refinados no exterior, em especial dos EUA, aumentou o preço do frete e diminuiu a competitividade do agronegócio. Uma desvalorização ainda maior do real e o retorno da inflação aos patamares anteriores ao Plano Real só não se verificam pela ação do Banco Central através de operações de swap cambial (pela qual estamos hipotecando aceleradamente nossas reservas em moeda estrangeira e a segurança financeira do futuro da Nação). Nosso vizinho argentino, em situação análoga, já precisou recorrer ao FMI.

O consórcio jurídico-midiático-persecutório, cooptado pela nobreza oligárquica para destruir o governo popular e retornar ao poder, em face de sua incompetência eleitoral, revelou-se um desastre. Até as lideranças do PSDB, tradicional voz política do “mercado”, já admitem abertamente terem errado ao aderir ao golpe. Os conservadores obsoletos (no Parlamento, no Executivo e no Judiciário) estão sendo substituídos pelos neofascistas de mercado, apresentados como outsiders. E os métodos consagrados da política conservadora (manipulação da opinião pública pela mídia familiar e trocas de favores públicos e privados na base do compadrio) estão perdendo espaço para os métodos de engenharia de redes sociais, difusão massiva de fake news, ação think tanks e outros, largamente empregados nas diversas “primaveras” desestabilizadoras apoiadas pelos Estados Unidos, mundo afora.

Quem acompanha esta coluna semanal em nosso blog no GGN sabe que denominamos esse fenômeno de avanço da imbecilidade das classes mais abastadas como “síndrome de Macabéa”. Não vou me delongar nas origens do termo (basta “dar um Google”, espiar os artigos anteriores ou ler Clarice Lispector). Mas acreditamos ser de grande valia nos determos um pouco no conceito, aprofundarmos o significado do momento atual.

Em parte, a “geração Coca-Cola” formatada a partir do hiperconsumismo anseia por respostas fast food para todos os problemas. Isso explica o êxito de propostas reducionistas para quaisquer temas (que o leitor já deve ter ouvido em chavões tais como “direitos humanos para humanos direitos”, “vai pra Cuba”, “cotas raciais são racistas” ou “e onde ficam os direitos dos homens brancos e héteros?”).

Para além dos “memes”, das questões identitárias, dos discursos de ódio e das violências simbólicas e reais contra o povo, contudo, o caos vivenciado revela algo muito mais profundo. Nossa nata econômico-social (descrita por Jessé Souza como “A Elite do Atraso”), uma vez reinstalada no poder pelo consórcio jurídico-midiático-persecutor, revelou-se, afinal, plenamente incapaz de conduzir os destinos do País. É como se essa casta arrogante fosse o objeto da famosa música do “Ultraje a Rigor” que empresta título a este ensaio.

Com efeito, além da vingança social contra o povo brasileiro (destruindo a indústria naval e de construção civil, acabando com os empregos, retirando direitos e precarizando as relações trabalhistas), o que fizeram os representantes do atraso no período pós-ruptura institucional? Segundo dados do TCU e da Receita Federal, o montante de renúncia fiscal direta de tributos federais somou a expressiva cifra de R$ 406.000.000.000,00 (quatrocentos e seis bilhões de reais). No setor de petróleo e gás, sob a vergonhosa e pública presença de lobistas da Shell no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, as petroleiras estrangeiras foram beneficiadas em mais de R$ 1.000.000.000.000,00 (um trilhão de reais), além de serem desobrigadas de aquisições de produtos e serviços brasileiros.

Enquanto isso, a base arrecadatória nacional segue calcada em tributos indiretos, que incidem sobretudo sobre o consumo (penalizando justamente a camada mais pobre da população). Paralelamente, a exportação de bens, a divisão de lucros entre os sócios e os recursos repatriados pelos afortunados (classificados como “investimento estrangeiro”) são isentos de tributos. Valores referentes a dividendos e juros sobre capital próprio estão a salvo de qualquer incidência, graças a uma lei sancionada nos anos 1990 por Fernando Henrique Cardoso, favorecendo um universo de pouco mais de dois milhões de indivíduos (isto é: menos de 1% da população brasileira). Conforme é de conhecimento público, os integrantes de apenas três núcleos familiares (a saber: Setúbal, Villela e Moreira Salles), controladores da holding Itaú/Unibanco, receberam R$ 9,1 bilhões em dividendos e juros sobre capital próprio (JCP) nos últimos cinco anos, segundo levantamento feito pela Bloomberg. Um terço dessa montanha de dinheiro foi distribuída somente em 2017.

A toga cobrou sua parte no butim. Segundo dados do CNJ, os auxílios pagos mensalmente a magistrados em abril do corrente ano foram de (não se percam nas contas): R$ 75.214.892,02 a título de moradia; R$ 18.674.754,53 para alimentação; R$ 9.527.488,48 para garantir a saúde; R$ 1.187.365,85 como auxílio pré-escolar e R$ 10.141,09 sob a rubrica “natalidade”. Total: 104.614.632,97. Tal montante precisa ser, naturalmente, aditado ao restante da juristocracia, incluindo os integrantes do Ministério Público, em suas diversas instâncias e esferas. Ao passo em que a não-discutida reforma trabalhista aprovada no Congresso Nacional recebe o selo de constitucionalidade de seus ministros, o STF garante para a classe o aumento dos vencimentos em 2019 de R$ 33,7 para R$ 39.000,00. Uma atitude, considerando o momento, de suprema insensibilidade.

Mas não é apenas nas benesses e regalias que para si concedem e a penúria para a qual remetem o restante da população que revelam o anacronismo da “Elite do Atraso”. Nossa aristocracia é incapaz de compreender a si mesma e ao mundo. Vive na mais completa ignorância em termos de geopolítica. Desconhece sua própria Cultura, História e tem pouca noção de identidade nacional. Nada poderia ser mais emblemático de tal situação do que Museu Nacional ardendo em chamas (que consumiram grande parte do acervo arqueológico mundial e nacional de que o País dispunha, abrangendo múmias egípcias e o fóssil da mais antiga criatura humana da América, Luzia) por falta de recursos para prevenir incêndios. Paralelamente, a alta roda brasileira, em suas viagens internacionais, promove constantes visitações ao Museu do Louvre, em Paris, sem jamais ter posto os pés na casa colonial localizada na Quinta da Boa Vista, onde foi assinada a independência do Brasil.

Essa camada ignara e arrogante sobrevive da exportação de proteína animal (aves) e vegetal (soja), entre outras “commodities”, para a China, mas considera como aliado político nosso maior competidor comercial (o Grande Irmão do Norte, sob a administração de Trump, dirigente que nutre tamanho desprezo povos latino-americanos, que chegou ao ponto de consturi um muro separando os EUA do México, propondo mandar a conta para o país vizinho).

Como os principais postos de gestão das esferas públicas e privadas são ocupados, em um país de continental desigualdade social como o Brasil, por indivíduos oriundos dessa camada social minoritária e defasada, essa incompetência se espraia para todos os aspectos da vida nacional. A isto se deve não termos solução alguma para as principais dificuldades que afligem nosso País. Pois o Brasil tem uma mídia que desinforma ou estupra a informação; Um Parlamento que não legisla; Uma Justiça que, em vez de promover a pacificação social pela aplicação imparcial da legalidade e defesa da Constituição, tornou-se ela mesma fonte de seletividade, ilegalidades e conflitos; Promotores e procuradores que, sob a desculpa de representarem os interesses coletivos, buscam se substituir à Sociedade Política; Forças Policiais que geram insegurança; Forças Armadas cujo oficialato não se importa com a Soberania Nacional; Empresários que especulam e não empreendem.

A confiança da elite na viabilidade infinita de manipulação midiática da Opinião Pública ou da contenção dos conflitos pela força é também fruto dessa incapacidade de compreender o mundo ao seu redor e o dinamismo das relações sociais. Diversamente do que sucedeu nos episódios históricos anteriores de espasmos autoritários da vida nacional, a população brasileira, pós-êxodo rural, muito mais bem-informada (inclusive pelo acesso à Internet) vive em sua maior parte aglomerada nos grandes centros urbanos. Já se perdem, longínquas no tempo, as memórias do temor às lideranças paroquiais e aos hábitos simples e austeros do campo. Por outro lado, a longa campanha de desmoralização da esfera pública, associada ao abandono das comunidades mais humildes, legou uma grande desconfiança em relação às figuras de autoridade.

Essa realidade faz com que sejam inócuas promessas de reinstituir um suposto passado de ordem e respeito com base na simples repressão. É preciso muito desconhecimento da complexidade social do País, de suas reais e gigantescas demandas sociais para supor que tratar a imensa maioria do povo brasileiro na base do “tiro, porrada e bomba” realmente irá funcionar. Em especial por causa desse imenso sentimento de traição, em que o golpe jurídico-midiático-parlamentar abortou um dos maiores movimentos de mobilidade social do mundo (ascensão superior a quarenta milhões de brasileiros).

Constatar o anacronismo e a inutilidade de nossa elite atrasada, anti-povo e anti-nacional não significa, à evidência, menosprezar o largo potencial que ela tem de causar dor ao povo brasileiro, infligir danos ao futuro da Nação ou embaraçar o avanço econômico do País. No entanto, é uma passo fundamental para que se atinjam algumas convicções. Em primeiro lugar: que nossa oligarquia é mesquinha, egoísta, visa apenas a rapinagem mais imediatista em benefício próprio e não tem projeto para o País ou resposta para as suas demandas sociais. Segundo: que esse grupo parasitário é altamente falível em suas gestões a frente do Estado e dos negócios privados, e recorrentemente mal-sucedida nas opções eleitorais (daí o porquê das sucessivas rupturas institucionais). Terceiro: que a verdadeira luta pela emancipação do Brasil supera o processo eleitoral em curso – o que implica, necessariamente, que os democratas, os nacionalistas, as pessoas conscientes, estejam sob o compromisso moral de, unidos ao sentimento da imensa maioria do povo brasileiro, lançar uma corrente permanente de resistência e luta política. Visando a inclusão da população carente e a transformação definitiva do País.
* Com colaboração da Ass. Artigo 5°
Armando Rodrigues Coelho Neto - jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.

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