sábado, 22 de dezembro de 2018

A classe média no espelho

por Jessé Souza
Imagem por André Valias

Ao tornar a reprodução de privilégios invisível, a pseudociência liberal passa a ser manipuladora, pois inverte causa e efeito, e legitima privilégios injustos como se fossem “mérito individual”, podendo, inclusive, culpar as vítimas do abandono por sua própria exclusão

Meu interesse, neste texto, é discutir alguns dos aspectos centrais desenvolvidos no meu livro mais recente, A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade, depois da publicação de A elite do atraso, em 2017. O livro será lançado ainda em outubro de 2018, pela Editora Sextante. Ele é o resultado de uma pesquisa empírica e teórica realizada por mim entre 2015 e 2018. Seu objetivo é compreender essa classe social fundamental e desvelar sua história, sua diferenciação e hierarquia interna e seu papel tanto econômico quanto social e político nos últimos cem anos de história brasileira.

O livro combina a análise histórica e teórica das transformações dessa classe social fundamental com o resultado de centenas de entrevistas empíricas realizadas com pessoas de todas as frações da classe média. As entrevistas foram depois amalgamadas para formar os tipos sociais mais característicos dessa classe. Tudo isso combinado em linguagem acessível e compreensível ao leitor, sem, no entanto, implicar nenhuma concessão à superficialidade. O pressuposto é o de que qualquer assunto, por mais complexo que seja, pode se tornar compreensível e atraente ao leitor médio de boa vontade.

Em um país que se acostumou a perceber as classes sociais por seu nível de renda, é necessário que se diga que classe social é, antes de tudo, um mecanismo de reprodução de privilégios no tempo, sejam eles positivos ou negativos. O problema é que muitos privilégios positivos, como a posse de conhecimento valorizado – precisamente o tipo de capital monopolizado pela classe média real –, são literalmente invisíveis para a maioria. Para poder aprender de verdade na escola é necessário ter tido em casa, desde tenra idade, todos os estímulos emocionais e morais (também tornados invisíveis), sem os quais não existe real aprendizado. Ninguém nasce com capacidade de concentração, disciplina e autocontrole, amor à leitura, pensamento prospectivo ou capacidade de pensamento abstrato.

Em seu conjunto, essa “herança imaterial” permite reproduzir o privilégio da classe média “real” entre gerações que recebem de “presente”, pela socialização familiar específica da classe, o sucesso escolar e posteriormente o sucesso no mercado de trabalho. A renda diferencial da classe média em relação às classes populares também ajuda a aprofundar a desigualdade, na medida em que as famílias de classe média podem comprar o “tempo livre” dos filhos apenas para o estudo. Nas classes populares, os filhos começam a trabalhar e a estudar aos 12 ou 13 anos. Mas a injustiça já começa no berço e se mostra aos 5 anos, quando uns chegam como vencedores e outros como perdedores à escola.

Ou seja, a “renda” que a classe média adulta aufere só existe por conta dessa reprodução invisível de privilégios positivos na infância e na adolescência. É isso que explica a renda diferencial dos indivíduos da classe média em relação aos das classes populares. Ao tornar a reprodução de privilégios invisível, a pseudociência liberal passa a ser manipuladora, pois inverte causa e efeito, e legitima privilégios injustos como se fossem “mérito individual”, podendo, inclusive, culpar as vítimas do abandono por sua própria exclusão.

O foco unilateral na renda distorce toda a percepção das classes sociais e torna, por exemplo, literalmente invisível a ação dos valores morais no comportamento prático das pessoas. Assim, além de dinheiro e poder, como estímulos pragmáticos ao comportamento prático de cada um de nós, é necessário reconstruir a hierarquia moral “invisível”, composta por “ideias valorativas” fundamentais, que também nos comandam no dia a dia tanto ou mais que dinheiro ou poder. Essa dimensão é universal e está presente em todas as sociedades modernas, ao contrário do que pensa nosso mito “vira-lata”, que imagina o Brasil como um planeta verde e amarelo cuja singularidade é comandada pela corrupção apenas do Estado em tese “patrimonial”.

O indivíduo supostamente livre que se classifica socialmente pela renda enigmaticamente produzida esconde, na verdade, o racismo como um dado universal das relações sociais no mundo inteiro. Racismo, portanto, não pode ser reduzido ao “racismo racial”, por mais importante que ele seja. Não perceber esse fato fundamental é se condenar a não compreender nada de importante no mundo social. O racismo que se aplica à “raça” é apenas a forma mais visível de um racismo muito mais amplo e universal. Afinal, a operação do “dispositivo de poder racista” se aplica a qualquer separação entre “gente” e “subgente”.

No Ocidente, a noção de “gente” é sempre associada ao “espírito”, como lugar da inteligência, da disciplina e da moralidade, e a noção de “subgente” é sempre associada ao “corpo”, como emoção irracional e trabalho animalizado. O racismo “racial” é, portanto, apenas uma das formas possíveis de racismo. A mesma separação operada entre o branco percebido como “espírito” e do negro percebido como “corpo” se aplica às classes superiores em relação às classes populares, aos homens em relação às mulheres, e às culturas ditas superiores, do Norte global, em relação às ditas atrasadas, do Sul global.

Por conta desse racismo generalizado e tornado invisível, toda a dimensão “simbólica” da desigualdade que permite e justifica a renda diferencial é tornada secundária. Além disso, a renda nunca é o único privilégio que vive do racismo não percebido. Tão importante quanto ele é o prestígio social, que condiciona tanto o reconhecimento social dos outros em relação a nós quanto nossa própria autoestima e autoconfiança. Na verdade, as noções de “personalidade sensível” e “produtividade útil” comandam nossa vida e nossas escolhas tanto ou mais que dinheiro e poder. Toda legitimação da desigualdade social assume a forma compósita da “sensibilidade diferencial”, exibida nos hábitos de consumo, na forma de andar, falar e se expressar, e do “desempenho diferencial”, explicitando a maior importância relativa do conhecimento em relação ao esforço muscular.

Admira-se o “bom gosto” de quem entende de vinhos, de quem anda de modo elegante, de quem fala de modo articulado, de quem se expressa sem dificuldades. Isso cria uma “solidariedade” imediata e invisível entre todos que compartilham desse “estilo de vida”. Cria também uma animosidade e um preconceito contra todos os “animalizados” que não compartilham do mesmo mundo. Assim, o “racismo de classe” funciona de modo invisível e, precisamente por conta disso, de modo muito eficiente.

A “ética do desempenho”, por sua vez, repete, no mundo do trabalho, a mesma oposição que enseja solidariedade entre os de cima e o preconceito contra os de baixo. As classes do trabalho intelectual se veem como “superiores” às classes do trabalho manual. Tudo de modo invisível e “inconsciente” para funcionar melhor. Assim, temos um racismo de classe que torna invisível todos os fatores que constroem todos os privilégios e que nem sequer é percebido como racismo.

Essa moralidade invisível está por trás de todo o nosso comportamento prático. Diz-nos, por exemplo, de quem devemos ser amigos, com quem devemos nos casar, com quem devemos fazer negócios e quem são nossos parceiros na manutenção da vida como ela é. Por oposição, diz-nos quem devemos evitar e com quem devemos ter apenas relações passageiras de serviços. O livro desvela de modo claro e compreensível, sempre utilizando exemplos concretos retirados da vida cotidiana, como somos comandados por essa “hierarquia moral” que separa as classes do privilégio, como a classe média, das classes populares.

A ideia subjacente é a de que nosso comportamento concreto é muito mais importante, para definir quem somos e como agimos do que as ideias conscientes que temos na cabeça. Se essas hierarquias morais são universais, a forma como esses princípios funcionam em uma sociedade de passado escravocrata como a nossa ajuda a explicar – mais do que qualquer culturalismo “vira-lata” – nossa distância em termos de aprendizado moral em relação às sociedades mais igualitárias.

A segunda parte do livro se refere à gênese histórica da classe média no Brasil. O livro mostra como a oposição entre “alta classe média” e “massa da classe média” se constrói no começo do século XX e opõe essas frações tanto na dimensão econômica quanto na dimensão política. Nesse sentido, as clivagens verticais na classe média são mais importantes que as clivagens horizontais, como a reconstrução histórica de longa duração dessa classe, levada a cabo no livro, demonstra. O mais interessante é que essas clivagens entre as frações de classe da classe média explicam em boa medida a conjuntura atual que atravessamos.

Esses elementos combinados precisam ainda ser acrescidos de um aspecto fundamental: o “espírito da época”, representado pela revolução simbólica neoliberal posta em prática pelo capitalismo financeiro, hoje dominante. O livro analisa a combinação complexa desses elementos em linguagem acessível e clara para qualquer leitor. O instante histórico atual é simbolizado pelo auge da dominação simbólica, social e econômica do capital financeiro. O capitalismo financeiro cria não só uma forma específica de acumulação de capital, com um ritmo e uma lógica peculiar, mas também uma semântica, uma concepção de felicidade pessoal e uma “narrativa” de vida social inteiramente nova. Essa narrativa se aplica aos trabalhadores, mas também aos gestores e supervisores do trabalho, de níveis superiores e intermediários, que perfazem boa parte da classe média, seja a alta, seja a massa da classe média.

A grande novidade da estratégia de poder do capitalismo financeiro é que ela se vende como “liberdade” e como “autorrealização”. A colonização de todo vocabulário “expressivista” e da ética da autenticidade individual, transformados de sua dimensão ética e finalista em pragmática e instrumental, serve precisamente a esse fim. O mecanismo de poder mais eficiente é o que se vende como “liberdade individual”. O trabalhador redefinido como “colaborador” ou como “empresário de si mesmo” serve para mostrar que o antigo capataz e o vigilante do trabalho, juntamente com a subordinação explícita que ele ensejava, finalmente morreram. Hoje, no capitalismo financeiro triunfante, somos todos, finalmente, empresários. Como muitos são “autônomos” – observe o nome que evoca liberdade e autonomia, como tudo na semântica da nova época hoje em dia, inclusive na classe média – e devem ao banco o início de sua atividade ou negócio, o patrão se torna crescentemente abstrato e imaterial.

Por conta disso, se temos metade das empresas brasileiras e a maior parte da população endividada até o pescoço, hoje em dia1isso não provoca reação nem rebelião organizada nas pessoas. O novo dispositivo e as novas estratégias de poder do capitalismo financeiro são invisíveis para suas vítimas, daí sua extraordinária eficácia. É um poder que se exerce de modo sutil e “sedutor”, que se vende como liberdade e autonomia individual. O Facebook é a metáfora perfeita para esses novos tempos e suas novas estratégias. Todo o aparato de vendas comerciais construído com precisão de alfaiate para as necessidades de cada um de nós é produzido por “curtidas” que nós próprios fazemos sem nenhum custo para a plataforma comercial. Isso tudo sob a aparência ingênua e confiável da troca de informações entre amigos e familiares. Ninguém precisa invadir mais de modo ilegal nossa privacidade, ainda que isso também aconteça. Nós a oferecemos, agora de graça, para quem lucra com ela.

A nova opressão do capitalismo financeiro é eficaz, posto que se vende como liberdade. Ela não censura, não silencia, não impede, não proíbe. Ela não ativa nenhum dos dispositivos de dominação que normalmente associamos ao exercício do poder. Ao contrário, ela nos estimula a contar nossa vida, a nos comunicarmos, a mostrar nossos desejos e preferências; somos nós mesmos que nos entregamos a quem nos explora sem custo. Isso tudo como se estivéssemos curtindo, gostando, fruindo nossa liberdade individual. Esse é o novo ambiente de um poder que é tanto mais eficaz precisamente porque não se mostra como “poder”. As trajetórias de vida discutidas no livro permitem adentrar de modo concreto e cotidiano na nova forma de dominação econômica, social e política que se tornou hegemônica.

Por que não percebemos o potencial patológico desse novo capitalismo? Para esclarecer essa questão é necessário partir de uma reflexão fundamental de um dos maiores filósofos do capitalismo: o pensador alemão Georg Simmel. Em um de seus textos seminais,2 Simmel percebe que a “sensação de liberdade” só é possível quando estamos transitando de uma situação social para outra. Afinal, não existe “liberdade” enquanto tal, ou seja, enquanto ausência de qualquer tipo de constrangimento. Estamos sempre inseridos em um contexto que nos limita, nos constrange e nos obriga.

A “sensação de liberdade”, portanto, é peculiar a épocas de transição, como a nossa, quando as antigas limitações percebidas como aprisionamento são substituídas por outros tipos de constrangimento. Nesse meio-tempo, entretanto, enquanto os novos constrangimentos não são ainda percebidos enquanto tais, eles podem ser tanto percebidos por suas vítimas quanto “vendidos” por seus algozes como se fossem liberdade real e efetiva. Esse livro, talvez o melhor e o mais claro que tenha escrito na minha vida intelectual, procura compreender o que há de mais universal e abstrato para iluminar, com exemplos concretos, a vida que a classe média brasileira vive cotidianamente, sem ter tempo de refletir sobre ela.

*Jessé Souza é sociólogo e autor, entre outros, de A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato (Leya, 2017) e A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade(Sextante, 2018), a ser lançado em outubro.

1 Vitor Abdala, “Percentual de famílias endividadas sobe de 59% para 62,2%”, Agência Brasil, 5 jan. 2018.

2 Georg Simmel, Das Individuum und die Freiheit [O indivíduo e a liberdade], Essais, Wagenbach, 1992.

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