quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Protestantes tradicionais no governo Bolsonaro e o mal banal das pessoas comuns. Artigo de Fábio Py


Fábio Py
http://www.ihu.unisinos.br/

"O que parece evidente é que as ações desses discretos religiosos remontam ao mal que as pessoas comuns podem praticar nos contextos autoritários, quando deixam de refletir criticamente. Retomando as reflexões de Arendt, a banalização do mal ocorre quando um governo se baseia em concepções que levam à tentativa de tirar a humanidade do “outro indesejável” e acabam por fomentar nas pessoas mais comuns a incapacidade de compaixão pelo próximo. Nesse sentido, mesmo sendo pessoas discretas e “técnicas”, os religiosos batistas e presbiterianos ao aderirem ao projeto bolsonarista, agem tal como os burocratas que serviram à máquina fascista. Demonstram que crentes comuns, aqueles que frequentam as igrejas, preocupados com a rotina religiosa de orar, jejuar, cuidar dos filhos e filhas, de zelar pela segurança da família podem ser partes do maquinário estatal eugênico de Bolsonaro", escreve Fábio Py, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RIO e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF.

Eis o artigo.

A posse do pastor presbiteriano Milton Ribeiro, no dia 16 de julho, como ministro da educação coloca em evidência a atuação e a força dos protestantes tradicionais no governo Bolsonaro. Se a ação dos pentecostais ligados à prosperidade-empresarial, tal como Macedo e Malafaia, é ruidosa e sempre foi notória, os protestantes tradicionais, tais como os batistas e presbiterianos, tiveram sua força amplificada com o advento da pandemia. Os movimentos do governo indicam que aos protestantes tradicionais cabe a parte “mais intelectualizada” da gestão, tendendo a assumir o setorial “jurídico-educacional”, áreas mais teóricas e técnicas. O perfil pragmático e comum dos protestantes a assumirem o governo demonstra que a adesão a um projeto autoritário e genocida como o de Bolsonaro pode ter face banal, como a do religioso vizinho do lado.

Os protestantes tradicionais estão assumindo as áreas mais técnicas porque, entre os evangélicos, são os que têm um largo histórico de formação educacional. Basta lembrar a trajetória já centenária de seus colégios e seminários teológicos no país. Estrategicamente, esses colégios confessionais ajudaram na formação das classes médias urbanas das grandes metrópoles brasileiras. Cito o exemplo do Colégio Batista Sheppard, anexo do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, na área nobre da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro. Portanto, se é evidente que se os evangélicos são parte fundamental do governo Bolsonaro, sua fração mais ligada ao ethos das camadas médias tomou a frente da operalização “ideológica” do estado cerceador cristofascista. Na pandemia, esse arranjo de forças ficou mais evidente. Novamente, chama atenção o perfil técnico e discreto dos protestantes bolsonaristas.

Presbiterianos e batistas no jurídico-educacional cristofascista pandêmico

A tomada de posição do governo em direção aos presbiterianos e batistas não pode ser compreendida como ocasional. Está relacionada com a força e a importância da Frente Parlamentar Evangélica, junto ao núcleo duro do governo. Diferentes dos líderes pentecostais ligados à teologia da prosperidade, esses protestantes têm perfis mais discretos. Representantes exemplares da concepção tradicional de família, facilmente passam despercebidos da grande maioria da população brasileira.

Também não pode ser desprezado que presbiterianos e batistas já ocupam liderança do governo Bolsonaro, como, por exemplo, a própria ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que é pastora da Igreja Batista da Lagoinha. Contudo, a novidade é a tomada de poder dos protestantes tradicionais na área mais “ideológica” da gestão Bolsonaro.

O primeiro nome do protestantismo tradicional a exercer função técnica destacada foi o atual presidente da fundação CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Benedito Guimaraes Aguiar Neto. Na presidência da fundação, Aguiar Neto se tornou responsável pelas bolsas de estudos do governo de graduação e Pós-Graduação e pela avaliação dos Programas de Pós-Graduação do país. Engenheiro, ligado à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) e ex-reitor da Universidade Mackenzie (de confissão presbiteriana), Benedito Guimaraes marcou sua trajetória como reitor pela assinatura de convênio entre a Mackenzie e o Discovery Institute, instituto responsável pela promoção do Design Inteligente nos EUA e no mundo. Apensar do pomposo e moderno nome em inglês, Design Inteligente (DI) nada mais é que uma variação pretensamente científica do criacionismo.

Pelo convênio, a Universidade promoveu eventos sobre o tema do DI, chegando a trazer ao país a referência mundial da teoria, o bioquímico Michael Behe. Também foi publicado pela editora da Mackenzie o livro clássico sobre o DI, intitulado “A caixa preta de Darwin”. Os esforços na difusão da concepção criacionista da Mackenzie são amplos: a universidade tem um Centro de “Ciência, fé e sociedade”, de onde consolida a ideia do DI. O próprio Benedito chegou a reforçar essa expressão do criacionismo como uma possibilidade a ser incluída no programa pedagógico da educação básica. "O que de fato assusta a comunidade científica quando se tem o gestor de um órgão tão importante como a CAPES, ser signatário de uma tendência pouco científica". 

Após Benedito, o segundo protestante tradicional a obter um cargo de destaque no governo Bolsonaro foi outro pastor presbiteriano, André Luís Mendonça, que assumiu o lugar do ex-juiz Sergio Moro, no Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Como terrivelmente evangélico, André Luís é pastor assistente voluntário da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), com doutorado na Universidade de Salamanca em Direito. Em sua solenidade do cargo no dia 29 de abril, já no contexto pandêmico, o pastor chegou a dizer publicamente que as “gerações de brasileiras não sabem o que é viver um estado de segurança pública”.


Sem qualquer crítica mais sistêmica, afirmou literalmente que “será um fiel missionário” do governo. Interessante que o pastor André é descrito pelos colegas como pai zeloso, uma pessoa afável e educada, além de ser muito competente nos elementos da Ciência Jurídica, os mesmos qualitativos atribuídos ao diretor da Capes. Contudo, assume voltar-se contra a corrupção, mas, sobretudo, a questão da segurança pública, dita “tão falha no país nos últimos anos”. Logo, será um “missionário” de Bolsonaro nessa direção da reafirmação do já atual estado policial.

Além das posses de Benedito de Aguiar e de André Luís Mendonça, o fortalecimento dos evangélicos tradicionais teve como marco a ascensão do pastor Milton Ribeiro como ministro da educação, que tomou posse na última quinta-feira, 16 de julho. Antes de ser empossado como ministro, Ribeiro havia atuado por 28 anos à frente da Igreja Presbiteriana Jardim da Oração em Santos. Na igreja que congregava, Ribeiro é descrito como pessoa “acolhedora, tranquila e conversadora”. A comunidade religiosa chegou a se posicionar no apoio ao novo projeto do antigo pastor, destacando seu trabalho prol família.



O pastor Milton também atuou em várias instâncias da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em sua tese de doutorado na USP, que não está aberta ao público, intitulada “Calvinismo no Brasil e organização: o poder estruturador da educação” defende o pioneirismo das instituições protestantes no Brasil na constituição da liberdade e da democracia. Destaca que as instituições protestantes “deveriam ser parâmetros para a formação do país”. O trabalho é uma exaltação à educação presbiteriana no país, “esquecendo”, porém, de avaliar o caráter elitista do projeto de educação protestante no Brasil, como nos lembram os pesquisadores Antonio Gouvêa Mendonça e Procoro Velasques Filho, no clássico “Introdução ao protestantismo brasileiro”.

Batista no CNE

Além de Milton Ribeiro, a Educação brasileira ganhou a adesão de um outro religioso, o batista Valsenir Braga, que assumiu, no último dia 10 de julho, o Conselho Nacional de Educação (CNE). No currículo de Braga, uma longa trajetória como gestor da Rede Batista de Educação em Minas Gerais, uma rede de colégios com 13 unidades. O novo conselheiro tem formação em engenharia e administração de empresas, e é diretor da Associação Comercial de Minas – ACMinas e do Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais – SINEP-MG.

Na direção do Colégio Batista Mineiro, Valsenir Braga se destacou na implementação do ensino de inglês para crianças a partir de três anos de idade pelo programa Batista Bilíngue. Também se empenhou no ensino de robótica, numa clara demonstração da preocupação quanto à “educação tecnológica”. Além do conhecido empenho na gestão, Valsenir Braga é descrito em suas redes sociais como pessoa simples, de bom trato e de fortes laços familiares. Agora, sua característica de defesa da educação tecnológica interessa de sobremaneira às pautas do governo Bolsonaro.


A banalidade do mal e os protestantes tradicionais no governo Bolsonaro

As trajetórias dos discretos protestantes tradicionais que vêm assumindo os cargos mais “ideológicos” do governo assinalam um caminho já acenado pelo próprio presidente, após tantos problemas políticos nos ministérios. Contudo, o perfil mais pragmático desses protestantes parece indicar um movimento mais assustador. A ação desses religiosos mais discretos remete à expressão da “banalidade do mal”.

A expressão remete à filósofa Hannah Arendt, que ao analisar o julgamento do líder nazista Adolf Eichmann, entendeu que, na maioria dos casos, a gestão do genocídio do nazista foi exercida por burocratas comuns. Para espanto de Arendt, os responsáveis pelo racional mecanismo que promoveu milhares de mortes sob o nazismo não eram perversos inteligentes, mas pessoas banais empenhadas em exercer seu ofício de forma eficiente.

Assim, a questão ao analisar ascensão dos protestantes no governo é entender os motivos que levam homens religiosos, zelosos pais e profissionais técnicos a aderirem a um governo com características explicitamente genocidas. Nenhum deles pode dizer que desconhece o caráter eugenista do atual governo. A gestão da morte ficou absolutamente evidente nas ações de combate à pandemia de covid-19. As declarações de Bolsonaro falam por si. Por diversas vezes, admitiu a banalização da morte e o sacrifício dos mais velhos e dos mais vulneráveis durante a pandemia. Cito uma frase em que a postura genocida do presidente fica clara:

“Ninguém disse que não ia morrer, está morrendo gente (...) alguns acham que dava para diminuir o número de óbitos. Diminuir como? Devemos tomar cuidado com os mais velhos, mas, mais cedo ou mais tarde, esse idoso não está livre de ser contaminado pelo vírus. É a realidade”.

O que parece evidente é que as ações desses discretos religiosos remontam ao mal que as pessoas comuns podem praticar nos contextos autoritários, quando deixam de refletir criticamente. Retomando as reflexões de Arendt, a banalização do mal ocorre quando um governo se baseia em concepções que levam à tentativa de tirar a humanidade do “outro indesejável” e acabam por fomentar nas pessoas mais comuns a incapacidade de compaixão pelo próximo. Nesse sentido, mesmo sendo pessoas discretas e “técnicas”, os religiosos batistas e presbiterianos ao aderirem ao projeto bolsonarista, agem tal como os burocratas que serviram à máquina fascista. Demonstram que crentes comuns, aqueles que frequentam as igrejas, preocupados com a rotina religiosa de orar, jejuar, cuidar dos filhos e filhas, de zelar pela segurança da família podem ser partes do maquinário estatal eugênico de Bolsonaro.

Por seus perfis pragmáticos e discretos, tais religiosos foram escolhidos a dedo pelo bolsonarismo, com aval da Bancada Evangélica, justamente para operar tecnicamente a área “ideológica” da política autoritária e de morte da atual gestão do país. Além do perfil pragmático, competente, cada um de sua forma preenche as lacunas do bolsonarismo, como o aceite a tendências anticientíficas, a construção de um estado policial, a ênfase educacional nas camadas superiores e o destaque na educação tecnológica. Portanto, pode-se dizer que o grande escândalo não está na postura irascível ou histriônica desses religiosos, mas, no contrário, é absolutamente escandaloso que cristãos comuns que participam de comunidades absolutamente piedosas, e que, em nome da posição e do cargo, optam em abrir mão da reflexão crítica associando-se ao genocídio a que hoje assistimos.

Bibliografia:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MENDONÇA, Antônio Gouveia & VELASQUES, Procoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990.

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.

Leia mais
Banalidade do Mal. Revista IHU On-Line, Nº 438


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