domingo, 28 de maio de 2023

O laboratório do império

Ilustração de Fer Piñeirua.


FÁBIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS
https://jacobinlat.com/
TRADUÇÃO: FLORENCIA OROZ

Há mais de 150 anos, os Estados Unidos fizeram sua estreia como potência imperial na América Central. Hoje a região concentra todas as contradições de um império à deriva.

Ao longo do século XX, a América Central foi percebida como um "laboratório do império", na formulação do historiador Greg Grandin. A premissa dessa abordagem é que, entre a guerra contra o México, a descoberta de ouro na Califórnia e a presença de filibusters como William Walker na Nicarágua, a região sofreu de primeira mão o impacto do expansionismo estadunidense. Com a aceleração da industrialização após o fim da Guerra Civil (1861-1865), os Estados Unidos foram incorporados ao mundo imperial. A intervenção em Cuba, disfarçada de Guerra Hispano-Americana (1898), seguida da cisão no Panamá, que deu origem ao canal (1903-1904), pressagiava a continuidade das intervenções na região: o "big stick" estava aqui para ficar.

Desde então, formas de dominação política e subordinação econômica foram desenhadas e experimentadas na América Central que se globalizaram, orientando as relações dos Estados Unidos com o Terceiro Mundo. Nesse sentido, pode-se dizer que a região esteve na vanguarda do imperialismo.

No entanto, formas implacáveis ​​de dominação geraram formas radicais de rebelião: as revoluções tornaram-se "inevitáveis", como escreveu Walter LaFeber. E a contrarrevolução também. A radicalidade do desafio guerrilheiro foi acompanhada por um terrorismo de Estado sem paralelo: em El Mozote, Rabinal ou Comalapa Auschwitz se multiplicou. Assim, a América Central tornou-se não apenas um laboratório do império, mas também uma caricatura da América Latina, enquanto as características do subcontinente adquiriram ali traços extremos.

O terrorismo de Estado foi o capítulo centro-americano da contra-revolução mundial na Guerra Fria. Enquanto na América do Sul a guerrilha esfriou na década de 1970, com algumas exceções, na América Central a luta armada continuou. Como se a região lutasse desesperadamente para escapar de um destino que finalmente se imporia. Entre a derrota da reforma encarnada pela derrubada de Jacobo Arbenz na Guatemala em 1954 e o declínio da revolução selada com o revés sandinista nas urnas em 1990, todo um horizonte se apagou: o da possibilidade de fazer desses povos verdadeiras nações. Porque entre os dias de William Walker e Ronald Reagan houve uma mudança crucial na dinâmica do sistema do capital, que ainda hoje condiciona o presente da região.

Dominação imperialista

Mas no último quartel do século XX essa dinâmica mudou. Desde então, o sistema enfrenta uma crise estrutural, que se expressa na impossibilidade de retomar os ciclos de acumulação prolongada. A financeirização e o extrativismo são respostas diferentes à mesma crise: no primeiro caso, antecipa-se o valor futuro; na segunda, intensificam-se os traços predatórios do sistema.

Se a dominação imperial na América Central se estabeleceu e evoluiu no quadro da expansão do sistema capitalista, o que acontece quando o sistema abraçado pelo império não oferece mais nenhuma promessa de civilização? O que resta quando o desenvolvimentismo a que aspiravam personagens como Arbenz perdeu seu lastro histórico, enquanto a revolução desapareceu da agenda? O que significa falar de imperialismo em um mundo onde o capitalismo não se expande mais e onde o império está na defensiva?

Atração e repulsão

No século XX, os Estados Unidos e suas empresas sugaram a riqueza da região. A United Fruit Company foi emblemática dessa realidade. No século XXI, esta situação não mudou completamente, mas existem outros elementos que a tornam mais complexa. Agora acontece com frequência que é difícil determinar a nacionalidade de uma empresa mineradora ou agroindustrial, onde se confundem atores transnacionais e nacionais. Ao mesmo tempo, os acordos de livre comércio restringem ainda mais a soberania limitada dos Estados-nação.

Em 1952, o governo Arbenz promoveu uma reforma agrária que ameaçava os negócios da United Fruit. Teve que conspirar para derrubá-lo. Em 2017, El Salvador se tornou o primeiro país do mundo a proibir a mineração a céu aberto, resultado de uma luta comunitária que ganhou relevância nacional. A empresa prejudicada não ameaçou o governo, mas processou o Estado. É verdade que a ação foi movida em Washington e que a empresa em questão era americana. Mas era toda uma arquitetura jurídica pensada para defender o capital transnacional antes de qualquer interesse nacional. Pacific Rim Cayman exigiu uma indenização de US$ 250 milhões do Estado salvadorenho pela perda de benefícios potenciais.

Em resumo, o Estado salvadorenho teve que defender perante um tribunal do Banco Mundial seu direito de negar a licença de exploração de uma mina a uma empresa que se mostrou incapaz de cumprir os requisitos legais para tanto, gastando 12 milhões de dólares no processo. Em uma decisão incomum, o estado salvadorenho ganhou o caso. Mas há outros processos semelhantes em andamento, movidos por empresas de energia (como a americana TECO, que está processando a Guatemala) ou bancos (como o britânico HSBC, que está processando El Salvador). O alto custo desses processos internacionais penaliza os Estados centro-americanos, sem falar nas exorbitantes indenizações que são exigidas.

Os tratados internacionais não substituem os canhões, mas seu poder de intimidação é comparável. Na prática, é a soberania violada por outros meios. Os FTAs ​​também impulsionaram a indústria maquiladora que, como sabemos, baseia sua lucratividade na exploração de mão de obra barata e com pouca regulamentação. Por sua vez, a criação de zonas econômicas especiais radicalizou a lógica dos bananais do passado, formalizando a condição de enclaves econômicos que pouco contribuem para a renda do Estado e não geram cadeias de valor no espaço nacional. No campo, como aconteceu no México com o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), a agricultura familiar e comunitária foi seriamente afetada. A região importa cada vez mais alimentos (incluindo o milho para tortillas).

O resultado é que o principal produto de exportação da Guatemala, Honduras e El Salvador (e, cada vez mais, também da Nicarágua) são as pessoas. A migração, cada vez mais necessária, tornou-se outra indústria que explora a miséria. Por um lado, oferece uma válvula de escape para as tensões sociais nacionais. Por outro lado, os imigrantes fornecem as remessas necessárias para equilibrar economias cada vez mais deficitárias.

Atualmente, o volume de remessas da Guatemala é quase igual ao das exportações do país, e elas representam quase um quinto do PIB. Honduras e El Salvador estão em uma situação semelhante. Se no século XX a elite centro-americana serviu ao império para se manter no poder, no século XXI os centro-americanos comuns trabalham para que o império fique, apenas seco.

É chocante constatar que nem mesmo a violência extraordinária produzida pelo terrorismo de Estado na Guerra Fria e pela contrarrevolução na Nicarágua expulsou pessoas desta forma e nesta escala. É difícil imaginar um testemunho mais eloquente do poder corrosivo do neoliberalismo, que neste caso foi acompanhado de acordos de paz. Do ponto de vista do povo, a paz era a continuação da guerra por outros meios. O neoliberalismo e a globalização consubstanciados nos FTAs ​​erodiram o tecido social no campo e na cidade. Mas também configuraram subjetividades individualistas e competitivas. Ao mesmo tempo, o desencanto com as promessas de paz levou ao descrédito da política como caminho para a mudança social.


O fenômeno migratório revela uma juventude que se mobiliza para mudar de vida em larga escala. Na Guatemala, cerca de 300 jovens saem diariamente do país rumo ao norte. Se na Guerra Fria os jovens engajavam-se massivamente em um compromisso político —que podia assumir a forma de um sindicato, partido ou guerrilha— hoje o inconformismo é canalizado de acordo com a gramática individual e competitiva da migração. Jovens que no passado lutaram para mudar seu país agora estão lutando para mudar de país.

Como mobilizar uma luta anti-imperialista quando o império é objeto de desejo? Quando a ambição que move os jovens é integrar-se no império, mesmo em posição subordinada, em vez de o ultrapassar? O objetivo é integrar em vez de libertar? E, no caso dos que ficam, como criticar o país de onde vêm as remessas para uma família que de outra forma não teria meios de subsistência? Certamente, esse desejo contém muita ambiguidade, pois vem acompanhado de múltiplas impotências, privações e humilhações inerentes ao racismo. Além da saudade. Mas, via de regra, o que prevalece é o desejo de integração, que funciona inclusive como estratégia de defesa contra a humilhação de quem vive o desamparo.

Com esse desejo vem também a incorporação dos valores do império, mundialmente conhecidos por meio da indústria cultural. Daí o interesse de Nayib Bukele em legalizar o voto da diáspora salvadorenha, que não sente na pele a violência doméstica, mas sente orgulho de quem coloca seu país no mapa, por mais questionável que seja a ditadura legal ou o bitcoin da modernidade.

Aceleração e contenção

Atração e repulsão combinam-se de maneira interessante na relação dos Estados Unidos com a América Central. Aqui não há vítimas, apenas interesses: o trabalho dos migrantes, as importações das maquiladoras, a depredação dos recursos naturais e o consumo de drogas também são negócios do império. A ambivalência dos EUA em relação à América Central é estrutural. E, como tal, também molda sua política.

Os Estados Unidos apoiaram o golpe que derrubou Manuel Zelaya em 2009 em Honduras para afastar o espectro do bolivarianismo na região, encarnado em um presidente liberal que flertou com a ALBA e com mudanças constitucionais que abririam caminho para a refundação do país. Enquanto isso, o golpe criou as condições para que a política das drogas tomasse conta do estado. Sob a liderança de Juan Orlando Hernández, Honduras tornou-se um território para o narcotráfico e um grande produtor de migrantes.

Por isso, treze anos depois, os Estados Unidos saudaram a vitória eleitoral da esposa de Zelaya, Xiomara Castro. A expectativa é que esse governo implemente políticas sociais, de contenção do narcotráfico e da migração. O político do tráfico, por sua vez, que liderou o país por dois mandatos após o golpe, está prestes a ser preso nos Estados Unidos, como aconteceu com seu irmão, condenado à prisão perpétua. Da mesma forma, funcionários próximos a JOH, como seu braço direito Ebal Díaz, são refugiados na Nicarágua de Daniel Ortega, que os protege da extradição. Nesse anti-imperialismo invertido, a tirania de "esquerda" protege os narcocriminosos de "direita" da justiça americana.

Ao mesmo tempo, o governo de Xiomara Castro busca apoio internacional —ou seja, dos Estados Unidos— para criar uma comissão de investigação semelhante à extinta Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (CICIG). Assim como na Guatemala, o objetivo é criar um órgão com o respaldo da ONU, capaz de atuar isoladamente diante da corrupção que inclui o judiciário do país. O objetivo é desmantelar o estado paralelo formado pelos vínculos entre negócios, crime e política. O progressismo hondurenho busca apoio internacional para investigar os criminosos que o anti-imperialismo de Ortega protege.

Predação e conservação

Uma ambivalência comparável envolve o trabalho das Organizações Não Governamentais (ONGs) e da cooperação internacional. Em países onde o financiamento social do Estado é mínimo e a filantropia é mínima, a resistência social depende em grande parte da cooperação internacional. Mas com trágicas dissonâncias: enquanto na Guatemala os Estados Unidos colaboram com a elaboração da memória do terrorismo de Estado de que foram responsáveis, em El Salvador, país onde reprimiu as tentativas de democratização vindas de baixo, agora apóia a resistência ao autoritarismo legado por esse passado truncado.

Apesar das contradições, as consultas e iniciativas dos movimentos populares mais combativos da região costumam contar com o apoio da cooperação internacional. O mesmo vale para o melhor jornalismo investigativo independente, que cumpre uma função cidadã crucial. Essa situação causa atrito com os governos. Um caso extremo é o regime de Ortega, que em 2022 anulou a personalidade jurídica de mais de 900 organizações da sociedade civil. As entidades afetadas vão desde associações médicas até a fundação dos míticos irmãos Mejía Godoy, cantores da trilha sonora da revolução de 1979.

Nesse mesmo ano, o mafioso presidente da Guatemala ameaçou expulsar a USAID, acusada de "promover o indigenismo" no país e de conspirar para estabelecer um Estado plurinacional "como no Chile". Curiosamente, houve outro Estado multinacional que expulsou a USAID: a Bolívia, em 2013. Enquanto a USAID era acusada de indigenismo na Guatemala, a combativa Community Press do país publicou um tweet lembrando o ex-presidente Jacobo Arbenz, derrubado com o apoio da CIA em 1954 Tweet que por sua vez foi replicado pelo vizinho Bukele em El Salvador como parte de uma encenação de autonomia que, como toda a sua política, é baseada na desinformação. Mais ao sul, Ortega insiste em seu discurso anti-imperialista, embora dois terços do comércio exterior da Nicarágua seja com os Estados Unidos, enquanto o FMI nunca decepcionou o regime.

Reforma e barbárie

O drama da América Central é que a exclusão da concorrência capitalista não a liberta do sistema. Pelo contrário, numa região que pouco tem a oferecer como valor, mas onde a reprodução da vida é mediada pelo dinheiro, a compulsão por valor é desencadeada com toda a violência. Diante do extrativismo que expulsa populações de seus territórios, organizações em Honduras defendem o direito à permanência. Seus compatriotas exigem a possibilidade de emigrar, o direito de sair. Mas os centro-americanos parecem não ter nenhum dos dois. Não podendo ficar e não podendo partir, qual é o seu lugar no século XXI?

Num mundo onde não cabem outros mundos, a política imperial preocupa-se cada vez mais em salvar o seu. Incapaz de recriar a missão civilizadora do tempo de Kipling – quando o fardo do homem branco era forjar um mundo à sua imagem e semelhança (mas também a seu serviço) – limita-se a defender interesses internos. Diante da corrosão da sociabilidade burguesa em escala mundial, o império só tem que construir muros. E pouco a combater a não ser drogas e "terrorismo", inimigos infinitos sem começo, meio ou fim.

Nesta realidade, a política dos Estados Unidos em relação à América Central não está mais preocupada com mercados e revolução, mas com drogas e imigração. Ambos implicam o controle dos corpos e a militarização dos espaços: se a América Central continua sendo um laboratório, é apenas para essa necropolítica em movimento. Sua mão direita é o punitivismo que constrói muros e enche cadeias. Sua mão esquerda quer tirar os jovens da migração e das drogas para que fiquem mais seguros. Numa região inviável do ponto de vista da lógica do valor, as relações com os Estados Unidos não podem deixar de ser ambíguas.

Na melhor das hipóteses, a política dos EUA visa salvar o mundo dos brancos em escala global. Isso significa preservar a casca liberal em um mundo cada vez menos liberal. Daí os paradoxos na América Central, onde é possível encontrar a cooperação internacional do lado dos "mocinhos" do bang-bang regional. A luta contra a corrupção, a política antidrogas, a liberdade de imprensa, o pensamento crítico, o ativismo ambiental, o indigenismo e até os direitos humanos são valores que se enquadram na agenda liberal de salvar o próprio mundo. Salvar o mundo dos brancos em nível global, em última análise, significa defender as instituições e os valores liberais que a própria dinâmica do neoliberalismo corroem. Isso explica a permanente ambivalência dos Estados Unidos.

Essa dinâmica corrosiva se move entre a aceleração da crise (como aconteceu no governo Trump) e as tentativas de contê-la; entre a subversão —para pior— dos valores liberais e sua defesa anacrônica. Num mundo onde a subversão se encarna na direita, os liberais muitas vezes convergem com a esquerda em defesa do que resta da sociabilidade de outrora.

E é no braço internacional dessa política de contenção que se apoiam as diversas causas democráticas centro-americanas. Os Estados Unidos, que anularam a reforma agrária de Arbenz, apoiaram há alguns anos um amplo projeto de reforma agrária na Guatemala, que o Congresso acabou vetando. A própria eleição de Xiomara Castro pode ser vista à luz dessa dinâmica: a aceleração da crise sob Juan Orlando Hernández exigia sua contenção. Assim, o mesmo Departamento de Estado que apoiou o golpe em 2009 acolheu Castro treze anos depois. Num contexto em que Giammattei, Bukele e Ortega —ainda que por motivos diferentes— estremecem as relações com os Estados Unidos, o governo de esquerda hondurenho torna-se um possível aliado na região.

A crise sistêmica do capital corrói o tecido social, o meio ambiente e os valores liberais em diferentes taxas e intensidades dependendo da posição de cada país no sistema global. E a América Central, região marginalizada do sistema, revela hoje os efeitos dessa corrosão em nível avançado. Excluída de um sistema totalizante que não admite estranhos, a anomia centro-americana não consegue se isolar e entra no centro imperial por seus poros, condicionando sua política em termos muito diferentes dos que conseguiu no passado. Assim, a região que viveu um dos capítulos mais sangrentos da contrarrevolução mundial durante a Guerra Fria vive agora um dos capítulos menos promissores do desafio burguês: o de salvar seu mundo... ou apressar seu fim.


FÁBIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo.

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