terça-feira, 14 de novembro de 2023

ISRAEL E PALESTINA - O papel da diáspora na reconciliação

Judeus nos Estados Unidos pedem por um cessar-fogo em Gaza (Divulgação/Jewish Voice for Peace)

 O que pode ser observado nesse cenário aterrador, é que quanto menor é a consistência do conhecimento sobre o conflito árabe-israelense, mais superficial serão as análises em âmbito público. Algumas manifestações pelo mundo, inclusive, chegam a incitar violência, preconceito e ataques antissemitas e islamofóbicos

Luciana Garcia de Oliveira

“Neste momento, israelenses e palestinos estão a sofrer profundamente. Para o israelense médio e também para o palestino médio, a mente está completamente cheia de dor, até a borda. Não resta espaço para simpatizar ou mesmo para reconhecer a dor de outra pessoa. Se você está em Israel e tenta falar sobre a dor dos civis palestinos em Gaza, as pessoas te tratam quase como um traidor. E é a mesma coisa se você estiver em Gaza e tentar dizer algo sobre o sofrimento dos israelenses. Psicologicamente, as pessoas sentem tanta dor que é quase inevitável que você só consiga sentir a sua própria dor naquele momento”.

O desabafo do israelense Yuval Noah Harari, em uma entrevista para a TV brasileira, expressa uma condição traumática e de luto, intrínseco a todos nós, seres humanos. Por isso, neste momento, quem deveria ter o compromisso de estabelecer uma aproximação em vistas de uma reconciliação entre os dois povos, é a diáspora.

Mesmo diante das imagens que não param de chegar, a diáspora judaica, árabe e palestina tem melhores condições para refletir, se aproximar e a dialogar sobre todos os assuntos que envolvem o longo conflito entre israelenses, árabes e palestinos. Todos aqueles que se posicionam contrários à ocupação da Palestina, aos assentamentos construídos em territórios ocupados, aos deslocamentos humanos, aos fundamentalismos, aos massacres e ao bloqueio da Faixa de Gaza, deveriam unir forças contra uma realidade permeada de violência, extremismo e desumanização diária. Afinal, o que nos impede de chorar as mortes de jovens e de crianças israelenses brutalmente assassinadas no dia 7 de outubro e pelas milhares de crianças assassinadas, massacradas, desabrigadas e assustadas na Faixa de Gaza? Esse deveria ser o imperativo de todos nós. 

Durante e após os ataques do dia 7 de outubro, testemunhamos pessoas comemorando nas redes sociais. Para eles, a “justiça palestina foi, enfim, restabelecida”. Houve aqueles que debocharam das imagens de reféns israelenses, outros comemoravam uma suposta “retomada de territórios” (!) e ainda os que disseram que o massacre do dia 7 de outubro equivaleria a rotina dos palestinos imposta por Israel por décadas. Por isso, não haveria razão para um luto e o repúdio.

Os mesmos que comemoraram nas redes sociais, estão agora chorando, impactados por uma retaliação altamente violenta, desumana, na forma de punições coletivas, nos massacres que já custaram a vida de milhares de palestinos. Será que a justiça foi feita? E, a que preço?

MAIS VIOLÊNCIA E DESCONHECIMENTO

Um professor universitário que participava de um seminário em uma renomada universidade do Rio de Janeiro, ao criticar a postura e as medidas do atual governo israelense, nos últimos dias, foi chamado de Kapo [1], por estudantes judeus. Uma cerimônia de premiação de um romance, escrito pela escritora palestina, Adania Shibli, que seria realizada durante a Feira do Livro de Frankfurt, foi cancelada, devido aos últimos acontecimentos em Israel e na Faixa de Gaza. Muitos intelectuais e acadêmicos que, atualmente, defendem os direitos do povo palestino a sua autodeterminação podem ser acusados de defender o Hamas (!). Por outra parte, entre os que lamentaram e repudiaram os ataques do dia 7 de outubro estão sendo expostos e cancelados em muitas redes sociais de uma maneira grosseira, desumana e cruel.

Desde quando nós, seres humanos, perdemos a empatia pela vida de outros seres humanos, quando esses estão, por um infortúnio, no lugar que julgamos como o “campo inimigo”? Muitas crianças foram assassinadas no dia 7 de outubro e mais crianças estão sendo assassinadas neste momento. Independentemente de serem israelenses e palestinas, elas são, antes de tudo, crianças.

O que pode ser observado nesse cenário aterrador, permeado de emoções, é que quanto menor é a consistência do conhecimento sobre o conflito árabe-israelense, mais superficial serão as análises em âmbito público. Algumas manifestações pelo mundo, inclusive, chegam a incitar violência, preconceito e ataques antissemitas e islamofóbicos.

No dia 18 de outubro, uma sinagoga e um centro comunitário judaico foram atacados com cocktails molotov em Berlim. Na mesma data, uma família de refugiados do Afeganistão foi atacada no bairro do Bom Retiro, em São Paulo.

Ao julgarmos, especificamente, as manifestações promovidas atualmente pelas populações árabes do Oriente Médio e da diáspora no Ocidente, é possível observar uma diferença crucial entre ambos pontos de vista. Os últimos são confrontados com a experiência judaica, consonante ao antissemitismo e ao genocídio. Certa vez, Edward Said, em um artigo publicado no El Hayat, em novembro de 1997, afirmou sobre a importância em se compreender a experiência coletiva judaica, mais precisamente o link existente entre a catástrofe judaica durante a Segunda Guerra Mundial e a catástrofe palestina de 1948, conhecida como Nakba. O entendimento e a compreensão de ambos os traumas nacionais, de modo nenhum, deve servir para minimizar a experiência e o sofrimento do outro. Tratam-se, sobretudo, de injustiças diversas.

O fracasso dos Acordos de Paz de Oslo, em 1993, decretou, entre outros, um maior distanciamento entre palestinos, árabes e judeus-israelenses, além do aumento vertiginoso no controle, da violência e da desumanização voltada, sobretudo, contra as populações palestinas sitiada nos territórios da Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. E, do mesmo modo, nos campos de refugiados do Oriente Médio.

DIÁSPORA

Em uma realidade de sectarismos profundos, faz-se necessário um acordo de paz e negociações atrelado à um cuidadoso processo de letramento sobre ambas as narrativas do conflito, acerca da história das ações israelenses nos territórios palestinos em 1948, após as atrocidades do Holocausto nazista na Europa. O reconhecimento deve ser encorajado entre a comunidade árabe e judaica, fora de Israel e da Palestina, nos espaços da diáspora, pois será impossível que as partes envolvidas neste conflito tenham condições emocionais para um confronto dialético.

Uma coexistência pacífica deverá ser precedida pela noção básica de que palestinos e judeus-israelenses possuem uma história em comum, com diferentes medidas e assimétrica, que os unem. Afinal, “quem iria querer equiparar moralmente o extermínio em massa à uma expropriação em massa? Seria tolice até tentar. Mas ambos estão conectados.” [2]

Algumas ações integradas na diáspora existem e são muito bem sucedidas. Esse é o caso da Academia Barenboim-Said, onde jovens músicos, palestinos, libaneses, sírios, iranianos e israelenses estudam juntos em Berlim. A academia, fundada em 2015, é um legado de uma missão conjunta do maestro e pianista, Daniel Barenboim, com o professor Edward Said, no desenvolvimento da orquestra West-Eastern Divan. Além das aulas e dos ensaios de música, a academia oferece um currículo amplo de ciências humanas inspirados nas crenças de Said de que o humanismo é a única e última resistência contra as injustiças e a desumanização.

O processo de colonização da Palestina e do Oriente Médio, de um modo geral, envolveu uma estrutura de desumanização, traduzidas na ocupação territorial, na presença militar ostensiva, nas práticas de tortura, massacres, repressão e perseguição política e religiosa. Praticamente todos os árabes, no Oriente Médio e no Norte da África, de algum modo, já experimentaram algum tipo de violência colonial. Contudo, a culpabilização do Ocidente e de Israel por todos, absolutamente todos, os prejuízos do presente não podem e não devem ser suficientes.

De modo algum há como negar a responsabilidade israelense pela tragédia palestina, contudo, os povos árabes, de maneira coletiva, devem assumir suas responsabilidades pelos prejuízos sofridos pela população palestina. No Líbano, milhares de refugiados palestinos não possuem cidadania, permissão de residência e são impedidos de ocuparem determinadas cargos profissionais até os dias de hoje. Todo o processo de desumanização do colonialismo é sumariamente reproduzido em muitas sociedades árabes, além do Líbano, desde o fim do colonialismo.

Enquanto prevalecer o racismo e a xenofobia no mundo árabe, não haverá possibilidade de um processo de paz permanente entre árabes, palestinos e israelenses. Tão importante quanto denunciar a violência colonial é resolver os problemas e os impasses internos para, após, ter condições suficientes para reivindicar justiça e a reparação dos outros.

Para uma paz justa e duradoura não basta convencer os representantes e os chefes de Estados, das nações envolvidas no conflito entre Israel e o mundo árabe, a assinarem um documento referente à um tratado de paz. A paz e a reconciliação entre os povos devem vir acompanhadas, à princípio, por soluções concretas frente a gradual desumanização dos palestinos nos territórios ocupados e nos campos de refugiados, ao longo da história. Apesar de, em certa medida, frágil, os Acordos de Paz de Oslo, trouxeram à baila algo inédito na história de Israel: o reconhecimento de milhares de palestinos, enquanto povo, em sua representatividade.

Antes de 1993, predominava-se um impasse insolúvel entre a narrativa sionista e israelense oficial e a palestina. Do lado israelense, é difundida a ideia de que Israel conquistou sua independência. Por outra parte, os palestinos alegam que a sua sociedade foi destruída em 1948.

Por muito tempo, o estabelecimento de um Estado único binacional foi desejado por muitos estudiosos como Edward Said, Hannah Arendt, Martin Buber e Judah Magnes. A proximidade em um território comum poderia, de fato, dissipar o confronto terrível das narrativas nacionais, e, por outra parte, promover um mútuo reconhecimento. Em um Estado único binacional, estaria, formalmente, implícito o entendimento de que os árabes-palestinos tem um direito natural ao território e os judeus um direito histórico, ambos com igual validade. Isso, de acordo com Arendt (1948), significaria igualdade política entre os árabes-palestinos e os judeus. Nesse aspecto, o estabelecimento de uma federação em Israel e na Palestina suplantaria uma necessidade prática, de união econômica, e de segurança para todos.

Com pesar, o conflito permanente em Israel e nos territórios palestinos ocupados destruiu praticamente todos os setores de uma economia mista entre palestinos e israelenses e, consequentemente, dissipou um futuro desenvolvimento de interesses sociais, culturais e econômicos comuns.

A assinatura dos Acordos de Paz de Oslo, mais tarde, obrigou, em certa medida, milhares de palestinos a cumprirem com o compromisso de esquecer e a renunciar a sua história e experiências vividas. Como se fosse possível simplesmente virar uma página de um livro para seguir o curso de uma vida normal. A ironia, no entanto, é que as pressões por um suposto “esquecimento” advêm de representantes de um povo que ensina ao mundo, diariamente, a importância de não nos esquecermos, nunca, jamais!

Embora houvesse grandes expectativas pelo Acordo de Paz de Oslo, parte expressiva da audiência palestina desejava, no fundo, muito mais do que um documento e uma assinatura, mas direitos iguais, dignidade e cidadania.

A tragédia e a brutalidade dos acontecimentos no tempo presente tornaram praticamente impossível a convivência em um território comum. A saída, inevitavelmente, passará pela solução de dois Estados para dois povos. Na Palestina e em Israel a solução será apartada, porém, na diáspora, a solução deve passar pela aproximação, pela reunião, pelos debates, pelas conversas e pela escuta. A diáspora árabe, palestina e judaica tem o dever moral de se mobilizar e agir diferente, de se aproximar a fim de derrubar as barreiras dos estereótipos que rodeiam a imagem do judeu, do israelense, do árabe, do palestino e do muçulmano.

Para o bem da Palestina, de Israel e da humanidade, a diáspora deve servir de exemplo para aqueles que, agora, sofrem, possam compreender, futuramente, que a paz e a reconciliação são possíveis. Além disso, é urgente e necessário impedir que o ódio avance para além das fronteiras de Israel e da Palestina. Vamos juntos?


Luciana Garcia de Oliveira é mestre no Programa de Estudos Judaicos e Árabes do Departamento de Letras Orientais da USP. Uma das responsáveis pela tradução de Escritos Judaicos, de Hannah Arendt e coautora de Diaspora and Identity – The case of Palestine.

[1] Kapo é uma expressão que advém do italiano “capo” (cabeça ou chefe). Refere-se aos judeus convidados a chefiar outros judeus no auxílio das atividades nos guetos e nos campos de concentração nazista.

[2] SAID, 1997, p. 208

Nenhum comentário:

Postar um comentário