O fotógrafo Renan Cepeda registrou um momento embaraçoso para Jair e Rogéria Bolsonaro naquele início de janeiro de 1989. O casal e os três filhos estavam prestes a ser despejados do apartamento de três quartos onde viviam, na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), na Vila Militar, em Deodoro, no Rio. Bolsonaro, que acabara de ser eleito vereador, tinha até 30 de dezembro de 1988 para deixar o apartamento. A data limite chegara e a família não desocupara o imóvel.
O coronel Adilson Garcia do Amaral, fiscal de administração da Esao,
não queria saber de desculpas. Convocou doze soldados e um tenente e exigiu a
desocupação. O clima pesou, Bolsonaro peitou e avisou a imprensa, que registrou
tudo: “Ele falou que, se eu não saísse na hora marcada, entraria à força e
colocaria tudo para fora”, contou.1 Foi essa a chamada no JB: “Exército despeja Bolsonaro”. A matéria seguia com uma foto.
Rogéria, magra, alta e loira, está com o ombro esquerdo encostado numa parede
perto de uma porta. Bolsonaro, de lado, está à sua frente e parece sorrir enquanto
fala com alguém fora do quadro, gesticulando como quem explica alguma coisa.
Rogéria não parece tão tranquila. Com três filhos para criar, os motivos
para sorrir eram poucos. Não era de hoje que o comportamento do marido se queixando
dos salários nas Forças Armadas colocava sua família como alvo de outra
família, a militar. E agora eles precisavam sair da vila, e não tinham imóvel
próprio.
Bolsonaro sabia que estava cruzando uma fronteira quando escreveu o
artigo “O salário está baixo”, escrito em agosto de 1986. No texto, publicado
na Veja de 3 de setembro, ele mesmo admitia que a reivindicação poderia deixar
sua carreira “seriamente ameaçada”. Decerto não a ponto de ser espionado pelos
agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI), que continuavam na ativa vigiando
diversas lideranças de esquerda mesmo após o fim da ditadura.
Bolsonaro deixava a Vila Militar, mas continuaria a ser monitorado pelos
agentes como já era há dois anos.2 O prontuário, classificado como
“secreto”, recebeu o número 097160-08 e documentou diversos momentos da vida do
capitão, de setembro de 1986 a julho de 1989. Tinha um total de 37 páginas. A
primeira anotação, por óbvio, foi a respeito do artigo sobre os salários e as
repercussões na tropa.
Depois da reportagem de Veja
sobre o plano de implantar bombas na Vila Militar, Bolsonaro começou a ser
investigado e o manteve campana sobre ele e sua família. Ele passou a ser considerado
inimigo dos comandantes por desrespeitar a hierarquia e a disciplina. O bom
militar não critica o Exército. Não dá entrevista. A ordem sempre foi essa.
Em 1987, desafetos de Bolsonaro passaram a distribuir entre os oficiais
e até para o comandante da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme)
uma carta apócrifa que, levantando suspeitas acerca de Rogéria, procurava
atingir o marido. O texto aconselhava Bolsonaro a se informar sobre o que a
mulher fazia nos horários livres, com quem andava, entre outras insinuações machistas.
E ironizava, dizendo que, no lugar de “fazer croqui de bombas”, Bolsonaro
deveria escrever sobre suas idas ao Paraguai para “trazer muamba”. Enfim, foi chamado
de “mercenário, corno e contrabandista”. O próprio registrou que não havia
prova de veracidade nisso tudo. No entanto, com o ataque disparado, o dano estava
feito.
Condenado pelo Conselho de Justificação, espécie de primeira instância
dos militares, Bolsonaro terminou absolvido no Superior Tribunal Militar em
1988. Tudo isso apesar de as análises terem assegurado que era dele a letra nos
croquis de um plano para atacar as unidades militares.
O SNI, porém, manteve-o no radar com relatórios sobre seus encontros
com o ex-presidente João Figueiredo e um registro detalhado de sua campanha
para vereador. Os informes mencionavam até quem frequentava sua casa. Mesmo
como vereador, a vigilância não deu trégua.
Tempos depois da Vila Militar, a família foi viver em um apartamento na
Vila Isabel, na Zona Norte do Rio. Quando Bolsonaro se tornou deputado, a
mulher e os filhos mudaram com ele para Brasília. Mas nem Rogéria nem os filhos
gostavam de ficar longe do Rio de Janeiro. Assim, em 1992, Rogéria disputou uma
vaga na Câmara Municipal do Rio e se tornou a primeira entre os Bolsonaro a
entrar na política depois de Jair.
Rogéria chegou ao Riocentro acompanhada do marido. Era sábado, 10 de
outubro de 1992. A eleição para vereador terminara sete dias antes e o TRE
ainda não havia finalizado a contagem manual dos votos. Os candidatos foram à
loucura, temiam fraudes. Aquele atraso na contagem havia provocado a ira de
Jair, que bradava contra o Judiciário: “É o poder mais corrupto do país”, declarou,
em meio a um protesto dos candidatos.3
A candidata era sua mulher, mas quem falava era ele. No jornal O Globo, o silêncio de Rogéria também foi
notado: ela passou a “campanha muda,
mas não queria sair calada”. Ela própria reconheceu
seu papel coadjuvante em uma rara declaração: “O nome do Jair foi decisivo para a minha eleição. Tanto que meus adesivos traziam apenas ‘R.
Bolsonaro’”, ela contou, ainda na expectativa
do resultado.4
Mas Rogéria conseguiu e, com quase 8 mil votos, conquistou uma cadeira
no Palácio Pedro Ernesto. Ali, em seu gabinete, ela deu sequência a uma prática
que vinha ocorrendo no gabinete do marido desde 1991: a nomeação de parentes e
de pessoas de confiança. O mandato era de Rogéria, mas ela precisava prestar
contas a Jair. Nessa relação de dependência e controle, em 1º de fevereiro de 1993
ela nomeou como chefe de gabinete Maristela de Oliveira Ferraz. Maristela é mãe
de Bárbara de Oliveira Ferraz, a única filha de Waldir Ferraz, o “Jacaré”, amigo
de Bolsonaro desde os tempos do Exército.
JACARÉ ATUAVA C OMO OFICIAL de máquinas da Marinha Mercante nos anos
1980. Vivia em Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, quando viu na televisão
um irado general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército do governo José
Sarney, citar a história do capitão que havia escrito um artigo para denunciar
os baixos salários dos militares.5 O discurso mexeu com ele, tanto que pediu a conhecidos
que tinham contato com o valente capitão para ser apresentado a ele. Os dois se
conheceram, passaram a andar juntos e nunca mais se separaram.
Quando Rogéria Bolsonaro nomeou Maristela,6 Waldir já tinha cargo no
gabinete de Jair desde 1989. Primeiro no Rio, na Câmara Municipal, depois em
Brasília, na Câmara dos Deputados. A relação de proximidade com a família garantiu
mais cargos — dois outros parentes de Ferraz foram nomeados para o gabinete de
Rogéria. Mas os Ferraz não eram os únicos nessa situação: tais nomeações constituíam
um padrão.
Ao longo de oito anos no Palácio Pedro Ernesto, Rogéria chegou a ter um
total de 66 funcionários diferentes. Desses, oito integravam quatro famílias.
Ou seja, não era incomum que marido e mulher trabalhassem juntos, ou mesmo dois
irmãos, ou pai e filho, e assim por diante. Muitos por indicação de Jair
Bolsonaro. Até que Rogéria não quis mais a intromissão do marido em suas
decisões, passando até a assumir posições contrárias às dele. Como vereadora,
ela apresentou noventa projetos e conseguiu aprovar oito. Jair apresentou 171
projetos e emplacou apenas dois em quase trinta anos no Congresso Nacional.
Uma de suas principais conquistas foi a proibição do cerol em linhas de
pipa, muito comuns no Rio. Rogéria também apresentou projetos para incluir
certas datas comemorativas no calendário da capital fluminense, como o “Dia do
Surdo” (26 de setembro) e o “Dia de Zumbi dos Palmares” (20 de novembro),
posteriormente transformado pelo governo estadual no “Dia da Consciência
Negra”, mas sem relação direta com o projeto de Rogéria.
De fato, Rogéria criara asas: “Meu primeiro relacionamento despencou
depois que elegi a sra. Rogéria Bolsonaro vereadora, em 1992. Ela era uma dona
de casa. Por minha causa, teve 7 mil votos na eleição. Acertamos um compromisso.
Nas questões polêmicas, ela deveria ligar para o meu celular para decidir o
voto dela. Mas começou a frequentar o plenário e passou a ser influenciada
pelos outros vereadores”, afirmou Bolsonaro.
A crise entre os dois se ampliou e a separação se tornou realidade.
Além do mais, Jair engatara, e Rogéria sabia, uma relação com uma assessora de
cabelos castanho-claros, bonita e mais jovem do que ela. Após a separação, a ex
optou por manter o nome Rogéria Bolsonaro e a carreira política. Ficava o
sobrenome, ia embora o apoio. Talvez ela não esperasse boicote tão agressivo: “Nunca
bati na ex-mulher. Mas já tive vontade de fuzilá-la várias vezes”,7 declarou
Bolsonaro, sem rodeios, em fevereiro de 2000, já separado da mãe de seus três
filhos mais velhos.
O tempo fechou na época em que ela tentou a reeleição. Certo dia de
setembro do mesmo ano, três homens pararam Gilberto Gonçalves numa esquina do
Méier, na Zona Norte do Rio. Assessor de Rogéria Bolsonaro, ele distribuía sob
o sol do meio-dia panfletos com propaganda da candidata. Os homens chegaram e
começaram a agredi-lo, sem nada dizer. Torceram seus braços, algemaram-no e depois
o encaminharam à 26a Delegacia de Polícia, onde o acusaram de portar ilegalmente
um revólver. Ao tomar conhecimento do episódio, Rogéria não teve dúvidas: o
mentor da agressão teria sido Jair, que pouco antes passara pelo local.
“Isso prova o desequilíbrio mental e psicológico do deputado Bolsonaro”,
acusou Rogéria, que agora estava no.PMDB.8
Com o fim do apoio, o sobrenome Bolsonaro não garantiu a reeleição e
Rogéria acabou derrotada na campanha de 2000. Dali em diante ela voltaria a ser
a “Roger” da Vila Isabel, ocupando os dias entre aulas de pilates e caminhadas
ao redor do Maracanã. Seu trabalho se resumiria a cargos comissionados de
segundo ou terceiro escalão junto à prefeitura do Rio. Deixaria os holofotes e manteria
discrição a respeito do tempo de seu casamento com Jair.
Além do divórcio, Rogéria e Bolsonaro também precisaram acertar as
contas. Cada um foi morar num canto da Zona Norte. Ele adquiriu um apartamento
no Maracanã, onde foi viver com a nova família. Já Rogéria comprou o
apartamento que alugava e onde morava, havia alguns anos, com os três filhos.
No documento, registrado em 22 de janeiro de 1996, no 21º Ofício de Notas do
Rio, consta que o imóvel custou 95 mil reais, valor que hoje chegaria a quase
500 mil reais.9 O oficial do cartório ainda anotou que o valor foi quitado em
“moeda corrente”, ou seja, dinheiro vivo, “integralmente recebido” no “ato de
produção do documento de venda”.
Separados, já em outra condição financeira, os dois não corriam mais o
risco do despejo, ambos tinham casa própria. Jair seguiria como líder do clã,
desejando mais poder e dinheiro. Para tanto, incluiria os filhos e a nova companheira
em seu projeto rumo ao topo, e deixaria atrás de si uma trilha de dinheiro
vivo.
A bela assessora da Câmara assumiria outros papéis em sua vida. Mais do
que companheira, Ana Cristina Siqueira Valle iria se tornar sócia do Negócio do
Jair.
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