quarta-feira, 10 de julho de 2024

Plano Real — a moeda contra o povo

Imagem: Daniel Dan

Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JR.*
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Mesmo apenas no âmbito doméstico, a moeda também pode ser parte de um intrincado mecanismo de geração e reprodução de desigualdades

No dia 1° de Julho de 2024, celebrou-se o aniversário de trinta anos do Plano Real. Para as massas de brasileiros flagelados constantemente por taxas galopantes de inflação ao longo de mais de uma década (chegando a configurar um quadro de hiperinflação), a nova moeda forneceu um respiro muito bem-vindo.

Hoje, no entanto, três décadas após seu lançamento, a moeda brasileira já perdeu cerca de 90% de seu poder de compra original.[I] Entretanto, seria um equívoco pensar que a trajetória dos preços do real é singular de alguma forma. De fato, é comum que o valor de moedas fiduciárias seja erodido com o passar do tempo. A inflação não representa um estado de coisas excepcional: é crônica e endêmica.

Não se trata de um fenômeno simples, monocausal, podendo resultar de fatores bastante diversos, frequentemente mais profundos que os efêmeros caprichos do mercado financeiro noticiados diariamente. Costuma ser fruto de condições estruturais. Um exemplo disso é o sistema bancário que existia no Brasil antes da promulgação da Lei nº 4.595/64,[II] quando não havia no país um Banco Central. Ocorria, nessa época, um acúmulo das funções de Banco Comercial e de Banco Central na figura do Banco do Brasil, resultando em um sistema de controle monetário muito favorável à inflação de crédito.

O Banco do Brasil multiplicava a inflação de crédito ao basear seus empréstimos na relação encaixe/depósitos, recebendo, como depósito, a maior parte dos encaixes dos bancos comerciais, e operando com um nível muito baixo de encaixes. Além disso, a política monetária da época era muito dependente do poder executivo, uma vez que todos os membros do Banco do Brasil eram demissíveis ad nutum pelo próprio presidente da República.[III]

Para certos setores, taxas elevadas de inflação podem até ser vantajosas. É o caso dos grandes agroexportadores, por exemplo, para os quais convém investir capital na forma de uma moeda desvalorizada e embolsar o retorno do investimento em dólar. Assim, a inflação torna-se sinônimo de lucro, e a grande expressividade econômica do setor agroexportador no Brasil confere-lhe certo peso no tocante à determinação da política monetária nacional, podendo, caso queiram, encorajar o fomento da inflação em detrimento das massas de trabalhadores assalariados do Brasil, cujos problemas não terminam aí: produtos de consumo básico, como arroz e feijão, por exemplo, sofrem flutuações de preço não apenas pela inflação em si, mas também em função da relativa escassez gerada pela prioridade que os agropecuaristas dão ao mercado externo, muito mais lucrativo em conjunturas inflacionárias.

A moeda está longe de ser uma tecnologia axiologicamente neutra, mero objeto intermediário de troca. É difícil pensar em melhor contraexemplo ao pretenso caráter apolítico do dinheiro do que a hegemonia do dólar nas finanças globais. Sabemos, é claro, não ser por mero acaso que a inflação no Brasil costuma ser expressa em termos da cotação do dólar em reais. Trata-se, evidentemente, de um reflexo direto da influência econômica e política dos Estados Unidos no cenário internacional, onde o dólar se estabelece não apenas como unidade de medida e reserva de valor, mas também como instrumento geopolítico de projeção de poder.

A dependência em relação ao dólar impacta diretamente as políticas monetárias de outros países, forçando-os a alinharem-se às flutuações e decisões tomadas pelo Federal Reserve, o banco central dos EUA. Além disso, a dolarização das economias emergentes frequentemente exacerba desigualdades e vulnerabilidades econômicas, evidenciando a complexa interdependência entre moeda, soberania e hegemonia global.[IV]

Mesmo apenas no âmbito doméstico, a moeda também pode ser parte de um intrincado mecanismo de geração e reprodução de desigualdades. Em sistemas de moeda fiduciária – isto é, que não possui lastro ou valor de uso – os custos da emissão de dinheiro são muito baixos, tendendo a zero, o que torna tal emissão irresistível. Inevitavelmente, isso resulta em algum grau de redistribuição de riqueza, uma vez que a moeda não chega às mãos de todos os agentes econômicos ao mesmo tempo. Os primeiros receptores do dinheiro recém-emitido possuem a vantagem de tê-lo disponível antes de sua ampla distribuição, ou seja, quando os preços vigentes no mercado ainda não refletem as emissões.

Em outras palavras, a velocidade da inflação é necessariamente menor ou igual à velocidade do dinheiro.[V] Quando a moeda é efetivamente utilizada e passa a circular, sua maior disponibilidade resulta em inflação, erodindo o poder de compra dos usuários tardios. Os primeiros usuários da moeda emitida recebem-na direto da fonte (do sistema bancário), na forma de empréstimos. Ora, quem tem as maiores chances de conseguir empréstimos junto aos bancos são os mais ricos, que oferecem as melhores garantias e têm melhores condições de quitar suas dívidas. Destarte, além da diferença de renda quantitativa absoluta entre ricos e pobres, a inflação faz com que, na prática, a moeda utilizada pelos “donos do dinheiro grosso” seja diferente daquela que circula entre a população. Eis que o sistema fiduciário assume os contornos de um esquema de pirâmide de larguíssima escala: a pirâmide da trickle-down economics.[VI]

A inflação não é uma arbitrariedade cega, algo democrático que atinge a todos igualmente, sem preconceitos: é sabido que suas vítimas preferenciais são os pobres. Devido aos seus custos baixos de emissão, é de se esperar que haja um constante aumento da oferta de moeda circulante, e um consequente aumento dos preços no mercado. Por isso, a tendência para o futuro é que haja uma desigualdade econômica cada vez maior entre os mais ricos e os mais pobres, visto que seu patrimônio é diferente não apenas em termos quantitativos, como também “qualitativos”.[VII]

Conforme já exposto, não se trata aqui de uma simples concentração quantitativa estática, desprezando-se a inflação, mas de uma flutuação do próprio valor da moeda ao longo do tempo que beneficia aqueles que têm condições de adquiri-la primeiro. Trata-se de um mecanismo profundamente integrado ao nosso sistema monetário, cuja própria arquitetura, pode-se dizer, condiciona-o a operar contra o povo.

Torna-se claro que a moeda não é apenas uma inocente reserva de valor ou meio de troca, mas algo passível de manipulação ou regulação equivocada no contexto da economia de mercado. O Brasil é um país que possui, historicamente, níveis infames de desigualdade socioeconômica. Ainda que haja, em termos absolutos, uma acentuada má distribuição de renda, há mecanismos de concentração de riqueza muito mais sutis.

Desses, talvez o principal seja justamente a inflação, mazela crônica cujos impactos recaem sobre diferentes setores sociais de forma profundamente iníqua, não apenas no Brasil, mas no mundo como um todo. É uma característica integral dos sistemas monetários contemporâneos, destinados acima de tudo à manutenção metabólica do capitalismo financeiro. Quanto ao povo, a ele cabem os restos desse metabolismo, como vermes comendo detritos no fundo escuro do oceano, condenados a jamais verem a luz do sol.

*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel na Faculdade de direito da USP.

Notas


[II] O texto integral da Lei nº 4.595/64 está disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4595.htm.

[III] Sobre a dinâmica do controle monetário no Brasil anterior à Lei nº 4.595/64, ver: GUDIN, Eugenio. Princípios de Economia Monetária. 9a ed., Rio de Janeiro: Agir, 1979, p. 279-293.

[IV] Sobre a hegemonia do dólar nas finanças globais, ver: Brown, B. A 100 Years of Dollar Hegemony. Atl Econ J 48, 413–419 (2020). https://doi.org/10.1007/s11293-020-09693-z.

[V] Velocidade do dinheiro, também chamada de velocidade (de circulação) da moeda, é a frequência média com que uma unidade monetária troca de mãos em determinado intervalo de tempo.

[VI] Trickle-down economics, que pode ser traduzida como “economia do gotejamento”, é a ideia de que os gastos dos mais ricos “gotejam” sociedade abaixo, beneficiando os mais necessitados. Algo desse tipo ocorre de fato, mas, como vimos, a riqueza “gotejada” encontra-se já gasta e dilapidada, na forma de dinheiro inflacionado. Para mais informações, ver: https://knowledge.wharton.upenn.edu/article/trickle-economics-flood-drip/.

[VII] Essa diferença “qualitativa” entre o patrimônio de ricos e pobres não diz respeito, aqui, apenas aos diferentes ativos em que o valor encontra-se armazenado, mas também ao caráter inflacionado da moeda que chega aos mais pobres, em relação ao seu valor original quando emitida e embolsada pelos ricos. O leitor atento perceberá que, na verdade, essa diferença também é quantitativa (o que justifica o uso das aspas), mas diz respeito não ao tamanho total do patrimônio, e sim à própria unidade monetária, por assim dizer.


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