quinta-feira, 22 de junho de 2017

Encarceramento em massa: a infinita arte de enxugar gelo

Encarceramento em massa: a infinita arte de enxugar gelo

Thais Lemos Duarte / Socióloga
http://justificando.cartacapital.com.br/

Nos últimos meses, as prisões do país se tornaram manchetes recorrentes de jornais pelo domínio das facções criminais nos cárceres, pela rivalidade entre os grupos criminosos, pelas rebeliões, bem como pelas mortes e desaparecimentos de pessoas presas. Em vista disso, o Governo Federal estipulou uma série de medidas que, formalmente, visariam ao distensionamento das prisões. Mas, na prática, se voltam, sobretudo, a um reforço da lógica da violência nos cárceres do país.
A diretriz central da política prisional nacional tem se pautado pelo encarceramento em massa. Por exemplo, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, 33 pessoas presas morreram em uma rebelião ocorrida em janeiro deste ano, fruto da rivalidade entre as facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV). A principal resposta do Executivo Federal para o fato foi o repasse de mais de 40 milhões para a compra de equipamentos de segurança e construção de unidades prisionais no estado.

Apesar de a medida ser publicamente justificada como uma maneira de reduzir a superlotação, os novos cárceres possivelmente atenderiam uma demanda reprimida do Sistema de Justiça Criminal voltada ao aprisionamento, potencializando o encarceramento em massa.

Diante de todo esse cenário, torna-se fundamental realizar um debate mais qualificado em torno das facções criminais e do processo de superencarceramento desenvolvido no Brasil. Inclusive, há de se fazer uma reflexão sobre o possível impacto das medidas do Governo Federal sobre esses grupos.

Boa parte das facções criminais se originam dos cárceres, muito em consequência das graves violações de direitos que marcam esses espaços. É emblemática, por exemplo, a formação do Comando Vermelho no Rio de Janeiro. Apesar de haver diversas versões sobre o nascimento dessa facção, ao que tudo indica, o grupo foi instituído a partir da convivência entre presos comuns e os enquadrados na Lei de Segurança Nacional, os tidos “políticos”, durante o período da Ditadura Civil-Militar, em um cárcere situado na Ilha Grande. De fato, vários acontecimentos passaram a ser atribuídos ao grupo dentro e fora das prisões a partir da década de 1980.

Por sua vez, o PCC foi fundado em 1993, durante uma rebelião no Centro de Reabilitação Penitenciária, anexo à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, em São Paulo[2]. O grupo surgiu em um contexto em que imperava – e ainda impera – uma orientação militarizada de controle do crime, de modo que a polícia, sobretudo a militar, atua sob a lógica da eliminação do inimigo, especialmente o traficante de drogas. Adicionalmente, a partir da década de 1990, o estado de São Paulo adotou um processo profundo de interiorização das prisões, embebido por interesses econômicos e políticos. A construção de unidades prisionais no interior gerou mais de 18.000 postos de trabalho, resultantes em investimentos de mais de 200 milhões de reais nos municípios[3].

Com essa pulverização das prisões, problemas do universo prisional, como a superlotação e as péssimas condições de detenção, passaram despercebidos para a população em geral. Por outro lado, a intensificação da construção das prisões não acompanhou o grande número de pessoas encarceradas. Entre 2003 e 2007, a população paulista cresceu 5.3%, ao passo que a população encarcerada aumentou 23.4%[4].

Não necessariamente os grupos criminosos surgem com um interesse comercial, voltado ao domínio do tráfico de drogas e outros mercados ilegais. Muitos se formam para criar códigos de conduta na cadeia e estabelecem uma solidariedade entre os presos. Institui-se, assim, um comportamento baseado na vontade de um “coletivo” de pessoas privadas de liberdade, fundando em uma espécie de espírito de corpo. A meta é garantir direitos, como o fim da tortura, o direito à visita íntima, o fim das revistas vexatórias nos visitantes etc.

Apenas em outro momento, as facções começariam a se envolver com o tráfico de drogas, se desdobrando para áreas empobrecidas das cidades. Como a resposta dos órgãos do Estado ao crescimento das atividades do tráfico de drogas costuma ser o acirramento e reforço de políticas repressivas, com foco nas populações mais pobres, as dinâmicas do tráfico de drogas se diversificaram ao longo do tempo. Ocorrem, assim, constantes trocas de lideranças, a intensificação das disputas por territórios, investimentos mais pesados em armamentos, o acirramento dos confrontos armados e mudanças na relação entre traficantes e moradores.

Essa dinâmica do tráfico apenas se mantém em boa medida pela articulação entre o fora e o dentro da cadeia. Não à toa há diversos relatos na imprensa sobre como são negociadas ações do tráfico dentro dos cárceres. Não à toa também se tornou lugar comum escutar que as prisões são como “universidades”, transformando um mero “ladrão de galinha” em um indivíduo especializado no “mundo do crime”.

Ou seja, a prisão não apenas produz a delinquência, como também a organiza, ensinando às pessoas presas códigos e atividades típicas da criminalidade mais organizada. Diante disso, não é exagero mencionar que a própria detenção conduzida pela polícia pode impulsionar o processo de filiação de uma pessoa a facção.

Portanto, as políticas de prevenção ao crime, pautadas, especialmente, no encarceramento, tais quais as adotadas pelo Governo Federal, transformam o trabalho dos órgãos do Sistema de Justiça Criminal em um infinito enxugar gelo.

O processo de encarceramento em massa fornece bases para o nascimento e consolidação das facções que, para além de atividades criminosas, assumem um protagonismo na gestão da violência nas prisões e periferias. Quanto mais esses grupos se expandem, mais o Estado parece investir na ampliação de um sistema que os alimenta.

Resta concluir, então, que as políticas de prevenção à criminalidade só seriam eficazes caso não tomassem como foco o aprisionamento. A liberdade deveria ser regra, ao passo que a prisão seria exceção.

Thais Lemos Duarte é socióloga e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).

[1] Esse artigo reflete opiniões pessoais e não a do órgão a que a autora está filiada.

[2] DIAS, Camila. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. São Paulo, Tese de doutorado em Sociologia, Universidade de São Paulo, 2011.

[3] SILVESTRE, Giane. Enxugando o iceberg: como as instituições estatais exercem o controle do crime em São Paulo. São Paulo, Tese de Doutorado em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, 2016.

[4] SALLA, Fernando; DIAS, Camila Nunes; SILVESTRE, Giane. Políticas penitenciárias e as facções criminosas: uma análise do regime disciplinar diferenciado (RDD) e outras medidas administrativas de controle da população carcerária. Estudos sociológicos, Araraquara, v.17, n.33, p.333-351, 2012.

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