quinta-feira, 22 de junho de 2017

A ausência de pensamento crítico nas escolas e um ensino lobotomizado

A ausência de pensamento crítico nas escolas e um ensino lobotomizado

Diego Roda Reis

"Pogressio, pogressio.
Eu sempre iscuitei falar, que o pogressio vem do trabaio.
Então amanhã cedo, nóis vai trabalhar."
(Conselho de Mulher, Adoniram Barbosa)

“Não estuda pra você ver só, vai lavar chão!”. Trata-se de um imperativo comumente profetizado por pais aos seus filhos nos lares brasileiros, sobretudo nos de classe média e alta. E quase sempre é acompanhado de um dedo em riste apontado para o profissional que consideram não ter se esforçado ou não possuir muita inteligência por executar aquela profissão, afinal, o próprio mandamento pressupõe o exercício de uma suposta faculdade: não estudar.

A criança, então, cresce ouvindo que se não estudar ou se nada der certo, irá lavar chão pelo resto da vida. Com o passar do tempo, associa esse trabalho ao livre arbítrio de não querer estudar e logo cria uma regra que levará por toda a vida e transmitirá à sua prole: só não estuda quem não quer.
O que está por traz dessa ameaça aparentemente inofensiva é algo característico da sociedade brasileira: a naturalização do preconceito de classe e a hipocrisia da meritocracia difundida e defendida nas famílias e escolas.

Julgam-se superiores por ganharem mais e exercerem profissões “superiores”. E se julgam no pleno direito de assim agirem, afinal, estudaram muito pra chegarem ao topo e não optaram por não estudar e, consequentemente, por lavar chão.

De tão arraigado que é o preconceito de classe, alguns até promovem atividades escolares cuja intenção é justamente resgatar e reforçar aquele velho dogma que fora difundido por seus pais na sua infância e perpetuado pela escola ao longo dos anos. Vestem-se com uniformes usados por quem “não deu certo” para, segundo a escola, “promover momentos de integração e descontração entre formandos do Ensino Médio”.

A própria justificativa dada pelo Colégio para tentar legitimar o evento demonstra a naturalização do preconceito e reflete uma estrutura de ensino autoritária e conservadora, à semelhança da educação dada em casa com base no imperativo categórico “se não estudar, então…”.

Esse fato ilustra e confirma a hipótese de que a manutenção de um ensino que se propõe a ser estritamente técnico, dogmático e apolítico, mas que não estimula o pensamento crítico, leva à formação e à inserção no mercado de trabalho de jovens que desconhecem a realidade socioeconômica brasileira, as agruras por que passa a sua gente e a história de formação da sua classe política, forjada como instrumento de manutenção de privilégios das elites, dos coronéis de outrora.

Simplesmente não têm a consciência de que o ensino e educação de qualidade no Brasil continuam sendo privilégios e que as profissões das quais hoje zombam existem por falta de acesso à educação e ensino de qualidade aos que a ocupam. Falta-lhes empatia, altruísmo, cultura, enfim, educação.

Sequer enxergam que essas pessoas, não raro, são seus empregados dentro de casa e que ajudaram a educá-los. Como disse Márcio Ruzon, filho de porteiro, em resposta ao Colégio: 


Ainda bem que muita gente “dá errado” na vida, senão quem iria preparar o lanche dos filhos que vão para o Colégio Marista? O pai? A mãe? Não sabem nem como ligar um fogão! Mas deram certo, não é?

Não se pretende, com isso, isentar de culpa esses jovens, mas demonstrar que existe uma estrutura patriarcal e racista por traz dessa realidade que precisa ser discutida com mais seriedade, sob pena de focar a crítica e o combate nas consequências do problema e não em suas causas. Apenas criticar os alunos pelo fato em si, isolado do que ele de fato representa, de nada adiantaria.

E essa discussão certamente não passa por tentar implantar programas que estimule ainda mais a ausência de crítica na sala de aula como pretende o Programa Escola Sem Partido, cujo projeto de lei foi encabeçado sob a justificativa falaciosa de que:

“Liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com liberdade de expressão; não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa.”

Ora, não há aprendizagem sem liberdade de ensinar, de pensamento, de expressão. E liberdade de pensar é dar ao professor a autonomia necessária para escolher qual o modelo que considera melhor para o aluno.

Sem liberdade de pensamento não há como viabilizar a liberdade de aprender. E a transmissão do conhecimento parte de uma visão crítica do conteúdo que se pretende expor, sob pena de negar a própria essência humana.

O art. 2º do PL nº 867/2015, que pretende instituir o dito programa, estabelece como princípio a “neutralidade política e ideológica” da educação, pressupondo existir uma isenção no corpo docente e uma neutralidade na história que só existe no imaginário daqueles que negam o que Aristóteles já dizia muito antes de Cristo: o homem é um animal social, político por natureza. 

Ao negar o pensamento crítico, intrínseco ao processo de aprendizagem e conhecimento, pretende transformar a educação escolar em um ensino lobotomizado, de dar inveja ao Alex, personagem sociopata de Laranja Mecânica, e produzir alunos sem a capacidade de compreender minimamente o descabimento de certas intervenções.

O conjunto da obra revela uma tentativa de transformar definitivamente as escolas em meras extensões dos lares e de tornar o ensino mero difusor dos preconceitos velados absorvidos no seio familiar.

Lembremos que bastou Alex ouvir novamente a Nona Sinfonia de Beethoven para reascender seu comportamento impulsivo, demonstrando a ineficácia da lobotomia e seus efeitos desastrosos no comportamento humano. Da mesma forma, implantar programas que não estimulem o senso crítico dos jovens e, pior, que o negam, não preservará a sua liberdade de pensamento, mas os tornará cada vez mais violentos, reprodutores dos preconceitos que aprenderam e empenhados em manter seus privilégios de classe para si e às futuras gerações. Como ensinou Paulo Freire:

Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo[1].

Diego Roda Reis é advogado graduado pela PUC-SP.

[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Ed. Paz e Terra, 6ª ed., 1978, p. 45.

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