Em abril de 2012, o Fantástico,
da Rede Globo, mostrou a fachada de um casarão antigo no município de Cláudio
onde o comerciante Tancredo Tolentino, o Quedo, entregou propina ao
desembargador Hélcio Valentim de Andrade Filho, em troca de um habeas corpus para
libertar dois traficantes. Na sexta-feira passada, eu fui a Cláudio e vi que o
casarão ganhou outra finalidade. Além de vender a cachaça Mingote, abriga o
comitê eleitoral de Aécio Neves, e Quedo assumiu a coordenação da campanha na
região centro-oeste de Minas.
No sábado, depois de entrevistar
mais de dez pessoas e de ver o processo que apura a construção do aeroporto,
voltei à Mingote para tentar conversar com Quedo. Primo de Aécio, ele é o
personagem onde dois escândalos se encontram. O pai de Quedo, Múcio, que é tio
de Aécio e ex-prefeito de Cláudio, é o dono da fazenda onde o aeroporto foi
construído com dinheiro público. Até estourar o escândalo, a chave do aeroporto
ficava em poder da família.
Quedo é também o elo que ligou
traficantes presos na região de Cláudio a um desembargador nomeado quando Aécio
era governador de Minas Gerais. É o caso noticiado pelo Fantástico, numa
reportagem de 11 minutos, rica em detalhes sobre a investigação da Polícia
Federal, mas miserável num aspecto: em nenhum momento, é citado o nome de
Aécio, embora uma reportagem publicada anos antes na revista do mesmo grupo, a
Época, tivesse revelado que Aécio era produtor da cachaça Mingote.
Quedo chegou em um Uno, modelo
novo, na companhia de mais três pessoas. Estava de boné, quando me apresentei
como jornalista e disse sobre o que gostaria de conversar. Quedo tirou um
celular do bolso, me perguntou para quem eu trabalhava e digitou um número.
Depois de conversar no telefone, explicou que era da assessoria do primo. “Se eles
deixarem, eu falo”, disse.
Enquanto aguardava orientação da
cúpula da campanha, Quedo me convidou para sentar num banco em frente à casa da
mãe dele, ao lado da Mingote, e disse que precisava ter cautela. “Afinal, é uma
disputa para presidente e nós estamos na frente. Daqui uns dias, a Dona Dilma
vai morar em Cuba”.
Quedo quis saber o nome das
pessoas que eu havia entrevistado e mencionou o ex-vereador Israel de Souza,
conhecido como Relinho, autor da denúncia em que o Ministério Público cobra do
tio de Aécio a devolução do dinheiro gasto na construção da primeira pista do
aeroporto.
Não confirmo, e a conversa
prossegue. O telefone toca. “Sim, ele está aqui do meu lado e o carro prata
está estacionado aqui na frente da minha casa… Estou vendo o carro”, diz ele,
se referindo ao veículo alugado que uso para fazer a reportagem. Desliga o celular
e olha para mim, nem um pouco ameaçador.
“Eu já soube que você estava com
o Relinho, em frente à fazenda do Aécio. Você sabe que a única pessoa da minha
família que se dá bem com o Relinho sou eu? Ele é uma pessoa amarga, difícil.
Acho que não se dá bem nem com a família dele”.
Ex-vereador por quatro mandatos,
Israel de Souza, hoje com 70 anos, tem uma oficina que conserta geladeiras e já
prestou serviços para Tancredo Neves e a mulher, dona Risoleta, tios de Quedo.
A avenida onde fica a Mingote,
uma das principais da cidade, se chama Tancredo Neves e é bastante movimentada,
mesmo para um sábado à tarde. Um carro passa, ouve-se a buzina e vê-se um aceno
efusivo. “É 45!”, grita o motorista para Quedo.
Um carro para, descem algumas
pessoas e um homem pergunta, depois de cumprimentar Quedo: “Tem adesivo, desses
bem grandes?” Quedo manda um funcionário buscar balde de água e adesivos.
Enquanto o próprio Quedo adesiva
o carro, utilizando água para colar, o rapaz que desceu diz: “Esse homem é
muito bom. Ajuda todo mundo”. Dois outros carros param e também pedem adesivo.
Um deles, com uma camionete,
ganha um adesivo: “Sou médico e voto Aécio”. O homem explica que é uma
homenagem à filha, que é médica. O passageiro de um Gol velho, um moreno de
bermuda e chinelo, bem alegre, pede o adesivo em troca de uma ajuda para a
gasolina.
Quedo afixa o adesivo e tira R$
10,00 do bolso. O passageiro demonstra satisfação e, rindo, olha para o
motorista: “Três litros de gasolina”. Quedo diz: “É assim o dia inteiro.”
No primeiro turno, Aécio teve
mais de 12 mil votos na cidade, Dilma, quase 2 500, Marina, 600, e Luciana
Genro, surpreendentes 280. “Quem vota nessa maluca? Ela parece que engoliu uma
enciclopédia e fala o que dá na telha”.
Quedo volta ao tema do aeroporto:
“Foi bom para a cidade. Tem um empresário aqui, o Pedro, que disse que, se o
Múcio deixar, ele vai usar o aeroporto”. Como assim, Múcio deixar? O aeroporto
não é público? Quedo lembra que não está dando entrevista.
Antes de voltar à Mingote, para
entrevistar o Quedo, estive no aeroporto. O portão estava fechado, mas o
cadeado era bem novo e diferente daquele que foi fotografado pela Folha de S.
Paulo na reportagem que revelou a existência dessa obra em Cláudio.
Quem conhece os hábitos políticos
em Cláudio e a tradição dos Tolentino, coronéis no passado, aposta numa versão:
o tio de Aécio não quis entregar a chave depois que o escândalo eclodiu, e o
prefeito, aliado de Aécio, mandou trocar o cadeado.
A manutenção da chave que abre o
portão do aeroporto em poder do ex-prefeito se tornou insustentável depois que
o Ministério Público abriu uma investigação para apurar o caso. Numa resposta
ao Ministério Público, a prefeitura diz estar hoje em posse da chave do
aeroporto.
Mas, mesmo com a troca da chave,
permanece o conflito entre público e o privado nas terras da família Tolentino,
onde Aécio desfruta de um quinhão hereditário.
A pergunta que todos em Cláudio
se fazem é: por que o governo do Estado gastou quase R$ 14 milhões na
pavimentação de uma pista de aeroporto, mais 1 milhão para desapropriar a área,
se o município tem muitas carências, como a falta de um grande hospital?
A resposta pode estar 31 anos
atrás, quando o avô de Aécio, Tancredo Neves, governador de Minas Gerais,
transferiu dinheiro do estado para a prefeitura de Cláudio, na época chefiada
pelo seu cunhado Múcio, construir um campo de pouso.
Uma publicação da prefeitura à
época mostra um orgulhoso prefeito, com uma perna assentada num barranco,
inspecionando como um general a obra feita com dinheiro público na sua
propriedade. A foto ilustra o que a publicação chama de progresso de Cláudio.
Na ação civil pública aberta em
1999, onde esta foto foi juntada, o promotor de Cláudio à época pediu a
devolução aos cofres públicos do dinheiro gasto na obra e revelou que, em sua
investigação, constatou que não teve
sequer licitação.
Em seu depoimento ao promotor,
Múcio confirmou que o campo fica em sua propriedade, e um dos primeiros pousos
foi de um avião que trazia o recém-eleito presidente da República Tancredo
Neves, acompanhado do governador de São Paulo, Franco Montoro, e do ministro da
Agricultura recém-nomeado, Pedro Simon.
O atual titular do Ministério
Público em Cláudio, Marcos Lamas, herdeiro da ação, compara a obra de
construção do campo à ampliação de uma casa.
“É como se o estado construísse
uma piscina no quintal da minha casa, mas só poderia usar a piscina quem eu
quisesse”, diz o promotor. “Vou cobrar o ressarcimento da obra, com correção e
juros”.
Na única vez em que houve um
cálculo sobre o valor a ser ressarcido ao estado, citou-se a cifra de R$ 250
mil, bem inferior ao valor depositado com a desapropriação feita por Aécio para
a pavimentação da pista: R$ 1 milhão.
Por que, quando governador, Aécio
decidiu pavimentar o campo de pouso construído pelo tio, com dinheiro do estado
liberado pelo avô, numa propriedade da família?
O argumento do ex-governador é
que Cláudio, embora tenha pouco mais de 30 mil habitantes, é o maior polo de
fundição artesanal do Brasil e, portanto, com atividade econômica que
justificaria o aeroporto.
Há pessoas ricas na cidade, mas
apenas três utilizam regularmente transporte aéreo próprio. Gino, da dupla
sertanejada Gino e Geno, tem um helicóptero, mas a propriedade dele já conta
com um heliponto.
O empresário conhecido como Pedro
Cambalau tem avião, mas usa o hangar do aeroporto de Divinópolis, a 50
quilômetros dali. Aécio também usa avião e helicóptero particulares
regularmente, e admitiu que utilizou a pista algumas vezes. Ainda assim, se
justificaria o investimento?
Segundo o ex-vereador Israel de
Souza, o tio de Aécio liberou a pista algumas vezes para amigos e conhecidos
praticarem aeromodelismo, e pequenos aviões pararam ali para voos panorâmicos
fretados.
O aeroporto de Cláudio fica à
margem direita da rodovia de acesso à cidade, em frente a um motel. É parte de
uma vasta área que pertenceu ao trisavô de Aécio, Domingos da Silva Guimarães,
o Mingote, chefe do clã que se uniria à família Toletino.
A partir do aeroporto, seguindo
estrada adentro, depara-se com placas como Fazenda Casa Rosa – Dr. Osvaldo
Tolentino (tio de Aécio), Fazenda Santa Ignês / Tia Zezé (parente de Aécio),
TAN (Tancredo Augusto Neves (tio de Aécio), Fazenda Cachoeira / Cueio do Jacó
(primo de Aécio) e Fazenda da Mata / D. Quita (bisavó de Aécio), hoje em poder
do próprio ex-governador.
O aeroporto não é o único bem que
revela dificuldade ao visitante de saber o que ali é público e o que é privado.
Na fazenda da Mata, encontrei a base de uma torre de alta tensão sem a parte de
cima.
Israel de Souza me explicou que,
há alguns anos, quando Aécio era governador, ele desviou a rede de alta tensão
de sua propriedade. No terreno por onde passava a rede, mandou construir um
haras. “A cidade ficou um dia sem luz só para fazer esse desvio”, conta.
A rede hoje faz um traçado
curioso. Os cabos vêm em linha reta até o início da propriedade de Aécio,
desvia para o lado direito e lá na frente, fora do perímetro da fazenda, para o
lado esquerdo. “É um zigue-zague que ele fez para desviar da obra”, diz o
ex-vereador.
Um pouco adiante, vê-se uma nova
estrada, que desviou o trânsito da fazenda da Mata. “A obra até que foi boa,
porque encurtou o caminho de quem vai para o povoado de Matias, mas ele não fez
por isso. Fez para tirar o movimento da frente da fazenda”, conta.
Israel conta que, antes do
desvio, costumava passar pela frente da fazenda da Mata com seu fusquinha
branco. Um dia, avistou um grupo de cavaleiros adiante e fez a ultrapassagem.
Alguns homens galoparam e
mandaram Israel parar, para adverti-lo de que ele não poderia fazer isso, pois
levantara poeira em cima do governador. “Como é que eu ia saber que era o
Aécio? Se alguém tivesse sinalizado, eu não passaria. Mas não tinha ninguém
sinalizando e o carro é mais rápido do que um cavalo”, comenta.
A fazenda é uma herança que dona
Risoleta deixou para sua filha, Inês Maria, mãe de Aécio e de Andrea. Mas é
Aécio quem manda ali, herdeiro de uma tradição da família Tolentino. A sede da
Fazenda da Mata é ocupada sempre pelo Tolentino mais poderoso.
Era do Quinto Alves Tolentino e
da sua mulher, dona Quita, passou para dona Risoleta e seu marido, Tancredo
Neves, e deles para Aécio. Quem toca a casa é uma senhora que cuida de Aécio
desde que ele era criança. É uma mulher que permaneceu solteira e o acompanha
nas suas viagens com a família.
“Dona Deusa é quem cuida da roupa
e da comida do Aécio. Esses dias, eu perguntei para ela como se sentia sendo
tia avó dos gêmeos. Ela disse: ‘eles são uma gracinha’”, conta uma moradora de
Cláudio, comerciante, que conhece a família.
De volta à conversa com Quedo,
ele continua a falar sobre a campanha do primo. “Você viu o depoimento que a
Denise Abreu gravou na internet?”
Antes que eu responda, telefona
para alguém e pede para enviarem para o meu celular uma gravação em que
ex-diretora da ANAC diz que o aeroporto de Cláudio é irrelevante perto das
obras do governo federal em Cuba.
Enquanto Quedo cola mais um
adesivo em carro, um morador explica que o primo de Aécio se tornou popular em
Cláudio porque é ele quem costuma agilizar atendimento médico em hospital de
outras cidade, principalmente Betim.
“Quando alguém quebra a perna e
não consegue atendimento na Santa Casa de Cláudio, procura o Quedo, e ele com
certeza arruma atendimento em alguns lugar”, conta.
Quedo ouve e confirma: “Gosto de
ajudar as pessoas.” Ainda que a ajuda, no caso de hospitais, seja pelo Sistema
Único de Saúde. Influência do primo?
Quedo já cumpriu pena na cadeia
da cidade por sonegação fiscal. Foi na década de 90, e algumas pessoas dizem
que, no cárcere, tinha tratamento vip. Recebia visitas na hora que queria, e
chegou até a fazer churrasco para amigos.
Em 2011, quando voltou a ser
preso, flagrado na negociação de habeas corpus para liberar traficantes, a
cidade não se surpreendeu.
“Todo mundo sabe que o Quedo já
mexeu com coisa errada, mas ele é tão boa pessoa que a gente nem fala nesse
assunto. Nas cavalgadas, quando o Quedo
passa, todo mundo cumprimenta: oi, Quedo! Às vezes, o Aécio também participa, e
a gente cumprimenta: Oi, Quedo. Oi, Aécio. E eles respondem.”
Quedo é alguns meses mais velho
que o primo famoso. O telefone toca, Quedo troca algumas palavras e diz:
– A ordem lá de cima é esta: nada
de entrevista. Eles me disseram que, se você quiser me entrevistar, venha na
segunda-feira depois da eleição. Eu até queria dar entrevista, mas não quero
prejudicar. O negócio não é brincadeira. Está em disputa a Presidência da República.
Vou embora, sem a entrevista de
Quedo.
Com mais de 30 mil habitantes,
Cláudio, no centro oeste de Minas Gerais, é uma cidade conhecida na região por
suas lendas. A professora Noeme Vieira de Moura registrou algumas delas, em
textos publicados em jornais e revistas do município. Uma fala de um tesouro
enterrado numa serra da cidade. Muitos fizeram escavações, mas ninguém
encontrou o tesouro, todos afugentados por ventanias e vozes ameaçadoras. A
outra lenda é a da santa encontrada também em uma serra. Os homens ricos
tentaram levar a imagem para a matriz, mas toda noite ela desaparecia e voltava
para o lugar onde foi encontrada. Os proprietários de terra tentaram construir
uma capela no local, mas a santa desapareceu para sempre.
Tanto num caso quanto em outro,
os escravos são personagens centrais. São eles que escondem o tesouro para não
serem roubados pelos senhores. Na outra, foram os escravos que encontraram a
santa, que lhes foi retirada pelos fazendeiros. A Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros diz que a cidade tem esse nome por causa de um escravo, chamado
Cláudio, que encontrou um córrego e todos passaram a chamá-lo de córrego do
Cláudio. Essa versão é rejeitada pelos mais ricos, que preferem outra, contada
por um historiador da região. Segundo ele, Cláudio era o dono de uma pousada
para tropeiros.
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