por Vitor Filgueiras e Sávio Machado Cavalcante / http://www.diplomatique.org.br/
Desde o início da reorganização capitalista da produção,
globalmente desencadeada no último quarto do século passado, a terceirização
tem sido utilizada, por todos os tipos de empresa, como um dos instrumentos
centrais de suas estratégias de acumulação.
Trata-se da forma de contratação laboral que melhor tem se
ajustado ao formato neoliberal imposto aos mercados de trabalho, concedendo às
empresas uma série de benefícios, como a flexibilidade de manejar força de
trabalho a um custo econômico e político reduzido. As consequências podem ser
ainda mais amplas: internalizar nas mentes e corpos – e, é claro, positivar no
direito – um novo valor e um novo discurso que eliminem o fundamento da
regulação social anterior do capitalismo, isto é, que possam dissociar –
ideológica, política e juridicamente – a empresa de seus trabalhadores; algo
que possa quebrar, portanto, a noção de que há qualquer vínculoentre os lucros
auferidos e os trabalhadores necessários à reprodução dessa riqueza.
Esse discurso aportou no Brasil durante a década de 1980.
Buscando um lugar na nova ordem econômica, a terceirização vem sendo, desde
então, crescentemente utilizada e ferrenhamente defendida pelo empresariado e
seus representantes. Em 1993, essas forças obtiveram uma significativa vitória,
pois lograram a liberalização dessa forma de contratação por meio da edição da
Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que permitiu a contratação
de trabalhadores por empresa interposta desde que a atividade em questão não
atingisse o que se denominou de “atividades-fim” da empresa contratante.
Todavia, hoje nos encontramos diante de uma nova ofensiva patronal no
Legislativo e no Judiciário, que tem por objetivo superar qualquer obstáculo
jurídico às possibilidades de terceirização, permitindo sua utilização em todas
as atividades das empresas.
Mas, para entender o ponto a que chegamos e o horizonte que
se apresenta, é preciso resgatar uma discussão mais conceitual e analítica.
Afinal, o que é, efetivamente, terceirização? Quais são suas reais
consequências? Esse fenômeno provoca grande celeuma em todos os campos em que é
tratado. A própria definição de terceirização não é gratuita, o que é,
evidentemente, expressão de interesses opostos e em conflito.
Convidamos o leitor, portanto, a discutir o que está em
jogo.
A luta pelo conceito
Nas ciências sociais em geral, afirmar que os conceitos não
são neutros não é nenhuma novidade. Qualquer discussão só pode começar a partir
dessa constatação, o que significa, sobretudo, identificar os interesses
subjacentes a cada tipo de formulação com pretensões analíticas. Por exemplo,
isso já se faz, de longa data, com os conceitos de globalização e
flexibilização do trabalho, formulados nos marcos de uma visão de modernidade
acrítica, segundo a qual só existiriam progresso e ganhos econômicos para
todos.
O conceito de terceirização está igualmente longe de ser
ingênuo. É reproduzido, comumente, como se fosse algo inexorável e positivo. O
corolário, assim, é a restrição ao contraditório. Mesmo a literatura crítica,
ao assumir o conceito, tem caído na armadilha analítica criada pela noção
hegemônica de terceirização, pois, a despeito de identificar consequências
nefastas do fenômeno, acaba por admitir sua inevitabilidade, mesmo que a negue
retoricamente.
Vejamos em que ponto está o atual consenso, suas
contradições e inconsistência.
A terceirização é generalizadamente conceituada como a
transferência de parte do processo produtivo de uma empresa, a contratante, que
passaria a ser feita por outra organização (normalmente classificada como
pessoa jurídica) – a contratada ou “terceirizada”. A ideia é que a contratante
passaria a focar as atividades em que seria especializada, deixando de realizar
aquelas menos importantes para seus propósitos. A contratada, por sua vez,
teria justamente nessas áreas o seu foco, ou seja, seria supostamente
especializada nas atividades que foram sujeitas à terceirização. Quando bem
realizada, os resultados dessa reengenharia seriam o aumento na qualidade de
produtos, serviços e maior eficiência.
É esse, em linhas gerais, o argumento empresarial. Ele é
sustentado por estudiosos da administração que enfatizam a necessidade de a
empresa definir seu foco de ação, seu core business, e transferir as demais
para terceirizadas – luta vitoriosa, como apontamos, pois a ideia foi
incorporada por súmula do TST que criou, dentro dessa lógica, os termos
jurídicos de “atividade-fim” e “atividade-meio”.
Em suma, supõe-se que a terceirização seria a radicalização
da divisão do trabalho numa economia capitalista “pós-fordista”. Ou seja, se a
figura de empresa típica do fordismo foi caracterizada como extremamente
vertical, com a reestruturação produtiva adveio um formato de empresa mais
horizontalizada, que exigiria a fragmentação do processo produtivo.
Contudo, empiricamente, a terceirização está distante dessa
imagem. Ela não implica a externalização das atividades nem a radicalização da
divisão social do trabalho das empresas capitalistas, apesar de reivindicar e
procurar vestir esse traje.
Esse fato pode ser apurado nos resultados concretos de
centenas de pesquisas sobre o tema. Um olhar mais atento às atividades
empresariais – o qual adentra o interior das empresas, analisa os contratos que
firmam, a organização do trabalho, seu modus operandi– demonstra que, nos casos
estudados, inclusive os que nós pesquisamos, de empresas de todos os portes,
setores, nacionais e transnacionais, as empresas contratantes não deixam de
comandar a atividade terceirizada.
É importante que esse ponto seja destacado: a terceirização
aparentemente divide e fragmenta o processo, podendo haver, eventualmente,
segregação espacial de atividades, mas a relação não se efetiva entre empresas
“autônomas”. Pelo contrário, a essência docontrole de fatodo processo produtivo
das atividades terceirizadas não muda, continua sendo da empresa contratante.
Esse controle pode ser feito por diferentes métodos (até insidiosamente), mas
invariavelmente inclui a detenção do know-how da atividade e a gestão da força
de trabalho empregada.
Portanto, a terceirização não significa externalização de
fato de atividades da produção. O que se efetiva é uma contratação diferenciada
da força de trabalho por parte da empresa tomadora de serviços. Com isso,
procura-se redução de custos e/ou externalização de conflitos trabalhistas,
aumento de produtividade espúria, recrudescimento da subsunção do trabalho,
flexibilidade e externalização de diversos riscos aos trabalhadores. Em suma,
com maior ou menor intencionalidade, as empresas buscam diminuir as
resistências da força de trabalho e as limitações exógenas ao processo de
acumulação.1
A divisão do trabalho sempre existiu e continuará existindo
no capitalismo. Por isso, confundi-la com a terceirização apenas serve para
fortalecer o argumento da inevitabilidade. Todavia, o próprio caráter do
capitalismo global comprova essa diferença. Afinal, se seus defensores
estivessem corretos, ou seja, se a terceirização representasse transferência de
partes do processo produtivo para redes de empresas especializadas e autônomas,
o resultado seria uma crescente pulverização de capitais. No entanto,
presenciamos exatamente o inverso, isto é, o acirramento da centralização de
capital em escala global.
Por isso talvez seja interessante repensar o próprio
conceito de terceirização, que poderia ser conceituada como o processo de
valorização do capital por meio de organização e gestão do trabalho em que não
há admissão da relação contratual com os trabalhadores em atividade e que se
utiliza, para tanto, de um ente interposto (seja pessoa jurídica, cooperativa
etc.).
Resultados empíricos:
precarização do trabalho
Estamos diante, portanto, de uma forma específica de
contratação de trabalhadores, que se vale de figuras interpostas (normalmente
pessoas jurídicas) para atingir seus objetivos. Mas poder-se-ia objetar: isso é
necessariamente ruim? Não seria apenas o modelo de contratação mais adequado
aos novos tempos e a novos padrões de consumo, os quais exigem rapidez e
qualidade na produção de mercadorias e prestação de serviços?
Ocorre que o sentido histórico da terceirização é outro. Se
o assalariamento em si desconhece limites à exploração, a terceirização
potencializa esse processo. Não por acaso, o uso desse mecanismo tem um efeito
visível, identificado pelas pesquisas sobre o tema: a precarização do trabalho.
O grau de atrelamento das terceirizadas em relação às
contratantes e a precarização do trabalho que é gerada podem ser demonstrados
de diversos modos e por meio de vários indicadores. O caso emblemático
discutido pelos estudos do trabalho é o chamado “modelo japonês”, formulado
originalmente pela empresa automobilística Toyota, que, para promover uma forma
de produção com ampla redução de custos, criou uma rede extensa de pessoas
jurídicas terceirizadas totalmente vinculadas à empresa central. A diferença
essencial era que os direitos e benefícios atrelados à empresa principal não se
estendiam à rede de subcontratação.
Para o capitalista individual, a intenção imediata da
terceirização comporta alguma variação, o que quase sempre inclui corte de
custos. Mas essa forma de contratação também acarreta redução dos limites
impostos à exploração do trabalho, mesmo quando tal consequência não se insere
deliberadamente nos cálculos empresariais.
No Brasil, as implicações deletérias da terceirização,
fartamente apontadas, não são meras contingências ou desvios, mas derivam da
redução ou ausência de limites à acumulação na vigência desse mecanismo de
contratação. Os trabalhadores terceirizados recebem salários menores, têm
jornadas mais extensas e menor resguardo de direitos e benefícios.
E, sobre um aspecto ainda mais grave, segundo dados do
Ministério do Trabalho, a terceirização tende a promover o trabalho análogo ao
escravo mais do que uma gestão do trabalho estabelecida sem a figura de ente
interposto, o que a vincula às piores condições de trabalho apuradas em todo o
país (degradantes, exaustivas, humilhantes etc.).
Considerando os dez maiores resgates de trabalhadores em
condições análogas às de escravos no Brasil em cada um dos últimos quatro anos
(2010 a 2013), em 90% dos flagrantes os trabalhadores vitimados eram
terceirizados. Poder-se-ia objetar que são casos apenas de terceirizações
informais, realizadas por empresas fraudulentas. No entanto, mesmo em situações
plenamente formalizadas, ou seja, em que os trabalhadores têm carteira de
trabalho assinada, a maioria dos resgates ocorre com terceirizados formalizados
por empresas interpostas. Entre esses resgates com terceirizados formalizados,
figuram desde médias empresas desconhecidas até gigantes da mineração e da
construção civil, do setor de produção de suco de laranja, fast-food,
frigorífico, multinacional produtora de fertilizantes e obras de empresas
vinculadas a programas do governo federal.
No Brasil, as terceirizações também elevam a probabilidade
média de morrer trabalhando. Com base em dados da Rais, pudemos identificar
fortes indícios da relação entre setores econômicos com maior incidência de
mortes e o predomínio maciço de terceirizados entre as vítimas.2
Interessante observar que as empresas não apresentam em suas
pesquisas as comprovações de seu discurso e ignoram, ou não reconhecem, os
inúmeros estudos acadêmicos das organizações sindicais e das instituições do
direito do trabalho.
Conjuntura
O cenário atual é desanimador, mas ainda pode piorar muito,
pois há vasto espaço para o crescimento da terceirização, cujas estimativas de
existência no país apontam para algo em torno de um quarto da força de trabalho
contratada.
Na prática, as terceirizações muitas vezes acontecem mesmo
nas chamadas atividades-fim, a despeito da proibição jurídica. Justamente por
isso, a nova ofensiva empresarial procura acabar com essas amarras. O
empresariado agora quer anular quaisquer limites e controles sociais
existentes.
A luta mais avançada nesse sentido concentra-se hoje em dois
flancos. No Legislativo, com a tentativa de aprovação do Projeto de Lei n.
4330. No Judiciário, a ofensiva reside no Supremo Tribunal Federal (STF), onde
tramita um processo específico de terceirização ao qual foi atribuído um
caráter de repercussão geral e que, se a Corte Suprema considerar, por meio
dele, inconstitucional a Súmula n. 331 do TST, vai agora permitir, na prática,
a terceirização indiscriminada.
Após mais de vinte anos, paradoxalmente, as entidades e os
movimentos dos trabalhadores contrários à terceirização são forçados a se
amparar nos termos criados pelo próprio discurso empresarial. Mesmo que as
noções de atividade-meio e atividade-fim sejam apenas construções jurídicas que
podem amenizar a tendência predatória que decorre da verdadeira finalidade das
empresas – isto é, seu fim é a busca de lucro, e as próprias mercadorias e
serviços são apenas meios para tanto –, o fato é que, na atual conjuntura,
essas noções ainda permitem colocar um freio às tendências precarizantes,
especialmente se vigorar a responsabilidade solidária das empresas contratantes
e a prevalência da norma coletiva mais favorável entre os sindicatos de
trabalhadores envolvidos.
Qual futuro?
Ao se lançarem numa ampla cruzada para demolir os obstáculos
à terceirização em atividades-fim, os grupos empresariais apenas comprovam que
a estratégia diz respeito à flexibilização da contratação de trabalhadores.
Ora, como poderiam auferir lucros abdicando de todas as atividades, inclusive o
que eles próprios alegam ser o “principal” de sua produção?
Durante décadas, as empresas defenderam a retórica de que
precisariam externalizar para se concentrar no essencial. Se agora querem
terceirizar tudo, simplesmente confirmam que o conceito defendido é
inconsistente. Na verdade, querem fazer com a atividade-fim o que já fazem com
as atividades-meio: gerir sua força de trabalho, com o uso de um ente
interposto, obtendo todos os benefícios que essa forma de contratação lhes
propicia.
A terceirização, se liberada ainda mais, será um grande
golpe contra o direito do trabalho. A história, contudo, já nos dá subsídio
para desmascará-la, com base na realidade concreta exposta nas diversas
pesquisas sobre o tema e na própria retórica daqueles que se beneficiam dessa
forma destrutiva de gestão do trabalho.
Vitor Filgueiras e Sávio Machado Cavalcante
Vitor Filgueiras é auditor fiscal do trabalho,
pós-doutorando em Economia no Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do
Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit); e Sávio Machado
Cavalcante é professor do Departamento de Sociologia (IFCH-Unicamp).
Ilustração: Adão Iturrusgarai
1 Para uma
definição que enfatiza essas características, ver Paula Marcelino e Sávio
Cavalcante, “Por uma definição de terceirização”, Caderno CRH, Salvador, v.25,
n.65, 2012.
2 Para uma
descrição detalhada desses pontos, ver Vitor Filgueiras, “Terceirização e os
limites da relação de emprego: trabalhadores mais próximos da escravidão e
morte”, Campinas, 2014. Disponível em: http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br/2014/08/terceirizacaoe-os-limites-da-relacao-de.html
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