Nasceu a frente de esquerda ordenada na certeza de que o
governo Dilma será aquilo que a rua conseguir que ele seja. E uma voz rouca
avisou: 'Vou à luta'
por: Saul Leblon - http://cartamaior.com.br/
Alguma coisa de muito importante aconteceu no histórico Vale
do Anhangabaú, em São Paulo, nesta sexta-feira, 1º de Maio.
Quem se limitou ao informativo da emissão conservadora
perdeu o bonde.
O tanquinho de areia do conservadorismo, sugestivamente
deixou escapar o principal ingrediente desta sexta-feira, que pode alterar as
peças do xadrez político brasileiro.
Preferiu o glorioso jornalismo cometer pequenas peraltices.
Tipo contrastar a imagem de Lula com um cartaz contra o
arrocho de Levy, como fizeram os petizes da Folha.
Blindagens ideológicas e cognitivas ilustram um traço
constitutivo daquilo que os willians
–Bonner e Waack—denominam de ética da informação.
Trata-se de não informar, ou camuflar o principal em
secundário. E vice versa.
Não houve sorteio de geladeira no 1º de Maio da esquerda
brasileira. Mas os assalariados talvez tenham tirado ali a sorte grande – a
mais valiosa de todos os últimos maios.
No gigantesco palco de mobilizações épicas, que reuniu um
milhão de pessoas há 31 anos para lutar por eleições diretas, a história
brasileira deu mais um passo que pode ser decisivo para impulsionar vários
outros nos embates que virão.
Porque virão; com certeza virão.
Essa certeza permeava o Dia do Trabalhador na larga manhã da
sexta-feira no Anhangabaú.
A engrenagem capitalista opera um conflito independente da
vontade de seus protagonistas. A direção que ele toma, porém, reflete o
discernimento histórico dos atores sociais de cada época.
A chance de que o embate resulte em uma sociedade melhor
depende, portanto, de quem assumir o comando do processo.
As lideranças que estavam no Anhangabaú deram um passo
unificado nessa direção.
Que esse movimento tenha escapado às manchetes faceiras
ilustra a degeneração de um aparato informativo que já não consegue se proteger
de suas próprias mentiras.
Os que enxergam no trabalho apenas um insumo dos mercados,
um entre outros, nivelaram a importância do Anhangabaú ao que acontecia no
palanque do Campo de Bagatelle quase à mesma hora.
Lá se espojavam aqueles que com a mesma sem cerimônia
risonha operam a redução do custo da ‘matéria-prima humana’ no Congresso
brasileiro.
Sorteios de carros e maximização da mais-valia compõem a sua
visão de harmonia social, que remete ao descanso da chibata na casa grande em
dia de matança de porco.
Vísceras, os intestinos, eram franqueados então com alguma
generosidade nos campos de Bagatelle pioneiros, em que paulinhos ‘Boca’
vigiavam a fugaz confraternização da casa grande com a tigrada ignara sob sua
guarda.
A mais grave omissão
do ciclo de governos progressistas iniciado em 2003 foi não ter afrontado essa tradição de forma
organizada, a ponto de hoje ser ameaçado por ela.
Porque muito se fez e não pouco se avançou em termos sociais
e econômicos, mas esse flanco ficou em aberto.
O vazio era tão grande que se cultivou a ilusão de que
avanços materiais seriam suficientes para impulsionar o resto por gravidade.
A primeira universidade brasileira, contou Lula no
Anhangabaú, só foi construída em 1920.
Colombo descobriu a América em 1492.
Em 1507, 15 anos depois de chegar à República
Dominicana, Santo Domingo já construía
sua primeira universidade.
A elite brasileira demorou quatro séculos anos para fazer o
mesmo, reverberou Lula.
Tome-se o ritmo de implantação do metrô em duas décadas de
poder tucano em São Paulo.
Compare com a extensão em dobro da rede mexicana, ou a
dianteira argentina, chilena etc.
O padrão não mudou.
O que Lula estava querendo dizer ao povo do Anhangabaú tinha
muito a ver com isso: o desenvolvimento brasileiro não pode depender de uma
elite que continua a dispensar ao povo os intestinos do porco.
O recado para quem não enxerga diferença entre um governo
progressista e a eterna regressão conservadora protagonizada agora pelos
sinhozinhos Cunha, Aécio, Beto Richa, Paulo Skaf... foi detalhado e repisado.
Foi um metalúrgico sem diploma, espicaçou aquele que ocupa a
vaga de melhor presidente do Brasil na avaliação popular, quem promoveu a mais
expressiva democratização da educação brasileira.
Nos governos do PSDB a tradição colonial se manteve.
O sociólogo poliglota não construiu nenhuma universidade em
notável coerência com a obra que traz a sua assinatura como autor e
protagonista: a teoria do desenvolvimento dependente.
Para que serve uma universidade se já não faz sentido ter
projeto de nação?
Lula criou 18 universidades.
Reescreveu na prática a concepção de soberania no século
XXI. Instalou-a na fronteira expandida entre a justiça social, a integração
latino-americana e o fortalecimento dos BRICs.
A nostalgia colonial-dependente, ao contrário, orientou o
ciclo da República de Higienópolis na frugal atenção dispensada à formação de
quadros para o desenvolvimento.
FHC não assentou um único tijolo de escola técnica em oito
anos em Brasília.
Para que escola técnica se a industrialização será aquela
que o livre comércio da ALCA permitir?
Juntos, Lula e Dilma fizeram 636 até agora.
Com o Prouni, o número de jovens matriculados nas
universidades brasileiras passou de 500 mil para mais de 1,4 milhão.
Em vez de herdar as vísceras da sociedade, tataranetos de
escravos, índios e cafuzos, cujos pais muitas vezes sequer concluíram a
alfabetização, começaram a ter acesso a uma vaga no ensino superior pelas mãos
do metalúrgico e da guerrilheira mandona.
Sim, tudo isso é sabido. A ‘novidade’ agora é desfazer do
sabido.
Mas Lula somou ao histórico a estocada que calou fundo no
silêncio atento do Anhangabaú.
O retrospecto do ex-presidente cuja cabeça é solicitada a
prêmio a empreiteiros com tornozeleira prisional, tinha por objetivo desnudar o
escárnio embutido no projeto de redução da maioridade penal.
As elites agora, fuzilou um Lula mordido e determinado,
querem se proteger do legado criminoso de cinco séculos, criminalizando a
juventude pobre do país.
Passos significativos foram dados em seu governo para minar
a senzala que ainda pulsa no metabolismo da sociedade brasileira.
Mas a voz rouca machucada atesta o golpe por haver se
descuidado do embate que viria contra aqueles que mostravam os caninos como se
fosse sorriso.
Agora se vê, eram maxilares de feras.
À primeira turbulência do voo incerto e instável da dinâmica
capitalista o sorriso virou mordida de pitbull.
A pressão coercitiva mobiliza diferentes maxilares: o do
juiz em relação aos suspeitos da Lava
Jato que visa a jugular do PT e do pré-sal; o do ajuste recessivo que ameaça
com o caos; o da terceirização que coage
com o desemprego maciço; o da exigência branca à renúncia de Lula a 2018 --ou
arcará com a suspeição perpétua que a lixeira da Abril e da Globo despeja
semanalmente no aterro mental da classe média.
Coube ao presidente da CUT, Vagner Freitas, marcar a ruptura
com a omissão histórica que abriu o flanco da história brasileira ao jogral
espoliador da democracia e da sociedade.
Didático, habilidoso, o líder sindical chamou um a um os
representantes das centrais, movimentos e partidos presentes no 1º de Maio do
Anhangabaú.
Aos olhos de milhares de pessoas, gente do povo basicamente,
uns que vieram porque são organizados --
outros, porque pressentem que um perigo ronda o Brasil nesse momento, Vagner
materializou o passo seguinte há muito esperado e cobrado por todos aqueles que
sabem o motivo pelo qual o governo Dilma hoje engole os sapos que rejeitava
ontem.
A avalanche intimidadora que em poucos meses virou de ponta
cabeça o programa vitorioso em 26 de outubro não cessará, a menos que a detenha
uma frente política de abrangência e contundência maior que a resistência
dispersa das partes nos dias que correm.
Foi essa mutação que o vale do Anhangabaú assistiu nesse 1º
de Maio.
O presidente da CUT chamou para a frente do palco os
dirigentes da Intersindical e da CBT, chamou Gilmar, do MST, chamou Boulos, do
MTST, e outros tantos; e através deles convocou quase duas dezenas de
organizações presentes.
Vagner apresentou ao Anhangabaú a unidade da esquerda
brasileira em torno de uma linha vermelha a ser defendida com unhas e dentes: a
fronteira dos direitos, contra a direita.
Fez mais que retórica, porém.
Submeteu ao voto dos ocupantes da praça e do palco uma
agenda de lutas.
Devolveu ao 1º de Maio a identidade de uma assembleia
popular de quem vive do seu trabalho.
Braços erguidos, o Anhangabaú aprovou uma contraofensiva ao
cerco conservador.
‘Anote’, disse Vagner ao final dos escrutínios: dia nacional
de protesto em 29/05, para pressionar o Senado a rejeitar o PL 4330; uma greve
geral, caso o Congresso aprove a medida; e uma marcha a Brasília para levar
Dilma a rejeitar o projeto, caso passe no Senado.
Engana-se quem acredita que isso saiu de graça.
Vagner Freitas uniu as forças da esquerda porque a CUT, a
partir de agora, comprometeu-se a lutar lado a lado, unida aos demais
movimentos e organizações, contra projetos de lei que arrochem direitos e
conquistas dos trabalhadores.
Foi um realinhamento do desassombro com a responsabilidade
histórica da esquerda que fez desse Dia do Trabalhador uma singularidade capaz
de produzir outras mais.
Em boa hora.
A crise econômica vai se agravar nos próximos meses; esse
era o consenso subjacente à união selada no palanque.
O conservadorismo saltará novos degraus em direção ao golpe
–seja na forma do impeachment ou na tentativa de proscrever o PT e com ele as
chances eleitorais do campo progressista em 2018.
O êxito do ajuste recessivo do ministro Joaquim Levy depende
do desajuste do emprego e da expropriação dos ganhos reais de salários
acumulados nos últimos anos (de 70% no caso do salário mínimo)
Estamos na primeira volta do torniquete.
Mas a renda real do trabalhador já registrou uma perda da
ordem de 4% em março, em relação a igual período de 2014.
A evolução do desemprego não é menos cortante.
Os dados reunidos em nota técnica da Fundação Perseu Abramo
são claros: vive-se uma escalada.
A taxa desemprego medida pelo IBGE subiu forte nas grandes
capitais em março: 6,2%.
Era de 5,9% em fevereiro; 5,3% em janeiro; 5% em março de
2014
Despejar a conta do ajuste nas costas do assalariado
significa submeter o custo do trabalho à pressão de uma turquesa feita de
desemprego e queda do poder de compra.
Espremidos, os assalariados serão convocados a apoiar falsas
promessas de desregulação redentora de vagas, a exemplo do PL 4330.
Na semana passada o Banco Central elevou em mais meio ponto
a taxa de juro, que já é a mais alta do planeta.
É a senha do choque.
Apenas essa pisada custará mais R$ 12 bilhões em 12 meses
aos cofres públicos: juros adicionais sobre uma dívida pública de R$ 2,4
trilhões.
O impasse está contratado.
De um lado, a recessão derruba a receita e o emprego; de
outro, o governo é intimado a carrear mais recursos escassos à ração gorda dos
rentistas.
Menos receita com mais gastos.
Essa é a fórmula clássica para tanger um governo –qualquer
governo que não disponha de uma hegemonia baseada em ampla organização popular--
ao precipício das privatizações saneadoras e dos cortes de programas e
investimentos devastadores.
Quem acha que a ganância será saciada com a terceirização
deveria informar-se sobre as novidades no mundo do trabalho inglês.
Sob o comando de engomados filhotes de Tatcher a economia
britânica experimenta um novo patamar de flexibilização do mercado de trabalho.
A modalidade just-in-time já caracteriza 2,5% da mão de obra
empregada, informa o jornal El País, sendo o segmento que mais cresce na economia.
A pedra filosofal desse novo assalto à regulação trabalhista
é o vínculo empregatício baseado em salário zero.
Em que consiste a coisa notável?
Consiste em estocar mão de obra às custas da própria mão de
obra.
Quando necessário aciona-se o almoxarifado social pagando
apenas as horas efetivamente usadas do ‘insumo’.
Marx, você não entendeu nada de baixar o custo de reprodução
da mão de obra.
Em vez da CLT, um taxímetro.
No futuro a metáfora poderá assumir contornos reais mais
sofisticados, como um chip subcutâneo que permita monitorar o empenho muscular
para seleção dos mais aptos.
Esse, o admirável
mundo novo descortinado do palanque do Campo de Bagatelle no 1º de Maio
de 2005 pelos sorridentes perfis de Cunha, Aécio e Paulinho ‘Boca’, da Força.
Afrontar esse horizonte em marcha é o que ultimou a união da
esquerda no extremo oposto da cidade no mesmo dia.
Tolice supor que centrais paralelas à CUT, como a Intersindical,
ou o aguerrido Guilherme Boulos, prestar-se-iam a uma cenografia unionista
alegórica no Dia do Trabalhador.
O que se assistiu no Anhangabaú foi o nascimento de um
pacto.
Que tem agenda e eixo de luta ancorados no entendimento de
que o governo Dilma será aquilo que a rua conseguir que ele seja.
Não desobriga a Presidenta de honrar compromissos de
campanha, a começar pela rejeição ao vale tudo do PL 4330.
Mas divide o desafio da coerência.
Construi-la requer uma nova correlação de forças indissociável
de uma frente ampla progressista.
Quem mesmo assim continua a duvidar da determinação pactuada
no legendário Anhangabaú, deve ouvir (abaixo) a íntegra do pronunciamento
visceral do mais aplaudido orador do dia.
Lula fechou o ato com um aviso à direita buliçosa.
Essa que ao mesmo tempo o desdenha como líder morto, mas
oferece a liberdade como recompensa ao pistoleiro capaz de alvejá-lo com uma
denúncia mortal.
Qual?
Qualquer denúncia. Desde que impeça a assombração das elites
de reaparecer como candidato em carne e osso em 2018.
No 1º de Maio de 2015, a voz do fantasma ecoou mais rouca e
forte que nunca.
Para dizer ao conservadorismo golpista, antinacional e anti-trabalhador:
o ectoplasma não vai esperar até 2018.
‘Vou correr o Brasil, vou me encontrar com trabalhadores,
com jovens, operários, camponeses e empresários...’
‘Eu aceito o desafio’, disparou a voz rouca, ferida,
ressentida, mas convencida de que ainda tem uma tarefa incontornável a cumprir
no país: terminar o que começou, tarefa que o mercado sozinho jamais o fará.
Cunha, Aécio, Skaf não se iludam com o noticiário generoso
dos petizes da Folha.
Algo mudou no Brasil neste 1º de Maio de 2015.
E não foi apenas o preço do aluguel do sindicalismo de
Bagatelle.
Ouçam a fala de Lula no Anhangabaú: aqui
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