De
novo agora todos os latidos, mandíbulas, miras, gatilhos, patas, línguas
espumosas, risos gordurosos, emboscadas e dardos convergem em sua direção.
por:
Saul Leblon / www.cartamaior.com.br
Um
juiz estala os dedos, a ordem se propaga pelo dispositivo midiático
conservador.
A
ordem é disseminada por um colunista especializado na arte dos ganidos
demarcatórios.
‘(O
juiz) acha que dá para pegar ele’, uiva entre espasmos de ansiedade e
sofreguidão.
A
mensagem ganha diferentes versões no dispositivo midiático.
Contra
Getúlio, Juscelino e Jango era Lacerda principalmente quem dava a cadência das
senhas golpistas.
Lacerda
agora é o jornalismo; os colunistas, em especial, seu autofalante mais
exclamativo.
Ao
‘salve geral’ narrativas são adaptadas ao sotaque de cada público específico.
Desde a mais crua, às colunas especializadas em dizer o mesmo com afetação
pretensamente macroeconômica ou jurídica.
A
mensagem é a mesma: ‘Dá para pegar ele’.
‘Ele’
é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser pendurada no espaço central da parede
onde já figuram outras peças
embalsamadas pelos taxidermistas a serviço da caçada ininterrupta do
conservadorismo na história do país.
Mas
falta a dele, uma cobiça acalentada pelos quase dez anos que remontam a 2005/
2006.
‘Ele’?
Lula.
O
metalúrgico que ascendeu ao posto de maior líder político do país desde Getúlio
Vargas, e cuja morte política já foi uivada pela matilha um sem número de
vezes.
De
novo agora todos os latidos, mandíbulas, miras, gatilhos, patas, línguas
espumosas, risos gordurosos, emboscadas e dardos convergem em sua direção.
Mas
há uma novidade na sofreguidão dos latidos.
Erros
cometidos em inéditos doze anos de poder do maior partido de trabalhadores da
América Latina, emergiram com força do chão movediço da crise mundial, contra a
qual os recursos da resistência do Estado brasileiro se esgotaram.
O
problema principal não é o ajuste que sucedeu a isso.
Não
é Dilma.
Seu
governo, a composição, a política em curso refletem um flanco anterior mais
grave que pode ser sintetizado no distanciamento orgânico entre ‘a caça’ e seu
imenso entorno popular.
É
esse distanciamento que o ajuste em curso espelha, ao mesmo tempo em que age
para aprofunda-lo.
E
é ele também que explica os ganidos em decibéis crescentes, o cheiro forte de
urina demarcando o território conquistado no avanço ininterrupto do tropel.
Mas
não sem dificuldade.
O
ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de brasileiros da
pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de renda.
A
inclusão foi tão expressiva que sob a cortina de fogo impiedosa do monopólio
midiático há quase uma década, acuado, ferido e enxovalhado noite e dia, sem
espaço de resposta, Lula ainda figura como o nome que parte com 25% dos votos
nas sondagens da corrida presidencial para 2018, contra 35% de Aécio Neves.
Mas
a direita sabe que isso é pouco para ele reverter.
Com
acesso diário à tevê hoje sonegado, ao rádio e ao debate num cenário econômico
que dificilmente será pior do que o atual, os dez pontos da vantagem do tucano
– segundo o Datafolha -- podem derreter em questão de dias.
Então
é preciso liquidar a fatura hoje. Agora. Na janela de oportunidade entre o
vácuo orgânico criado em torno da presa e a próxima temporada de imersão no
oceano popular.
‘(O
juiz) acha que dá para pegar ele’, telegrafa o colunista que alardeia
intimidades com a caçada e objetivamente compõe o galope.
A
disjuntiva ‘combate à corrupção’ versus ‘ impunidade’ serve para aspergir
legalidade ao tiro ao alvo em marcha que busca a cabeça encomendada para
figurar na parede dos abates ilustres de Getúlio, Jango, entre outros.
Passar
a limpo a política brasileira?
Fosse
essa a motivação a força-tarefa que hoje se esfalfa em caçar Lula cerraria
fileiras para criar travas à presença do dinheiro grosso nas campanhas
eleitorais.
Promoveria
uma reforma capaz de dificultar siglas caça níqueis. Endossaria o clamor por
uma democracia mais aberta à participação da população, ora resumida ao
comparecimento esporádico às urnas.
Não,
não é esse o objetivo.
A
reforma de Cunha, talhada à sua imagem e semelhança, sacramenta a causa do
apodrecimento da política e afastar o eleitor das decisões por intervalos
maiores.
Ah,
mas Lula fez lobby por empresas brasileiras...
Sim.
E nisso o senador Roberto Requião foi definitivo enquanto os senadores do PT
balbuciavam evasivas:
‘Criticam
o Lula por trabalhar a favor de empresas brasileiras; elogiam o Serra por querer entregar nosso
petróleo a empresas estrangeiras’, fuzilou, tiro seco e letal, o bravo
parlamentar.
O
país precisa de uma macroeconomia mais consistente?
Por
certo.
Mas
qual?
A
dos sábios tucanos, reunidos no departamento econômico do Itaú, o BC do PSDB?
Ou aquela recauchutada na Casa das Garças, com os mesmos ingredientes de
sempre. Desregulação do mercado de trabalho e livre comércio, em linguagem
acadêmica. Ou para ser um tanto mais direto: arrocho e entreguismo.
'O
trade-off é mais liberalismo em troca de
mais redistribuição', preferem os senhores elegantes de gravata italiana.
Pergunte-lhes
onde foi que isso aconteceu?
Na
Espanha? Na Grécia? Em Portugal? Nos EUA? Ou na Inglaterra, onde a gororoba é
aplicada desde Thatcher (Blair incluso), e 250 mil foram às ruas no último
sábado contra cortes em programas sociais promovidos pelo engomadinho Cameron (37% dos votos em escrutínio com
abstenção de 40%)?
Menos
Estado em troca de mais distribuição?
Então
por que o motor da economia mundial engazopou e não pega nem com o tranco de
liquidez de trilhões de dólares despejados pelo Fed e, agora, pelo tardio BCE?
Trinta
anos que não se faz outra coisa a não ser desregular mercados urbi et orbi, e
as grandes corporações mundiais estão sentadas em trilhões de dólares de
liquidez.
Não
investem.
Quem
diz é a OCDE, não propriamente um organismo bolchevique.
A
produtividade patina e grandes corporações dos EUA já destinaram US$ 903
bilhões este ano à recompra das próprias ações ou a dividendos milionários
pagos à república dos acionistas, invertendo-se a destinação majoritária do
lucro que deveria expandir o investimento produtivo.
O
que falta para lubrificar a engrenagem emperrada?
Falta
o que o Brasil tem, mas a boa ‘ciência econômica’ aqui -- com o incentivo do
bravo jornalismo econômico -- acha indispensável liquidar: mercado de massa,
horizonte de demanda, distribuição de renda, de bens e de infraestrutura.
A
desregulação do mercado de trabalho e a destruição do pleno emprego -- vendidas
como o clorofórmio capaz de combater as impurezas da macroeconomia
lulopopulista, explicam no plano mundial por que essa
é a mais longa, frágil e incerta convalescença de todas as crises
capitalistas, desde 1929.
O
massacre da desregulação do trabalho, na fórmula consagrada de empregos
desqualificados, salários baixos e atrofia sindical, foi contrabalançado pelo
inchaço do crédito nas últimas décadas.
Famílias
assalariadas – a exemplo de Estados desidratados pelas reduções de impostos
—foram buscar no endividamento aquilo que o emprego e a receita fiscal não mais
proporcionavam.
Empréstimos
às famílias cresceram três vezes mais rápido que o PIB no último meio século nos
países ricos, diz a OCDE.
Criou-se
uma contradição nos seus próprios termos: crédito em volume cada vez maior a
tomadores cada vez mais descapacitados a pagá-lo.
Daí
para as sub-primes que acenderam o pavio da explosão mundial era uma questão de
tempo.
Quando
o balão de oxigênio creditício travou, em 2008, sobrou o deserto do real.
Um
imenso areal de mão de obra subempregada, trabalhadores em tempo parcial,
dezenas de milhões de famílias endividadas, outros tantos milhões de lares sem
condições sequer de prover o próprio sustento.
O
mundo talhado pelo cinzel neoliberal abarca hoje mais de 200 milhões de
desempregados –30 milhões adicionados só nesta crise; a fome está de volta à
Europa; uma em cada quatro crianças vive em meio à pobreza na Inglaterra onde
Cameron acaba de cortar mais 12 bilhões de libras dos programas sociais; 46
milhões de norte-americanos só comem com ajuda do governo, mas o Congresso
neoliberal desautoriza Obama a elevar o salário mínimo, agora inferior ao da
era Reagan.
Por
isso a OCDE lamenta o onanismo de um capital que se autossatisfaz ejaculando
com a recompra das próprias ações e distribuindo lucros celibatários a acionistas e diretores rentistas.
É
essa a eficiência estratégica que se persegue?
Um capitalismo que patina no próprio esperma, apartado da reprodução,
alijado de ferramentas de Estado e de poder social para reconduzi-lo às
finalidades sociais do desenvolvimento?
Os
dados na mesa são claros.
Não
há muito tempo para agir, nem são tantas as opções assim.
Há
até algum consenso entre o mercadistas sensatos e a visão progressista.
Ambos
concordam que o país vive o esgotamento de uma dinâmica econômica.
Há
razoável convergência em relação ao motor que deve puxar o novo período: o
investimento produtivo, um impulso industrializante liderado pelo pré-sal; os
grandes projetos de infraestrutura.
Termina
o espaço dos consensos.
O
conservadorismo avalia que o legado recente é incompatível com o futuro
desejado. Para nascer o ‘novo’ é preciso destruir o ‘velho’.
Parece
schumpeteriano, é udenista puro.
A
supremacia financeira deve purgar todo e qualquer vestígio de interesse
nacional, público e social no manejo da economia.
O
alvo da caçada, Lula, embolou tudo na última década.
Fortemente
ancorada na ampliação do mercado de massa, a economia avançou apoiada em
ingredientes daquilo que a emissão conservadora denomina ‘Custo Brasil’.
Um
exemplo das dificuldades a retardar o avanço da matilha nessa frente?
A
formalização da mão de obra.
Hoje
ela encarece sobremaneira o lacto purga das demissões em massa, atrasando a
purificação do metabolismo econômico.
O
PSDB deixou o país com uma taxa de informalidade do emprego de 43,6%.
No
ano passado esse percentual era de 29,5%.
Para
demitir um operário com registro em carteira é preciso pagar todos os direitos
legados por Vargas.
Eles
foram limados parcialmente pela ditadura, mas fortalecidos na prática pelo
ciclo de pleno emprego propiciado em 12 anos de governos do PT (que pegou o
país com um desemprego tucano superior a 9%, quase 10% em 2003; cortou isso à
metade).
É
disfuncional. Custa caro faxinar a folha de pagamentos pós-PT.
Pior:
ao recontratar, enfrenta-se o piquete de uma década de investimento para
democratizar a educação.
Foram
oito milhões de vagas do Pronatec e 1,6 milhão de vagas do Prouni e do Fies.
O
avanço educacional barra o retrocesso significativo nas relações de trabalho: o
jovem qualificado recusa a informalidade e o salário arrochado.
É
preciso pendurar a cabeça do responsável por isso na parede; impedi-lo de
retornar à Presidência ou o mercado não completará o longo ciclo de detox
neoliberal requerido.
‘(O
juiz) acha que dá par apegar ele’.
Essa
é a determinação serviçal da Lava Jato, cuja mão de obra não se inibe em
paralisar o país para entregar o serviço.
A
paralisia do sistema econômico, na verdade, é um plus que acompanha o pacote e
ajudar a acuar a caça.
O
resto é farofa ética expressa no inimputável conforto desfrutado pelas
lambanças do PSDB.
Romper
o cerco dessa determinação canina exige coragem política de negociar o futuro
do país com quem ainda quer conversar
sobre soluções coletivas -- até para tornar compreensível e tolerável as
restrições do presente, que são reais.
Ou
o campo progressista se une e mexe no tabuleiro do xadrez com as peças
dispostas a permanecer no jogo democrático, e de lance em lance altera a
rigidez das demais, ou ele próprio será tomado pela rigidez cadavérica que vai
tomando conta do metabolismo econômico.
Lula
criou um novo personagem histórico: o mercado de massa ancorado no pleno
emprego formalizado.
Os
novos protagonistas formam hoje a maioria da sociedade.
Mas
ainda não constituem um protagonista histórico capaz de assumir o comando do
desenvolvimento e do país, o que explica o seu distanciamento em relação à
caçada em curso.
É
um pouco esse paradoxo que espeta no governo a angustiante dubiedade de um
refém de si mesmo.
Cria,
também, a angustiante dissociação entre o gesto e o seu efeito.
Entre
o apelo e o seu desdobramento.
Nesta
2ª feira, Lula, ‘a caça’, evocou a necessidade de uma revolução no PT, ‘para
salvar nosso projeto, não a nossa pele’.
Nada.
Em
diferentes momentos da história recente, mas sobretudo após a morte traumática
do candidato do PSB à presidência, Eduardo Campos, em agosto do ano passado, o
projeto progressista esteve emparedado, a ponto de muitos darem o jogo como
perdido.
No
final de agosto, o aluvião conservador era tão denso que expoentes do colunismo
conservador degustavam precocemente a derrota irreversível do ‘lulopetismo’.
Em
duas frases, Lula esquadrejou a areia movediça então e identificou um pedaço de
chão firme onde instalar a alavanca da reação (bem sucedida, como se
sabe): ‘Temos que demarcar o campo de
classe dessa disputa: é preciso levar a política à campanha’.
Se
tivesse incorporado à evocação o debate de ajustes pontuais na economia, o
eleitor provavelmente entenderia –desde que isso se fizesse acompanhar de
salvaguardas, prazos e contrapartidas.
Um
pouco o que o Syriza busca agora na Grécia para não ser cuspido do euro, nem
lixiviar ainda mais uma sociedade escalpelada.
Errou
o PT ao não fazê-lo.
Erra
em dobro agora, ao insistir em terceirizar um ajuste necessário, mas que só
resultará em reordenação progressista do desenvolvimento se for pactuado com os
que precisam genuinamente apostar na democracia social brasileira.
Os
riscos intrínsecos a uma decisão de renegociar o pacto do desenvolvimento não
são maiores do que o caminho adotado agora.
A
aposta na indulgência dos mercados levou o governo a uma ponte sem pilares que
desembocou em um labirinto de areia movediça.
Em
certa medida, é como se o PT desconfiasse da capacidade de engajamento do
protagonista político que ajudou a revelar.
O
criador escapou à criatura.
Ou
dito de forma mais racional: é viável enfrentar as contradições de um ciclo de
desenvolvimento como o atual, sem estreitar os canais de organização e
comunicação com a principal força capaz de sustentar a continuidade do
processo?
A
matilha late cada vez mais perto.
Contra
a voracidade excitada pela silhueta da presa há resposta.
Talvez
a única resposta nas horas que correm.
A
unidade de ação do campo progressista e a determinação política inabalável de
não escamotear a colisão de interesses em jogo. ‘Trata-se de salvar um projeto,
não cargos’. A ver.
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