Pouquíssimos têm uma trajetória
tão 'coerente': em nenhum momento não esteve cercado de denúncias e sempre
esteve ao lado de figuras de ética duvidosa...
Eric Nepomuceno – www.cartamaior.com.br
Júlio Camargo é uma dessas
estranhas figuras que perambulam nos bastidores dos grandes negócios. Ora é
considerado empresário, ora é chamado de consultor. Desde que foi preso e
recorreu ao que se chama formalmente de ‘colaboração’ com a Justiça, passou a
ser chamado simplesmente de ‘delator’. E foi nessa condição, a de delator, que
ele contou ao juiz de primeira instância Sérgio Moro como pagou cinco milhões
de dólares (porque nas esferas estratosféricas em que ele atua ninguém mexe com
outra moeda que não seja a norte-americana) ao deputado federal Eduardo Cunha,
do PMDB, atual presidente da Câmara.
Um colaborador chamado de delator
é exatamente isso: delator. O que ele diz tem de ser necessariamente provado
por investigações policiais e, ao menos em teoria, caso se comprove que mentiu,
perderá os benefícios assegurados pela lei, e que vão de diminuição da pena que
poderia ser sentenciada até sua absolvição. Bem: ao menos em teoria porque
outro delator contumaz, o corretor ilegal de divisas Alberto Yousseff, também
chamado de cambista ou doleiro, mentiu à vontade em delações premiadas
anteriores e não aconteceu nada com ele. Tanto assim, que continuou agindo como
sempre, e agora continua delatando à vontade.
A serenidade com que Júlio
Camargo mencionou seus encontros com Eduardo Cunha pode parecer convincente.
Além disso, corre a informação de que ele viajou para o Rio de Janeiro,
devidamente acompanhado por procuradores do ministério Público, e visitou cada
endereço onde, segundo sua delação, foi entregue dinheiro a Eduardo Cunha ou
seus representantes. Mas, ainda assim, é preciso obter provas concretas.
Eduardo Cunha reagiu da maneira
habitual, ou seja, negando e negando. Acusou o procurador-geral de República,
Rodrigo Jannot, de perseguição sistemática. E exigiu respeito.
Nisso, ele tem razão. Basta
recordar sua trajetória política para confirmar que merece, sim, muito
respeito. Afinal, pouquíssimos, no atual cenário brasileiro, já tão vexaminoso,
têm uma trajetória tão coerente como ele: em nenhum momento de sua carreira,
iniciada em 1986, Cunha deixou de estar ao lado de figuras no mínimo duvidosas
no que se refere à ética e à integridade. E em nenhum momento deixou de estar
cercado por aluviões de denúncias de irregularidades de todos os tipos e
calibres.
Ele era jovem – tinha 28 anos –
quando foi ajudar o sinistro Wellington Moreira Franco, do PDMB, a se eleger
para governar do Rio de Janeiro, derrotando o candidato do então governador
Leonel Brizola, do PDT. Esse candidato era Darcy Ribeiro, que junto com Brizola
havia implantado aquele que poderia ter sido o mais revolucionário projeto de educação
pública não só do Rio, mas do Brasil, os CIEPs. Foi uma das campanhas mais
sórdidas e mentirosas desde a retomada da democracia no país, e teve, entre
seus pilares principais, a decidida colaboração das Organizações Globo. Seu
proprietário, Roberto Marinha, tinha uma ojeriza pessoal contra Brizola e tudo
que ele representasse.
Três anos depois, Cunha atendeu a
um convite de Paulo César Farias, e ingressou no Partido da Reconstrução
Nacional, o PRN que elegeria Fernando Collor de Melo presidente do Brasil. Foi
ele, Cunha, o tesoureiro da campanha de Collor de Melo no estado do Rio de
Janeiro. Mostrou-se tão eficaz que acabou sendo convidado para integrar a
equipe econômica da então ministra Zélia Cardoso de Mello.
Por alguma razão (talvez uma intuição
especialmente sensível), preferiu não aceitar o convite. Em 1991, veio a
segunda – e essa sim, irrecusável – chance: indicado por PC Farias, assumiu a
presidência da Telerj, a companhia telefônica pública do Rio de Janeiro. Foi
sua grande estreia no mundo dos negócios e negociatas.
É verdade que o Tribunal de
Contas da União detectou um sem fim de irregularidades, especialmente um
escândalo que beneficiou largamente uma fabricante de celulares, a NEC do
Brasil, cujo proprietário, na época, era o mesmo Roberto Marinho de sempre. De
repente, os caviares do oficio viraram ossos: em 1993, Itamar Franco, que havia
substituído Collor de Melo depois de seu impeachment, expeliu Eduardo Cunha do
comando da Telerj.
No ano seguinte, Cunha virou
evangélico, e começou a atuar no rentabilíssimo ramo das rádios controladas
pelas seitas dos pastores eletrônicos, que começavam a se multiplicar com a
velocidade dos coelhos e a avidez gananciosa dos exploradores da miséria
humana.
Já evangélico de profunda convicção,
em 1999 ele foi contemplado por outra figura – digamos assim – polêmica, o
então governador do Rio Anthony Garotinho. Elevado ao comando da Companhia
Estadual de Habitação, durou pouco mais de seis meses.
Apesar de novamente expelido por
marés de denúncias de irregularidades, confirmadas pelo Tribunal de Contas do
Estado em 2001, ele conseguiu manter-se muito próximo a Garotinho. E naquele
mesmo ano deixou de ser suplente, graças a manobras do governador amigo, para
ocupar uma cadeira na Assembleia Estadual.
Foi o primeiro passo para, dois
anos depois, e já de partido novo – o mesmo PMDB que, mantendo sua tradição,
aceita qualquer coisa – se eleger deputado federal.
Sagaz, soube se tornar líder e
protetor do chamado baixo clero, e passou a ser elemento imprescindível na hora
de captar doações de grandes empresas para financiar candidatos de trajetória
nula ou insignificante que, uma vez eleitos, são de uma fidelidade bíblica ao
seu protetor.
São notórias as posições, mais
que conservadores, francamente reacionárias de Eduardo Cunha. Há quem o
considere um elemento melífluo, diabólico, daninho ao país.
Ainda assim, é preciso
respeitá-lo. Afinal, mesmo num cenário coalhado de sacripantas, são poucos os
que podem ostentar uma trajetória tão coerente como a dele. Não há um único
momento de sua carreira em que não tenha estado cercado de seus semelhantes.
Inventado por PCFarias, protegido
por Collor de Melo, acabou tendo nas mãos um poder imenso. É ou não é uma
figura impressionante?
Créditos da foto: Alex Ferreira/
Câmara dos Deputados
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