Acima, queimadas à beira da BR 364 em agosto de 2013, durante a apuração do livro-reportagem. Foto: Gerardo Lazzari/Editora Elefante.
Silêncio, chá de
sumiço, amnésia seletiva e ameaças veladas no caminho de ‘Corumbiara, caso
enterrado’, livro sobre um dos piores conflitos agrários pós-ditadura
por João Peres | http://apublica.org/
Todos lançam olhares
inquisidores sobre o carro. As cabeças descrevem o movimento exato do automóvel
ao passar pelas ruas, ansiosas por saber quem são os forasteiros. Um repórter
barbudo, um fotógrafo argentino, um padre irlandês de rosto vermelho e um
missionário inglês enorme formariam um grupo exótico em quase todos os lugares
do mundo. Em Vista Alegre do Abunã, um distrito minúsculo de Porto Velho, em
Rondônia, são uma aberração.
A tensão que
acompanha jornalistas em apurações sobre questões agrárias na Amazônia é
grande. No geral, vai-se a locais com baixa presença institucional do Estado e
com uma cultura de violência e ajustiçamento. O Brasil é um dos países com
piores índices de assassinato de profissionais de imprensa, segundo ranking
elaborado anualmente pela organização Repórteres Sem Fronteiras. Ter escolhido
um caso ocorrido numa frente nova de desmatamento para começar a apuração que
resultaria no livro Corumbiara, caso enterrado (Editora Elefante, 2015) não foi
uma decisão prudente.
Na realidade,
qualquer um que chegasse de fora chamaria atenção. Qualquer um que viesse
querendo saber desse assunto. Faz quase dois anos que tudo ocorreu. A cerca por
onde escorreu o sangue de Adelino Ramos é a única testemunha dos fatos. Ninguém
quer abrir a boca. Ao longo do dia, jogam-nos de um lado para o outro, sem
fornecer informações sobre quem pode ter encomendado a morte de Dinho. Líder do
Projeto de Assentamento Florestal (PAF) Curuquetê, a poucos e pedregosos
quilômetros daqui, no sul do Amazonas, ele foi assassinado num domingo do final
de maio de 2011.
Cerca de um mês
antes, havíamos conversado por telefone, num intervalo de poucos minutos em que
havia sinal de celular. “A gente defendeu um projeto inovador no país, que é o
assentamento florestal comunitário, e é esse em que a gente está. Então, onde
há matança de gente, onde há roubo de barreiras, no estado do Amazonas… tudo
que sai do Amazonas sai para Rondônia”, contou. Adelino já estava encrencado.
Agora, em fevereiro
de 2013, sob o calor abrasador do noroeste rondoniense, espreitávamos sabendo
que éramos espreitados. Vista Alegre é um dos muitos distritos de Porto Velho,
uma das maiores capitais do país. Como vários dos povoados de Rondônia, tem um
só caminho para entrar, sair ou fugir, especialmente se não se está a bordo de
uma picape. Dali a dez quilômetros, em linha reta para o Norte, está o
Amazonas, e dali a quinze, para o Sul, fica a divisa com a Bolívia. Entre um
lado e outro, madeira nobre sendo transportada à luz do dia, em cinco mil
viagens de enormes caminhões em direção ao Sudeste, segundo contabilidade
apreendida em poder dos “donos” da área.
A Polícia Federal e
o Ministério Público Federal investigavam havia quase três anos um esquema de
loteamento ilegal de terras da União convertidas em área de desmatamento. “É
terra sobre terra. Ninguém é dono. Com a instalação do assentamento Curuquetê,
isso começou a criar um impasse entre o pessoal que já estava lá. Como ninguém
tem título, o assentamento era um risco para eles”, contou um agente federal
envolvido na investigação. “A gente percebia que aquela situação estava
insustentável e poderia desaguar em alguma outra coisa. Não achava que podia
desaguar em crimes contra a vida.” Só depois da morte de Adelino a Justiça
Federal autorizou que se realizasse uma operação contra o corte ilegal da
floresta.
Logo após o crime, a
Polícia Civil anunciou a prisão de Osias Vicente, envolvido com madeireiros
locais, acusado de matar Adelino. Mas, até o fim do ano, o Ministério Público
Estadual não havia oferecido denúncia. Uma história sem um pingo de
originalidade: o Judiciário libertou o suposto matador, que um mês depois
acabou assassinado, o que levou ao arquivamento do caso sem que se chegasse aos
mandantes do crime contra o líder sem-terra.
Sem colher bons
resultados em Vista Alegre, fomos até Extrema, outro distrito de Porto Velho,
onde Adelino foi atendido após os disparos. “No caminho para Extrema, um carro
ficou fechando eles, não deixou correr. Até hoje ninguém soube me dizer que
carro que era. Nem a placa”, contou mais tarde um amigo da família que também
não conseguiu arrancar informação alguma sobre a morte. A ficha de atendimento
é lacônica: óbito provocado por perda de sangue. No posto policial, o boletim
de ocorrência sobre Adelino é o maior da unidade: uma pilha de meio metro de
papel depositada entre duas cadeiras. Um dos escrivães – são dois no total,
respondendo por quatro distritos – não dá esperança de que a investigação
avance. São muitos casos para cuidar e a estrutura é extremamente precária.
No começo, não
sabíamos se dormiríamos em Vista Alegre. Depois do clima tenso com que nos
deparamos, não resta dúvida de que o mais seguro é retornar ao centro de Porto
Velho, para decepção do padre irlandês Bernard Leo Dolan, amigo da família de
Adelino que esperava retornar com algo mais. É, de fato, um começo de viagem
ruim.
Entre 2013 e 2014,
quase sempre na companhia do fotógrafo Gerardo Lazzari, percorro Rondônia para
tentar entender as histórias que envolvem o chamado “massacre de Corumbiara”,
ocorrido em 9 de agosto de 1995 durante uma operação de reintegração de posse
na fazenda Santa Elina, no sul do estado. Segundo os números oficiais, 12
pessoas morreram – nove sem-terra, dois policiais e um rapaz não identificado,
possivelmente um pistoleiro. Resumindo de maneira simplória, a acusação levou
ao julgamento de dois posseiros e de 12 agentes de segurança. Do lado dos
ocupantes, saíram condenados Cícero Pereira Leite Neto, seis anos e dois meses
de reclusão, e Claudemir Gilberto Ramos, oito anos e meio. Entre os PMs, foram
sentenciados os soldados Airton Ramos de Morais, a 18 anos, e Daniel da Silva
Furtado, a 16 anos, e o então capitão Vitório Régis Mena Mendes, a 19 anos e
meio.
A história de
Adelino, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Corumbiara na
época, é uma entre várias relacionadas ao caso. Fundador do Movimento Camponês
Corumbiara (MCC), de 1995 a 2011 conseguiu assentar muitas famílias, brigou com
amigos e inimigos, zanzou Rondônia de sul a norte, escapou da acusação pelas
mortes ocorridas na Santa Elina. Em Lábrea, no Amazonas, esperava tocar mais um
assentamento. Num lugar improvável. “Não tem condição nenhuma de manter
qualquer atividade produtiva. Não tem terra, não tem água, não tem luz. Tem
todo tipo de problema de malária, febre amarela, bicho peçonhento”, contou um
agente federal.
Nos dias seguintes àquela
busca pouco frutífera por informações em Vista Alegre, os gringos ficaram em
Porto Velho, enquanto Gerardo e eu fomos a Theobroma, no centro do estado, onde
acabaram assentadas entre 1995 e 1996 algumas das famílias do episódio da Santa
Elina. O começo da conversa era quase sempre igual: recebiam-nos com
desconfiança, cara amarrada, incomodados com o assunto. Parecia que daquele
mato não sairia coelho. Até que a pessoa, geralmente homem, começava a se
soltar – e a soltar informações. Nossa cabeça de paulista planejava fazer
várias entrevistas ao dia, ignorando que na roça o tempo é outro, que é preciso
esperar o caboclo escolher o momento certo de falar, criar laços de confiança.
A última parada
prometia ser a mais tensa. Havia um misto de curiosidade e receio por chegar ao
palco dos acontecimentos. Depois de conhecer Vista Alegre, vislumbrávamos algo
parecido em Corumbiara. Não foi o que ocorreu. Ainda que muitos tenham se dado
conta de nossa presença, e até mesmo dos motivos dela, os fatos de 1995 eram
passado para a maior parte das pessoas.
Nas outras vezes, já
sabendo andar sozinhos pela região, vimos situações mais perigosas, mas não
para nós. Na época do conflito, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) não chegou a desapropriar a Santa Elina, operação que retomou
12 anos mais tarde, abrindo uma disputa pelas terras férteis e simbólicas. A
Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, ex-aliada de Adelino, e o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Corumbiara acabaram obrigados a dividir o assentamento.
Basicamente, adversários revolucionários e reformistas foram colocados dentro
de um mesmo espaço. “O povo que não sofreu o massacre com a gente fica
implicando. Tem hora que eu fico revoltado. Ficam pisando na gente. Eu pensava
que a gente era tudo amigo”, contou um homem, sob ameaças de morte por
desentendimentos mesquinhos.
Cansou de tomar
‘não’ pelo telefone? Veio tomar ‘não’ pessoalmente?”, perguntou, muito
irritado.
Sempre deixávamos
Rondônia com a sensação de que seria importante voltar. Os relatos dos
sem-terra eram interessantes, mas repetitivos e insuficientes. Era necessário
entrevistar advogados, promotores, juiz, políticos, integrantes de movimentos
sociais.
Poucas passagens
foram tão desgastantes quanto a conversa com o ex-secretário-executivo de
Valdir Raupp, governador na época do episódio da Santa Elina. Telefonei para
Édio Antônio de Carvalho no começo de 2014. Ele avisou que só conversaria
pessoalmente. Liguei de novo avisando que embarcaria nos próximos dias para
Porto Velho. “O Édio que você está procurando é outro”, respondeu.
Era um sábado de
manhã quando peguei o carro e fui ao condomínio onde morava, nas imediações do
centro de Porto Velho. Por sorte, o esquema de segurança era frouxo e o rapaz
da portaria não anunciou minha chegada. Quando entrei em sua casa, fez uma cara
de surpresa indescritível. “Cansou de tomar ‘não’ pelo telefone? Veio tomar
‘não’ pessoalmente?”, perguntou, muito irritado.
Com o passar dos
minutos, acalmou-se e começou a narrar sua versão. Uma versão diferente da que
está registrada em relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Em
1995, Édio contou a deputados que não se chegou a um desfecho pacífico porque o
fazendeiro Antenor Duarte do Valle, vizinho da área ocupada, rejeitou acordo para
assentar as famílias. Agora, ele culpava os sem-terra, a quem acusou de
intransigência no diálogo, e dizia sofrer de amnésia em relação a pontos
incômodos. O ex-secretário-executivo disse ter recebido ordem para prestar todo
apoio às famílias, desde que aceitassem deixar a fazenda.
No meio da prosa,
criticou o governo do PT, tido como comunista, e afirmou que, no que dependesse
de Lula, Evo Morales teria invadido o Brasil. Queixou-se de não conseguir mais
contratar empregada devido ao Bolsa Família. Enquanto conversávamos, sua mulher
perguntou em que veículo jornalístico eu trabalhava porque queria ler minhas
reportagens para saber se eu era de esquerda. Deixou ameaças no ar. Decidi sair
dali o quanto antes. Meti-me no centro de Porto Velho e fiquei rodando um
tempo, até ter certeza de que não haveria problema.
Em outras
oportunidades, momentos de alta tensão se revelaram calmos. Ou viraram
frustração. Por duas vezes, tentei conversar com os policiais militares de
Vilhena, divisa com o Mato Grosso, sede do batalhão em que atuava a maior parte
dos envolvidos no caso da Santa Elina. Na primeira, um PM esperou que eu
chegasse à cidade para dizer que havia se arrependido e não queria mais
conversar. Outro viajou sem avisar e pediu que aguardasse por uma semana ou dez
dias, até a volta.
Na segunda vez,
depois de uma entrevista animadora, parecia que andava por bom caminho. A
promessa era de que três policiais dariam uma entrevista às 7 horas.
– Oi. O pessoal não
apareceu ainda?, perguntou o PM que havia garantido a conversa.
Passei o dia inteiro
sentado, à espera de que viessem, sempre com promessas renovadas de que estavam
a caminho. Na manhã seguinte, fui ao batalhão. Receberam-me com conversas sobre
amenidades, contaram sobre o bem-sucedido esquema de patrulhamento de ruas de
Vilhena e me despacharam sem contar nada sobre o que queria ouvir. Durante mais
dois dias, busquei por todos os meios conversar com os policiais. Nunca tomei
tanto perdido na vida. Saí de lá puto, sabendo que aquela apuração estava
encerrada.
Era o fim irritante
de um trajeto que começara de maneira tensa. No começo de 2011, entrevistei
Claudemir Gilberto Ramos, sem-terra condenado a oito anos e meio de prisão
pelas mortes de dois policiais vitimados no caso da Santa Elina. Filho de
Adelino, ele se recusava a cumprir a pena, que considerava injusta. Aquela
narrativa, tão cheia de lacunas, foi o que me motivou a entender melhor a
história, contada no primeiro capítulo do livro, compartilhado agora com os
leitores.
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