Roberto Leher, novo reitor da UFRJ,
aponta os impactos da lógica mercantilizada sobre a educação pública e como
grupos financeiros tentam dominá-la.
Luiz Felipe
Abulquerque - Brasil de Fato / www.cartarmaior.com.br
Um
grande negócio. É assim que o novo reitor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, enxerga o novo momento da educação brasileira.
Em
entrevista ao Brasil de Fato, o professor titular da Faculdade de Educação e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ traça um panorama do atual
estágio da educação no Brasil, e as conclusões não são nada animadoras.
Para
Leher, os recentes processos de fusões entre grandes grupos educacionais, como
Kroton e Anhanguera, e a criação de movimentos como o Todos pela Educação
representam a síntese deste processo.
No
primeiro caso, ocorre uma inversão de valores, em que o primordial não é mais a
educação em si, mas a busca de lucros exorbitantes por meio de fundos de
investimentos. No segundo, a defesa de um projeto de educação básica em que a
classe dominante define forma e conteúdo do processo formativo de crianças e
jovens brasileiros.
O
movimento Todos Pela Educação é uma articulação entre grandes grupos econômicos
como bancos (Itaú), empreiteiras, setores do agronegócio e da mineração (Vale)
e os meios de comunicação que procuram ditar os rumos da educação no Brasil.
Para
o professor, o movimento se organiza numa espécie de Partido da classe
dominante, ao pensarem um projeto de educação para o país, organizarem frações
de classe em torno desta proposta e criar estratégias de difusão de seu projeto
para a sociedade.
“Os
setores dominantes se organizaram para definiram como as crianças e jovens
brasileiros serão formados. E fazem isso como uma política de classe, atuam
como classe que tem objetivos claros, um projeto, concepções clara de formação,
de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital humano”,
observa o professor.
Confira
a entrevista:
Brasil
de Fato - Muitos setores denunciam a atual mercantilização da educação
brasileira. O que está acontecendo neste setor?
Roberto
Leher - De fato há mudanças no que diz respeito a mercantilização da educação,
diferente do que acontecia até 2006 no Brasil. Os novos organizadores dessa
mercantilização são organizações de natureza financeira, particularmente os
chamados fundos de investimento.
Como
o próprio nome diz, os fundos de investimentos são fundos constituído por
vários investidores, grande parte estrangeiro, como fundos de pensão,
trabalhadores da GM, bancos, etc, que apostam num determinado fundo, e esse
fundo vai fazer negócios em diversos países.
Em
geral, os fundos fazem fusões, como é o caso da Sadia e Perdigão no Brasil. Mas
é o mesmo grupo que também adquiri faculdades e organizações educacionais com o
objetivo de constituir monopólios.
Esse
processo levou a Kroton e a Anhanguera - fundo Advent e Pátria - a
constituírem, no Brasil, a maior empresa educacional do mundo, um conglomerado
que hoje já possui mais de 1,2 milhão de estudantes, mais do que todas as
universidades federais juntas.
O
que muda com essa nova forma de mercantilização da educação?
O
negócio do investidor não é propriamente a educação, é o fundo. Ele investiu no
fundo e quer resposta do fundo, que cria mecanismos para que os lucros dos
setores que eles estão fazendo as aquisições e fusões sejam lucros
exorbitantes. É isso que valoriza o fundo.
A
racionalidade com que é organizada as universidades sob controle dos fundos é
uma racionalidade das finanças. São gestores de finanças, não são administrados
educacionais. São operadores do mercado financeiro que estão controlando as
organizações educacionais.
Toda
parte educacional responde uma lógica dos grupos econômicos, e por isso eles
fazem articulações com editoras, com softwares, hardwares, computadores,
tablets; é um conglomerado que vai redefinindo a formação de milhões de jovens.
No
caso do Brasil, cinco fundos têm atualmente cerca de 40% das matrículas da
educação superior brasileira, e três fundos têm quase 60% da educação à
distância no Brasil.
Quais
os interesses dessas grandes corporações para além do econômico?
A
principal iniciativa dos setores dominantes na educação básica brasileira é uma
coalizão de grupos econômicos chamado Todos pela Educação, organizado pelo
setor financeiro, agronegócio, mineral, meios de comunicação, que defendem um
projeto de educação de classe, obviamente interpretando os anseios dos setores
dominantes para o conjunto da sociedade brasileira.
Em
outras palavras, os setores dominantes se organizaram para definiram como as
crianças e jovens brasileiros serão formados. E fazem isso como uma política de
classe, atuam como classe que tem objetivos claros, um projeto, concepções
clara de formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em
capital humano.
Em
última instância, é com isso que eles estão preocupados: em como fazer com que
a juventude seja educada na perspectiva de serem um fator da produção. Essa é a
racionalidade geral, e isso tem várias mediações pedagógicas.
A
aparência é de que estão preocupados com a alfabetização, com a escolarização,
com o aprendizado, etc. E de fato estão, mas dentro dessa matriz de classe, no
sentido de educar a juventude para o que seria esse novo espírito do
capitalismo, de modo que não vislumbrem outra maneira de vida que não aquela em
que serão mercadorias, apenas força de trabalho.
De
que maneira eles interferem nas políticas educacionais do Estado?
Como
sociedade civil, os setores dominantes buscam interferir nas políticas de Estado.
O Todos pela Educação conseguiu difundir a sua proposta educativa para o
Estado, inicialmente por meio do Plano Nacional de Educação (PNE) - que aliás
foi homenageado com o nome Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, em
referência ao movimento. Com isso definiram em grandes linhas o que seria o PNE
que está vigente.
Articulam
por meio de leis, mas também da adesão de secretários municipais e estaduais às
suas metas, aos seus objetivos. Articulam com o Estado, que cria programas,
como o programa de ações articuladas, em que a prefeitura, quando apresenta um
projeto para o desenvolvimento da educação municipal, tem que implicitamente
aderir às metas do movimento Todos pela Educação.
Temos
um complexo muito sofisticado que interage as frações burguesas dominantes, as
políticas de Estado e os meios operativos do Estado para viabilizar esta agenda
educacional.
Mas
como se dá isso na prática?
Quando
um município faz um programa de educação para a sua região, ele já deve estar
organizado com base no princípio de que existe uma idade certa para educação,
que os conteúdos não devem se referenciar nos conhecimentos, mas sim no que
eles chamam de competências, que o professor não deve escapar deste currículo
mínimo que eles estão desenvolvendo por meio de uma coerção da avaliação.
A
escola que não consegue bons índices no Idep [Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica] é penalizada, desmoralizada, sai nos jornais, e isso cria um
constrangimento que chega ao cotidiano da sala de aula, e as prefeituras
pressionadas por esses índices acabam sucumbidos às fórmulas que o capital
oferece. A mais importante delas é comprar sistemas de ensino, apostilas, que
são fornecidos pelas próprias corporações.
O
professor está em sala de aula, recebe apostilas, exames padronizadas que foram
feitos pela corporação, e na prática, ao invés do professor desenvolver um
papel intelectual, criador, ele tem que ser muito mais um aplicador das
cartilhas, um entregador de conhecimento, e isso obviamente esvazia o papel do
professor que tem consequências diretas com o processo de formação.
A
formação esperada do educador não é uma formação enquanto intelectual, mas sim
como alguém que sabe desenvolver técnicas para aplicar aquelas pacotes que as
corporações preparam.
E
há resistências a isso?
Existe
um complexo de situações onde as resistências, as tensões são muito grandes, o
que traz infelicidade aos professores e aos estudantes, mas tudo isso é muito
difuso. As resistências acontecem na forma de lutas sindicais, quando fazem
greve criticando a chamada “meritocracia”, os sistemas de avaliação.
Aparecem
aqui e ali, mas é forçoso reconhecer que existe um complexo de controle sobre
as escolas que restringem muito a margem de manobra dos trabalhadores da
educação para desenvolverem um projeto pedagógico autônomo e crítico.
Essa
situação é agravada quando a própria direção da escola, que deveria pensar como
a escola se auto governa, vem sendo ressignificada como um papel de gestão. O
diretor e os coordenadores são pensados como gestores na lógica de uma empresa,
que deve cumprir metas, fiscalizar o cumprimento delas e tentar atingir essas
metas de todas as formas.
Temos
uma mudança de referências quando a própria equipe de coordenação da escola se
torna uma equipe de gestores. No documento Pátria Educadora há uma
possibilidade de punição dos professores que não cumprirem as metas.
Por
sinal, o Pátria Educadora é um dos programas carro chefe do governo federal.
Como você avalia este documento?
Não
casualmente, esse documento foi elaborado pela Secretaria de Assuntos
Estratégicos (SAE), atualmente dirigido pelo ministro Mangabeira Unger. Ele
parte de um diagnóstico de que o modelo de desenvolvimento baseado em
commodities se esgotou com a crise mundial, com seus preços despencando depois
daquele período de ouro entre 2004 e 2009.
Com
a desvalorização dessas commodities, Mangabeira chama atenção para o fato de
que o Brasil deveria buscar outra forma de inserção na economia mundial que não
fosse apenas de commodities.
E
a minha hipótese é que eles estão sinalizando nesse documento que o Brasil
deveria ser uma espécie de plataforma de exportação, assim como já existe na
fronteira norte do México, em alguns países asiáticos - o modelo chinês foi isso
nos anos 90, de ser um local em que a força de trabalho é muito explorada,
recebe um treinamento específico que permite uma exploração muito grande, e
esses países entram em circuitos de produção industrial de maneira subalterna,
explorando o que seriam sua vantagens comparativas: baixo custo de energia, da
força de trabalho, baixa regulamentação ambiental, e isso daria vantagens
competitivas novamente ao país.
O
drama é que a concepção do Pátria Educadora tem como correspondência a ideia de
que a formação da maior parte da força de trabalho no Brasil deve ser por um
trabalho mais simples, e isso tem consequências pedagógicas muito grande.
Se
é para formar para o trabalho simples, a maior parte das escolas podem ser
instituições estruturadas para a formação de um trabalho de menor complexidade,
que seria desdobrados em processos de formação técnica de cursos de curta
duração, cujo exemplo mais conhecido é o Pronatec, em que grande parte dos
cursos são aligeirados para a formação de uma força de trabalho simples - tanto
aquela que já estará inserida no mercado quanto aquela que constitui o que
podemos denominar de um exército industrial de reserva.
O
documento Pátria Educadora altera a racionalidade da organização da escola
quando vislumbra escolas que vão formar forças de trabalho de menor
complexidade. É importante destacar que no documento encontramos uma formulação
muito perigosa de enormes consequências para o futuro da educação brasileira,
que é a referência que o Mangabeira faz da adoção de um modelo tipo SUS
(Sistema Único de Saúde).
O
que é isso?
O
modelo SUS teve como objetivo assegurar o direito ao atendimento à saúde de
maneira universal, e isso poderia ser feito tanto pelo órgãos públicos quanto
pelas entidades privadas.
Quando
Mangabeira reivindica o modelo SUS, claramente está sinalizando que a formação
do conjunto da classe trabalhadora deveria ser feita em nome de uma suposta
democratização, realizada tanto pelas instituições públicas quanto pelas
organizações privadas.
Isso
é congruente com o PNE aprovado em 2014, ao estabelecer que a verba pública é
aquela utilizada nas instituições públicas, mas também em todas as parcerias
público-privadas, como o FIES, PROUNI, Ciências Sem Fronteira, PRONATEC,
Pronacampo, sistema S, tudo isso entra como recurso público.
A
rigor, estamos diante de uma política que pode indiferenciar as instituições
públicas e privadas em detrimento do público, já que as corporações também se
acercam da educação básica.
Em
setembro acontecerá o 2° Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da
Reforma Agrária (Enera), em Brasília. Como o Enera se insere nesta conjuntura?
Tenho
uma expectativa muito positiva em relação ao segundo Enera. No primeiro Enera
tivemos a constituição de outra perspectiva pedagógica para a educação
brasileira, que foi a Educação do Campo, uma conceituação do que seria uma
educação pública voltada para o campo, mas com um horizonte de formação humana
que ultrapassa o campo.
Foi
certamente uma proposta que promoveu sínteses brilhantes entre uma perspectiva
crítica que vem do campo marxista, da ideia da escola unitária, do trabalho, ao
compreender que o trabalho deveria ser um elemento simbólico, imaginativo,
capaz de nos constituir como seres humanos, e que portanto a escola é o lugar
da cultura, da arte, da ciência, da tecnologia, e não uma instituição livresca.
É uma instituição que tem interação com o mundo, com a vida, com os processos
de trabalho, com a produção real da cultura em diversos espaços, como pensar no
que significa a agricultura no Brasil.
Foi
uma proposta pedagógica que promoveu sínteses incorporando pensamento critico
marxista, tradição latino-americana de educação popular, particularmente com
Paulo Freire, e criou bases para um pensamento pedagógico socialista.
O
segundo Enera, a meu ver, está desafiado pela conjuntura a fazer um balanço do
que foi essa mercantilização e de como o capital está tentando se apropriar do
conjunto da educação básica.
Ao
fazer essa reflexão, certamente o Enera vai ajudar a criar bases para uma
perspectiva de educação pública unitária capaz de contrapor a educação frente à
lógica de movimentos empresariais como o Todos pela Educação.
Pode
haver incorporações de elementos novos na nossa reflexão sobre a pedagogia
socialista que respondam desafios da ofensiva do capital, mas sobretudo
respondam os anseios que estão pulsando em todo o país em torno da educação
pública.
Como
as últimas greves na educação?
Podemos
problematizar a fragmentação das lutas pela educação, o fato de que muitas
vezes são lutas econômicas e corporativas, que estão vinculadas as políticas
municipais e estaduais, mas não tenho dúvidas de que essas lutas que estão
pulsando no país estão enfrentando aspectos dessa pedagogia do capital,
criticando a meritocracia, a racionalidade das competências e dos sistemas
centralizados de avaliação, o uso de cartilhas.
Temos
críticas reais a essa lógica de controle que o capital está buscando sobre a
educação básica, mas precisamos sistematizar isso com outros fundamentos
pedagógicos, e aprofundando a experiência que foi construída a partir do
primeiro Enera.
No
segundo Enera acredito que novas dimensões para essa pedagogia socialista vão
ser esboçados, e não como o resultado de um processo em que os especialistas de
educação do MST vão se reunir e pensar o que seria essa agenda.
Ao
contrário, como resultado de uma articulação de movimentos que estão fazendo
educação pública e estão buscando uma educação criativa, que estão fazendo as
lutas de resistências com as greves, mobilizações, com a participação de
estudantes.
Esta
riqueza de produções que estão em circulação nas lutas em defesa da educação
pública que podem criar uma sistematização maior. Creia condições para que
possamos ampliar esta aliança entre experiências da luta urbana com as que
vieram do campo, produzindo novas sínteses e novas possibilidades para que a
classe trabalhadora tenha sua própria agenda para o futuro da educação pública.
É
um processo longo e exigirá um esforço organizativo e intelectual de enorme
envergadura. Temos que ter uma produção pedagógica mais sistematizadas, mais
profunda, para criarmos a base desse pensamento pedagógico crítico, que
assegure uma formação integral, mas uma educação que recusa a divisão dos seres
humanos em dois grupos: um que pensa e mando, outro que executa e obedece.
Essas
bases para uma proposta socialista estão sendo gestadas nas lutas, mas com o
ENERA podemos ganhar um momento de qualidade no terreno da elaboração,
articulação e organização em defesa desse projeto de novo tipo.
Créditos
da foto: reprodução
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