Um golpe não é feito para premiar
os que tinham a análise política mais correta da história. Defender Lula hoje é
defender a democracia.
por: Saul Leblon – www.cartamaior.com.br
Movimentos populares, lideranças
sociais e partidos progressistas sabem a que vem e a quem serve a iniciativa
cabulosa de um promotor que responde pelo nome de Valtan Timbó.
Timbó, a planta, atordoa o
cardume e facilita a sua captura pelos indígenas.
O timbó político excretado pelos
interesses associados a esse inquérito fará o mesmo com o cardume das forças
progressistas.
Exceto se nadarem rápido para
além das águas onde o entorpecimento e o sectarismo formam um sumidouro sem
volta.
Quem critica –com razão, como tem
criticado Carta Maior-- a letargia do governo e do PT diante do passo de ganso
da Liga dos Golpistas não deve alimentar ilusões.
A omissão diante de mais esse
ensaio de golpe não consagrará espaço à ‘verdadeira esquerda’ na liderança progressista.
O que estamos vivendo é o oposto,
um acelerado assalto ao espaço político
da resistência democrática.
Com todas as virtudes e defeitos
listáveis, Lula é hoje uma espécie de esteio simbólico dos avanços acumulados
na luta pela construção de uma verdadeira democracia social no país.
Decepá-lo a machadadas de
descrédito e suspeição –como tem sido feito--
até arrancá-lo do chão das possibilidades eleitorais do futuro é o plano
acalentado pela Liga Golpista desde 2005.
Uma década de diuturno labor
nessa tarefa atinge agora seu momento de decisão.
Para os dois polos da disputa.
Se o conservadorismo tiver
sucesso não será apenas o esteio que virá abaixo.
Com ele todo um entorno histórico
será aplastado. Impiedosamente. Como se
fez após a derrubada de Jango, no
Brasil; de Allende, no Chile; de Torres, na Bolívia...
Essa é a dinâmica em curso.
Significa que as ambiguidades e
hesitações petistas estão acima de críticas, avanços e confrontações?
Ao contrário.
Mais que nunca é necessário
abordá-las no idioma da camaradagem crítica, em adequados ambientes de debate,
entre os quais não se inclui a mídia conservadora.
A autocrítica e a superação dos
erros cometidos é crucial para o campo progressista superar a encruzilhada de
erros e hesitações angustiantes.
Mas cada crise tem uma
contradição central.
Ignorar essa hierarquia ou
ombreá-la em importância às demais costuma ser devastador, não importam as boas
intenções avocadas no caminho.
Um golpe não é feito para premiar
os que tinham a análise política mais correta da história.
Tampouco a dialética dura das
transformações se assemelha à maciez da mecânica hidráulica.
O longo amanhecer de uma
sociedade mais justa é um labirinto de contradições, uma geringonça que emperra
e se arrasta, desperdiça energia, cospe parafusos e patina.
Para surgir um 'Lula' desse
emaranhado tem que sacudir muito a geringonça imperfeita e remendada.
Greves, levantes, porradas,
descaminhos etc.
Dói. Demora. Leva décadas -- às
vezes séculos.
Uma liderança como a de Lula,
feita de muitos ao seu redor --'uma quadrilha', diz o jogral do Brasil aos
cacos - constitui um patrimônio inestimável na vida de uma nação.
Mesmo assim, é só o começo; fica
longe do resolvido.
A cada avanço, não regredir já é
um feito.
Não regredir hoje requer a
convergência do campo progressista para enfrentar uma coalizão que farejou o espaço aberto pela
transição de ciclo econômico –erroneamente conduzida pelo governo do PT-- e vislumbrou o espaço para o golpe tantas
vezes adiado.
Insista-se, diante do timbó que
entorpece as águas da razão: o golpe não é contra Lula ou contra o PT.
O golpe é contra a respiração
social e econômica de um povo.
O povo brasileiro.
Cinquenta, sessenta milhões
passaram a sorver ares de consumo e cidadania após 11 anos de governos
progressistas no país.
Formam uma espécie de pré-sal de
possibilidades emancipadoras.
A exemplo das reservas de
petróleo, estão agora na alça de mira do programa de asfixia da Liga dos
Golpistas, diante do qual a equivocada condução do ajuste atual é um salgadinho
de aperitivo.
Como evitar que essa riqueza
venha a se perder no socavão do futuro sofregamente escavado pelos aécios,
moros, cunhas, marinhos, frias, civitas, timbós e assemelhados ao longo dos
últimos meses?
Como impedir o desfecho da
espiral que agora atinge a dinâmica de um tornado político?
Não é fácil.
Mas, sobretudo, não se deve
confundir a natureza dessa dificuldade.
Personifica-la em quadros petistas
na desastrosa suposição de que a virulência conservadora contra eles abrirá
espaços à emergência dos ‘consequentes’, repita-se, é o suicídio.
O silêncio dos inocentes é um
maçarico nesse paiol.
Nunca é demais repetir: o Brasil
vive o esgotamento de uma piracema histórica impulsionada pelos grandes
levantes operários do ABC paulista, nos anos 70/80.
Na longa caminhada pela
desconcentração do poder econômico e político chegou-se agora a um pedral divisor.
Há duas opções: saltar e avançar
em um novo estirão ou regredir com o risco de perder inclusive o que já se
conquistou.
Ao final de uma piracema, a
'rodada' dos cardumes exauridos leva uma parte à morte; outra se deixa
arrastar por correntezas incontroláveis; um pedaço sucumbe ou se entrega a
predadores ferozes.
Lula é a presa cobiçada por sua
liderança capaz de unificar parte
expressiva do cardume brasileiro para vencer o pedral.
Ele precisa querer dar o salto.
E os que se avocam a sua esquerda
devem reconhecer que sendo ele arrebatado pelos predadores, o cardume
enfrentará um redil regressivo de consequências devastadoras.
Está em jogo o passo seguinte de
um longo ciclo de desenvolvimento da sociedade brasileira.
Quem irá conduzi-lo; que pacto de
forças; quem terá a prerrogativa de responder as perguntas do desenvolvimento
que o conservadorismo terceiriza aos mercados: desenvolvimento para quem;
desenvolvimento como e desenvolvimento para quê?
A contradição principal --de novo,
a principal-- não é o ajuste incluído nesse percurso.
Ajustes terão que ser feitos e
isso tem sido reiteradamente detalhado neste espaço.
O flanco anterior mais grave,
porém, que ora condiciona o método, o rumo e as salvaguardas dessa travessia
pode ser sintetizado num flanco matriz: o distanciamento orgânico entre ‘a
presa cobiçada nesse momento’ e seu imenso entorno popular.
É esse distanciamento – que tem
na ausência de uma mídia pluralista, um nó górdio-- que o ajuste em curso espelha, ao mesmo tempo
em que age para aprofunda-lo.
E é ele também que explica o
alvoroço dos timbós, a sofreguidão dos tucanos, dos operadores da riqueza
financeira, dos colunistas isentos, de todos, enfim, que farejarem a chance do
bote final, capaz de derrotar de vez a piracema progressista brasileira.
O risco é palpável; mas não sem
incertezas.
O ciclo de inclusão iniciado em
2003 foi tão expressivo que, mesmo sob uma cortina de fogo cerrada como essa,
Lula ainda figura como o nome que ameaça a ambição conservadora de voltar ao
poder pelo voto.
Então é preciso liquidar essa
fatura, late o canil midiático.
Logo agora, na janela de
oportunidade entre o vácuo orgânico criado em torno da presa e a hesitação dos
movimentos populares, partidos e lideranças sociais em compor uma frente capaz
de defender o que ele representa –com a condicionalidade dos avanços sem os
quais o conjunto submergirá.
Ah, mas Lula fez lobby por
empresas brasileiras no exterior...
Sim. E nisso o senador Roberto
Requião foi definitivo enquanto os progressistas balbuciam evasivas ou ruminam
silencio obsequioso:
‘Criticam o Lula por trabalhar a
favor de empresas brasileiras; elogiam o Serra por querer entregar nosso
petróleo a empresas estrangeiras’, disparou o bravo parlamentar.
O país precisa de uma
macroeconomia mais consistente que a de Levy?
Por certo.
'O trade-off é mais liberalismo
em troca de mais redistribuição', como sibilam senhores elegantes de gravata
italiana?
Menos Estado em troca de mais
distribuição?
Pergunte-lhes onde foi que isso
aconteceu.
Vai acontecer agora na Grécia,
adicionalmente coagida a um novo ciclo de ‘reformas liberalizantes’?
Há trinta anos que o capitalismo
não se faz outra coisa a não ser desregular mercados urbi et orbi.
Então por que o motor da economia
mundial engazopou e não pega nem com o tranco de liquidez de trilhões de
dólares despejados pelo Fed e, agora, pelo tardio BCE?
O que falta para lubrificar a
engrenagem emperrada?
Falta o que o Brasil tem, mas a
boa ‘ciência’ dos sábios tucanos e dos economistas de banco -- com a subserviência do bravo jornalismo
econômico -- acha indispensável liquidar: mercado de massa, horizonte de
demanda, distribuição de renda, de bens, de infraestrutura e de poder político.
A desmonte do mundo do trabalho e
a destruição do pleno emprego em todo o planeta, desde os anos 80 --
agora vendida aqui como o clorofórmio capaz de combater as impurezas da
macroeconomia lulopopulista-- explicam
por que essa é a mais longa, frágil e
incerta convalescença de todas as crises capitalistas, desde 1929.
O imenso areal movediço é feito
de de mão de obra subempregada, trabalhadores em tempo parcial, dezenas de
milhões de famílias endividadas, governos de rombos fiscais ingovernáveis,
outros tantos milhões de lares sem condições sequer de prover o próprio
sustento.
É para essa a eficiência
estratégica que a Liga dos Golpistas quer conduzir o Brasil.
Uma peça do enredo ameaça o coice
final do cavalo agalopado.
O estorvo é Lula.
A liderança que o seu nome evoca,
a resistência que sua voz convoca, a capacidade de aglutinação que a sua
presença histórica adiciona...
Defender essa possibilidade hoje
é defender a democracia.
Nenhum silêncio é inocente nessa
hora.
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