O sociólogo português Boaventura Souza Santos em 2013, durante entrevista. Fabio Braga/Folhapress
Classe média é ingrata e não será leal a outros
governos, diz sociólogo
Por Eleonora de Lucena, Folha / http://www.revistaforum.com.br/
A nova classe média, que foi integrada pelo
consumo, é ingrata a quem lhe dá condições para ascender. Tende a se
identificar com os que estão acima dela e não com os que estão abaixo. Também
não será leal a outros governos. Para isso, terá que ser intimidada.
O alerta é do sociólogo e economista português
Boaventura Sousa Santos, 74. Segundo ele, se houver um ciclo político pós-PT,
“ele será dominado pela inculcação do medo que leve à resignação das classes
médias e populares”.
Na análise do professor da Universidade de Coimbra,
há também “o interesse do ‘big brother’ em que desapareçam de cena governos
nacionalistas que retiram ao mercado internacional recursos, como o Pré-Sal e a
Petrobrás. Está em curso na região um novo intervencionismo ‘soft’”.
Nesta entrevista à Folha, concedida por e-mail, ele
trata da ascensão de movimentos políticos na Grécia e na Espanha e os rumos da
esquerda. “Não estamos em tempo de coerência política. Veja o caso do Syriza. A
crise sempre desacreditará a esquerda enquanto esta não aprender a desacreditar
a crise”, afirma
Folha – Como vai a esquerda pelo mundo? Está em
avanço ou em retrocesso?
Boaventura de Sousa Santos - O mundo é demasiado
vasto para que possamos ter uma ideia global de como vai a esquerda, até porque
em muitas regiões do mundo as clivagens sociais e políticas são definidas em
dicotomias distintas da dicotomia esquerda/direita. Por exemplo,
secular/religioso, cristão/ muçulmano, hindu/muçulmano, branco/negro,
etnicamente X/etnicamente Y.
Na medida em que a dicotomia está presente, a
definição dos seus termos é, em parte, contextual. Nos EUA, o partido
democrático é um partido de esquerda mas na Europa ou América Latina seria
considerado um partido de direita. O partido comunista chinês é de esquerda?
Com estas cautelas, há que começar por perguntar: o que é a esquerda?
À escala do mundo só é possível uma resposta
minimalista. Esquerda é toda a posição política que promove todos (ou a grande
maioria dos) seguintes objetivos: luta contra a desigualdade e a discriminação
sociais, por via de uma articulação virtuosa entre o valor da liberdade e o
valor da igualdade; defesa forte do pluralismo, tanto nos mídia como na
economia, na educação e na cultura; democratização do Estado por via de valores
republicanos, participação cidadã e independência das instituições, em
especial, do sistema judicial; luta pela memória e pela reparação dos que
sofreram (e sofrem) formas violentas de opressão; defesa de uma concepção forte
de opinião pública, que expresse de modo equilibrado a diversidade de opiniões;
defesa da soberania nacional e da soberania nacional de outros países;
resolução pacífica dos conflitos internos e internacionais.
Se esta definição, apesar de minimalista, parecer
maximalista, isso é já parte da minha resposta. Ou seja, olhando mundo à nossa
volta, um mundo de concentração da riqueza a um nível sem precedentes, de
corrução endémica, de racismo e de xenofobia, de esvaziamento da democracia por
via da privatização do Estado por parte de interesses poderosos, de
concentração midiática, de guerras internacionais e civis de alta e de baixa
intensidade, não podemos deixar de concluir que um mundo assim não é um mundo
cuidado pela esquerda. É, de fato, um retrato cruel da crise da esquerda.
A crise de 2008 e as medidas de austeridade
impulsionaram movimentos de protesto em vários países, como na Espanha e na
Grécia. Há uma leitura global para isso? A esquerda soube aproveitar o tempo de
crise capitalista?
As medidas de austeridade são o que fora da Europa
sempre se chamou política de ajuste estrutural, uma política de que sempre foi
campeão o FMI. São sempre medidas de privatização e de concentração da riqueza
nacional, de redução das políticas sociais (saúde, educação, pensões etc.) e de
diminuição do peso do Estado na economia e na sociedade. Tem-se chamado, a essa
política, neoliberalismo.
Essa política foi seguida nos últimos 30 anos em
muitas partes do mundo e, portanto, muito antes da crise de 2008. A crise de
2008 foi o resultado da desregulação do capital financeiro na década anterior.
E o mais dramático foi que a crise foi ‘resolvida’ por quem a causou. Daí a
situação de volatilidade financeira permanente em que nos encontramos. Na
Europa, a crise de 2008 acabou por ser o pretexto para estender a política
neoliberal a uma das regiões mais ricas do mundo.
Os movimentos de protesto foram muito distintos mas
tiveram, em geral, duas bandeiras: a luta contra a concentração da riqueza (os
99% contra os 1%) e pela democracia real (no caso da Primavera Árabe era luta
pela democracia sem adjetivos). Essas duas bandeiras estão inscritas no DNA da
esquerda. Mas, na Europa, a esquerda social-democrática (partidos socialistas e
partido trabalhista inglês) tinham-se rendido há muito ao neoliberalismo
através do que se chamou a terceira via, que, de fato, foi um beco sem saída.
Nessa esquerda não havia alternativa à resolução da
crise financeira mesmo que tivesse havido poder para a impor. Na
esquerda-à-esquerda houve novidades. Tanto na Grécia como na Espanha houve
vitórias importantes, a emergência do Syriza e do Podemos.
Mas o problema maior foi que a esquerda europeia no
seu conjunto não se deu conta de que o Banco Central Europeu e o euro tinham
sido criados segundo o mais puro catecismo neoliberal. Disso resultou que as
instituições europeias são hoje mais neoliberais que os diferentes Estados
europeus e têm um poder enorme para intervir neles, sobretudo nos mais pequenos
e periféricos.
Na América Latina, houve avanços nos partidos de
esquerda no início do século 21. Esse movimento continua? Parou? Há retrocesso?
Foi uma das novidades políticas mais brilhantes do
século 21, num momento em que havia poucas boas notícias no mundo. Teve causas
e perfis diferentes nos vários países mas, em geral, os partidos ou movimentos
de esquerda chegaram ao poder na base de fortes mobilizações populares contra
as políticas neoliberais. Essa energia progressista tinha sido anunciada com
muito vigor no primeiro Fórum Social Mundial em janeiro de 2001.
Os avanços consistiram, por um lado, na ampliação
da classe política governante que passou a incluir membros das classes
populares e dos movimentos sociais e sindicais (incluindo presidentes, no caso
do Brasil, um operário; no caso da Bolívia, um indígena).
E, por outro lado, em combinar a aceitação das
regras impostas pela ordem econômica global com políticas sociais
compensatórias (na maioria não universais) que permitiram significativa
redistribuição social e que, no conjunto, foram designadas como social democracia
à latino-americana.
A ordem econômica global impunha na América Latina
um novo extrativismo, uma exploração sem precedentes dos recursos naturais
(agricultura industrial, exploração petrolífera e mineira, megaprojetos
hidrelétricos e de outras infraestruturas) impulsionado pelo crescimento
assombroso da China.
O Estado acumulou recursos (tal como o sistema
bancário acumulou lucros), o que permitiu uma redistribuição social
significativa e uma grande ampliação do sistema educativo superior. Destes dois
pilares surgiu uma nova classe média ansiosa por se integrar na sociedade de
consumo.
Qual sua avaliação sobre a grave crise que ocorre
no Brasil? Por que a base política da presidente se erodiu tão rapidamente? Há
chance de impeachment?
No momento em que o crescimento da China começou a
abrandar, este modelo socioeconómico começou a colapsar. Para manter os níveis
de redistribuição social seria necessário tributar os mais ricos e isso não é
possível em contexto de neoliberalismo. As novas classes médias foram
integradas pelo consumo e não pela cidadania.
E pelo tipo de consumo que era próprio das velhas
classes médias e altas. Não se pensou em novos tipos de consumo (transportes
públicos) nem em qualificar os serviços públicos que tinham agora mais clientes
mais exigentes (dos serviços de saúde às universidades).
A nova classe média é tipicamente ingrata a quem
lhe dá condições para ascender ao novo estatuto e tende a identificar-se com os
que estão acima dela e não com os que estão abaixo.
Os que estão acima são os que sempre olharam com
suspeita os governos progressistas. Além de tudo, estes governos traziam uma
nova classe política feita de gente de baixo que a gente de cima, numa
sociedade classista e cheia de ranço colonial, olhava e olha com desprezo e até
com repugnância.
Acontece que esta nova classe política, também ela
própria se quis identificar com a gente de cima que sempre tinha dominado o
poder político durante muitas décadas. Isto significava governar à moda antiga
para atingir objetivos novos. Ou seja, tirar da governação os mesmos benefícios
que a gente de cima sempre tinha tirado, quer por vias legais, quer por vias
ilegais.
Foi, em parte, por isso que nunca se fez a
anunciada reforma política. Foi uma tentação fatal porque os mesmos atos de
governo, os mesmos erros e as mesmas ilegalidades têm consequências diferentes
quando são cometidos por grupos sociais diferentes. Não há hoje mais corrução
no Brasil que nos períodos anteriores; ela é apenas mais visível porque há mais
interesse político em expô-la.
E não esqueçamos a dimensão externa da crise
política: o interesse do ‘big brother’ em que desapareçam de cena governos
nacionalistas que retiram ao mercado internacional recursos, como o Pré-Sal e a
Petrobras. Está em curso na região um novo intervencionismo ‘soft’ de que
iremos ter mais notícias.
Se houver impeachment será um enorme retrocesso
para o processo democrático brasileiro, pelo menos até se provar algum ato
ilegal em que a presidente esteja envolvida, o que até agora não aconteceu.
Eleita, a presidente adotou medidas contra teses da
esquerda e desagradou boa parcela de seus apoiadores nesse campo. O que Dilma
deveria fazer para recompor sua base? A crise desacreditou a esquerda?
Não estamos em tempo de coerência política. Veja o
caso do Syriza. A crise sempre desacreditará a esquerda enquanto esta não
aprender a desacreditar a crise. Em momentos de crise, o número de bilionários
continua a crescer, o que significa que a crise não é de todos e que, pelo
contrário, há muitos que enriquecem com ela.
No caso do Brasil, tenho pena que a presidente não
tenha avançado com a reforma política, o que implicava uma assembleia
constituinte originária. Seria uma aposta difícil, mas era o único tema em que
a sua base podia ir buscar apoios mais amplos.
Seria o começo da resolução de todos os outros
problemas, num país em que o poder do proselitismo endinheirado capturou a
grande sede do poder dos cidadãos, o Congresso. Sem essa reforma política não
será possível uma política de esquerda sustentável.
Muitos afirmam que o real alvo dessa crise política
é o ex-presidente Lula. O sr. concorda com essa visão?
Concordo mas com mágoa. O fato de o PT precisar do
regresso de Lula da Silva é a prova de que não pôde ou não soube renovar-se. O
presidente Lula tem já assegurado um lugar destacado na história contemporânea
do Brasil.
Muitas análises consideram que o PT deve perder a
eleição em 2018 em razão dos escândalos de corrupção e da forte recessão na
economia. Qual seu ponto de vista?
Normalmente essas análises visam criar profecias
auto-realizadas. A corrupção, venha donde venha, deve ser punida. A recessão
econômica não é culpa do governo, tal como o boom anterior não foi criado por
ele. A seu crédito está apenas o modo como o utilizou para realizar uma redistribuição
social que transformou o país para sempre.
A nova classe média, que agora se mostra ingrata ao
PT, não será mais leal durante muito tempo a outros governos. Para que seja
leal terá de ser intimidada.
Penso que se houver a curto prazo um ciclo político
pós-PT, ele será dominado pela inculcação do medo que leve à resignação das
classes médias e populares perante uma quebra do nível de vida que de todos
modos vai ocorrer.
Qual o futuro do PT? Alguns defendem que seria
necessário refazer as alianças à esquerda para discutir um novo projeto.
Estaria no horizonte a formação de um novo partido ou partidos de esquerda,
como ocorreu, por exemplo, na Espanha?
Costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o
passado. As transformações a realizar são de tal ordem que a questão do PT do
futuro, ou, se quiser, da esquerda do futuro, implica a questão de saber se há
ou não futuro para o PT ou para a esquerda. Na Europa estamos a aprender pela
via mais dolorosa que o que se não aprendeu tranquilamente em tempos de bonança
tem de se aprender aos solavancos em tempos de borrasca.
Há paralelos entre o PT e o PSOE? Ou entre o PT e o
partido socialista francês?
São histórias muito diferentes que enigmaticamente
conduzem a presentes com fortes semelhanças. O PT nasceu de movimentos sociais
de base popular com a radicalidade discursiva da esquerda-à-esquerda.
Mas com um programa moderado, reverente perante o
FMI, e consistindo numa política social-democrática menos universal que a
europeia, mas igualmente informada pela ideia de maximizar a justiça social
permitida pelo capitalismo.
O PT o PSOE e o PS francês vivem o dilema de já não
existir o capitalismo em que podiam florescer. O neoliberalismo transformou a
desigualdade social e o individualismo em suprema virtude (o empreendedorismo)
e não se sente ameaçado por nenhuma força social que o obrigue a agir de outro
modo.
Na Grécia, o Syriza venceu as eleições, o
plebiscito, mas acabou cedendo à troica. Quais os reflexos em outros partidos
de esquerda? Eles podem ficar desacreditados com a ideia de que não conseguem
levar adiante uma alternativa?
O que se passa na Grécia é um desafio total à
imaginação política, particularmente à de esquerda. Nas próximas eleições (20
de setembro) o Syriza vai a votos com um programa que é o oposto do aprovado no
último congresso do partido. É um programa de austeridade e não de
anti-austeridade e é a tradução em grego do memorandum da troika.
Os dissidentes do Syriza criaram um novo partido
que vai a votos com o antigo programa do Syriza, acrescentado da proposta da
saída do euro e regresso ao dracma. É provável que o Syriza ganhe as eleições.
[Alexis] Tsipras pensa mesmo na maioria absoluta, para o que lhe basta ter
(segundo o sistema eleitoral grego) cerca de 40% dos votos.
Será imaginável uma aliança pós-eleitoral entre o
Syriza e os dissidentes do Syriza? Decididamente a realidade política corre
hoje muito mais rápido que a análise política, pelo menos na Europa.
Na Espanha, o Podemos surgiu com uma nova força. O
partido é uma referência para o movimento de esquerda no mundo de hoje? Por
quê?
O Podemos é o partido que na Europa melhor
interpretou a crise da democracia esvaziada de cidadania e ocupada por
antidemocratas, plutocratas (detentores de dinheiro) e até cleptocratas
(ladrões). Fê-lo trazendo para a política os cidadãos que a teoria política (e
a esquerda em particular) considerava despolitizados porque não participantes
nem em movimentos sociais nem em partidos.
Ora, a grande maioria da população não participa
nem nuns nem noutros. E, por vezes, nem sequer vota. Mas isso não significa que
não acompanhe a política nacional e não se revolte com a injustiça e a
corrupção. Só não vê meios credíveis e eficazes para participar. O Podemos
ofereceu-lhe esse meio.
O que o Podemos tem de diferente em relação a
partidos de esquerda tradicionais? Como ele deve ser definido? É de esquerda,
de centro-esquerda, moderado?
O Podemos é até agora a melhor formulação do que
pode ser a esquerda no século 21. Tem de passar por uma reinvenção da esquerda.
Esse objetivo faz com que o Podemos nem sequer se reveja na dicotomia
esquerda/direita tal como está a esquerda hoje. Mas sabe bem o que é a direita
e sabe que a direita está bem porque está no poder e porque tem a seu favor o
capitalismo financeiro mundial –o que lhe dá um capital de confiança que nenhum
grupo social lhe poderia dar. Nem sequer a burguesia nacional, se é que esse
conceito ainda hoje tem validade, dada a internacionalização profunda do
capitalismo.
Podemos é o primeiro partido a assumir o que muitos
teóricos (eu próprio incluído) defenderam: para levar a sério a articulação
entre democracia representativa e democracia participativa, os partidos de
esquerda têm de a adotar no seu seio.
A escolha dos programas e dos candidatos tem de ser
feita pelos mecanismos de democracia participativa, pelos cidadãos organizados
em círculos temáticos ou regionais. Quem ainda se lembra do orçamento
participativo de Porto Alegre sabe o que isso é. Foi, aliás, aqui que o Podemos
bebeu a inspiração.
O Podemos poderá unificar as esquerdas na Espanha?
Quais são os obstáculos para que isso ocorra? E a Esquerda Unida?
Dificilmente, ainda que algum progresso
interessante esteja a ser feito neste domínio ao nível das regiões autônomas.
Podemos tem feito um esforço notável para essa unificação, o que nem sempre é
fácil por ser “a força de câmbio” e não querer perder a sua identidade no meio
de outras (velhas) esquerdas. É ainda muito grande o peso da história na
esquerda europeia e há muito individualismo egocêntrico disfarçado de diferença
política.
A Esquerda Unida saiu derrotada das últimas
eleições e busca reconstruir-se numa nova frente popular. Tem um jovem líder
que podia estar no Podemos e a quem, aliás, Pablo Iglesias propôs que
integrasse a sua lista de candidatos. O aparelho do partido é velho e não
responde ao anseio de renovação do seu líder. Mas a Esquerda Unida tem na base
muitos quadros que podiam ser preciosos para a implantação sustentável do
Podemos.
Quais as semelhanças e diferenças entre o Podemos e
o Syriza?
O Podemos é uma emergência dos movimentos dos
indignados enquanto o Syriza tem raízes na esquerda mais tradicional. O Syriza
nunca ousaria problematizar se é ou não de esquerda. Mas ambos são o resultado
de uma conglomeração de forças políticas e movimentos sociais. Ambos viram bem
a ameaça do neoliberalismo na Europa e ambos estão a mostrar grande
flexibilidade.
Até onde pode ir essa flexibilidade é uma
incógnita. Por agora, o Podemos não vai mais longe do que se abrir a uma
coligação com o PSOE. Penso que nunca iria tão longe quanto o Syriza na
aceitação da austeridade europeia, não só porque a situação na Espanha é muito
diferente da grega, como, sobretudo, porque os círculos de cidadãos não
permitiriam.
Um desgaste maior do Syriza poderia atingir o Podemos?
Sim. Não diretamente, mas através do peso que terá
na opinião pública uma eventual derrota incondicional do Syriza. O objetivo das
instituições europeias é liquidar qualquer hipótese de contestação à política
de austeridade. Se o Podemos se sair bem nas próximas eleições significará que
os cidadãos não se estão a deixar intimidar pela ortodoxia de Bruxelas.
*Desde a queda do Muro de Berlin (antes, talvez),
as esquerdas no mundo parecem desnorteadas. O sr. concorda com essa afirmação?
Como explicar esse processo? Ele está sendo modificado agora? As esquerdas
estão perdendo uma oportunidade histórica?*
Ao longo do século passado, a esquerda foi
constituída pela crença de que havia uma alternativa ao capitalismo. Todas as
divisões dentro da esquerda (revolução/reformismo, luta armada/luta pacifica,
comunismo/socialismo democrático) partiram da possibilidade dessa alternativa.
Quando, a partir da década de 1960, a
social-democracia abandonou a ideia de alternativa ao capitalismo, a sua
política passou a centrar-se na ideia de regulação e tributação do capitalismo
para permitir a paz social e garantir a justiça social possível através do
estado de bem-estar.
A existência do Bloco de Leste fez com que o
capitalismo aceitasse o compromisso. Findo o Bloco, não havia mais razões para
aceitar limitações tão drásticas à remuneração do capital. A queda de Muro de
Berlim não foi apenas o fim do comunismo. Foi também o fim da
social-democracia.
Em debate na Espanha, o sr. falou de um movimento
ainda embrionário em Portugal. O que ocorre?
Está em curso uma reorganização das forças de
esquerda que eventualmente só dará frutos daqui a vários anos. No presente
período eleitoral (eleições em 4 de outubro) serão todas punidas (incluindo
eventualmente o PS) com a possível exceção do Partido Comunista Português, que
tem um eleitorado leal e absorve como nenhum outro o voto de protesto contra a
injustiça social.
A punição da esquerda deve-se a três fatores: o PS
não se propõe realizar uma política muito diferente da seguida pela coligação
de direita no poder; a esquerda-à-esquerda está, por agora, mais dividida que
nunca; o governo e as instituições europeias conseguiram convencer os
portugueses de que o pior já passou e que a política de austeridade deu certo.
Por agora, Portugal é um caso de sucesso. Sobre o
que virá depois das eleições nada se diz.
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