O grau de civilização e de espírito humanitário de
uma sociedade se mede pela forma como ela acolhe e convive com os diferentes.
Sob este aspecto a Europa nos oferece um exemplo lastimável que beira à
barbárie. O menino sírio de 3-4 anos afogado na praia da Turquia simboliza o
naufrágio da própria Europa. Ela sempre teve dificuldades de aceitar e de conviver
com os “outros”.
Geralmente a estratégia era e continua sendo esta:
ou marginaliza o outro, ou o submete ou o incorpora ou o destrói. Assim ocorreu
no processo de expansão colonial na África, na Ásia e principalmente na América
Latina. Chegou a destruir etnias inteiras como aquela do Haiti e no México.
O limite maior da cultura europeia ocidental é sua
arrogância que se revela na pretensão de ser a mais elevada do mundo, de ter a
melhor forma de governo (a democracia), a melhor consciência dos direitos, a
criadora da filosofia e da tecnociência e, como se isso não bastasse, ser a
portadora da única religião verdadeira: o cristianismo. Resquícios desta
soberba aparece ainda no Preâmbulo da Constituição da União Europeia. Aí se
afirma singelamente:
“O continente europeu é portador de civilização,
que seus habitantes a habitaram desde o início da humanidade em sucessivas
etapas e que no decorrer dos séculos desenvolveram valores, base para o
humanismo: igualdade dos seres humanos, liberdade e o valor da razão…”
Esta visão é somente em parte verdadeira. Ela
esquece as frequentes violações destes direitos, as catástrofes que criou com
ideologias totalitárias, guerras devastadoras, colonialismo impiedoso e
imperialismo feroz que subjugaram e inviabilizaram inteiras culturas na África
e na América Latina em contraste frontal com os valores que proclama. A
situação dramática do mundo atual e as levas de refugiados vindos dos países
mediterrâneos se deve, em grande parte, ao tipo de globalização que ela apoia,
pois configura, em termos concretos, uma espécie de ocidentalização tardia do
mundo, muito mais que uma verdadeira planetização.
Este é o pano de fundo que nos permite entender as
ambiguidades e as resistências da maioria dos países europeus em acolher os
refugiados e imigrantes que vêm dos países do norte da África e do Oriente
Médio, fugindo do terror da guerra, em grande parte, provocada pelas
intervenções dos ocidentais (NATO) e especialmente pela política imperial norte-americana.
Segundo dados o Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR) somente neste ano 60 milhões de pessoas se viram
forçadas a abandonar seus lares. Só o conflito sírio provocou 4 milhões de
desalojados. Os países que mais acolhem estas vítimas são o Líbano com mais de
um milhão de pessoas (1,1 milhão) e a Turquia (1,8 milhões).
Agora esses milhares buscam um pouco de paz na
Europa. Somente neste ano cruzaram o Mediterrâneo cerca de 300.000 pessoas
entre imigrantes e refugiados. E o número cresce dia a dia. A recepção é carregada
de má vontade, despertando na população de ideologias fascistóides e xenófobas,
manifestações que revelam grande insensibilidade e até inumanidade. Foi somente
depois da tragédia da ilha de Lampedusa, ao sul da Itália, quando se afogaram
700 pessoas em abril de 2014 que se colocou em marcha uma operação Mare Nostrum
com a missão de rastrear possíveis naufrágios.
A acolhida é cheia de percalços, especialmente, por
parte da Espanha e da Inglaterra. A mais aberta e hospitaleira, apesar dos
ataques que se fazem aos acampamentos dos refugiados, tem sido a Alemanha. O
governo filo-fascista de Viktor Orbán da Hungria declarou guerra aos
refugiados. Tomou uma medida de grande barbárie: mandou construir uma cerca de
arame farpado de quatro metros altura ao longo de toda fronteira com a Sérbia,
para impedir a chegada dos que vêm do Oriente Médio. Os governos da Eslováquia
e da Polônia declararam que somente aceitariam refugiados cristãos.
Estas são medidas criminosas. Todos estes
sofredores não são humanos, não são nossos irmãos e irmãs? Kant foi um dos primeiros a propor uma
República Mundial (Weltrepublik) em seu último livro A paz perpétua. Dizia que
a primeira virtude desta república deveria ser a hospitalidade como direito de
todos e dever para todos, pois todos somos filhos da Terra.
Ora, isso está sendo negado vergonhosamente pelos
membros da Comunidade Europeia. A tradição judeu-cristã sempre afirmou: quem
acolhe o estrangeiro, está hospedando anonimamente Deus. Valham as palavras da
física quântica que melhor escreveu sobre a inteligência espiritual – Danah
Zohar: ” A verdade é que nós e os outros somos um só, que não há
separatividade, que nós e o ‘estranho’ somos aspectos da única e mesma
vida”(QS:consciência espiritual, Record 2002, p. 219). Como seria diferente o
trágico destino dos refugiados se estas palavras fossem vividas com paixão e
compaixão.
Leonardo Boff escreveu Hospitalidade: direito e
dever de todos, Vozes 2005.
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