Golpe militar completa 42 anos nesta sexta, 11 de setembro
Por Victor Farinelli
Do Opera Mundi
Os livros que abordam a história da ditadura de Augusto
Pinochet no Chile (1973-1990) costumam se dividir em dois universos diferentes:
os que investigam e recriam o ocorrido nos porões dos serviços secretos, onde
os opositores ao regime eram torturados e assassinados, e os que retratam a
forma como os economistas da Universidade de Chicago instalaram o modelo
econômico neoliberal no país, com o apoio do ditador, passando por cima do
projeto socialista de Salvador Allende (1970-1973).
O jornalista e escritor chileno Javier Rebolledo,
especialista em reportagens sobre casos de violações aos direitos humanos,
aproximou esses dois universos em seu livroA la Sombra de Los Cuervos – Los
Cómplices Civiles de la Dictadura[“Por Trás da Sombra dos Corvos – Os Cúmplices
Civis da Ditadura”, em tradução livre] (editora Ceibo). A obra é a terceira e
última parte da chamada Trilogia dos Corvos realizada pelo autor e fala sobre a
participação que tiveram os apoiadores civis da ditadura chilena a partir da
história de duas das mais ricas famílias do país e suas relações tanto com o
Palácio de La Moneda quanto com o aparato repressivo.
O livro foi lançado no Chile em agosto e já teve boa
repercussão no meio político – o autor foi convidado a apresentá-lo na Comissão
de Direitos Humanos do Congresso Nacional, em Valparaíso, nesta quinta-feira
(10/09).
Rebolledo falou comOpera Mundidurante um dos intervalos de
sua participação na comissão, entre fotos e livros autografados aos
parlamentares. Leia os principais trechos da conversa a seguir.
Opera Mundi: Seu livro é sobre os civis que estiveram
envolvidos com a ditadura, mas não todos os civis.
Javier Rebolledo:Claro. Até porque foram muitos, e porque
ainda existem muitas sombras sobre esse tema. Os civis foram mais inteligentes
que os militares, e não é tão fácil encontrar provas sobre o envolvimento
desses muitos. No meu trabalho, eu me concentrei na participação de duas
famílias bastante representativas: os Matte, uma das famílias mais poderosas do
Chile, dona da Companhia de Manufatura de Papéis e muitos outros negócios [os
Matte possuem o segundo maior patrimônio do Chile e uma das três fortunas
chilenas que aparecem entre os mil primeiros do ranking da revistaForbes]. Nos
primeiros dias da ditadura, quando foi preciso afogar diversos focos de
resistência civil ao golpe [as chamadas Caravanas da Morte], a família Matte
colaborou com esses atos, especialmente em zonas rurais próximas às suas
propriedades, onde dezenas de trabalhadores foram assassinados. A investigação
judicial de alguns crimes ocorridos na região de Laja [no sul do Chile], que eu
pude acompanhar para escrever o livro, conseguiu comprovar o uso de veículos da
empresa, a elaboração de listas com nomes de trabalhadores, o oferecimento de
material diverso, desde cordas, combustível e outros produtos utilizados nos
crimes, além do próprio edifício da empresa, utilizado durante a operação. E
não somente isso; também participaram do ocultamento desses crimes, o que
envolve pelo menos um alto executivo da empresa, que sabia dos crimes e
organizou dentro da empresa os trabalhos para apagar as pistas.
OM: A outra seria a família Kast.
JR:Sim. O caso da família Kast é mais profundo, porque
começa com o caso de Michael Kast, o patriarca da família, que foi citado por
testemunhas da morte e do desaparecimento de trabalhadores na cidade de Paine
[região central do Chile], também em 1973. Testemunhas asseguram ter visto
membros da família Kast, liderados por Michael, levando seus veículos para a
delegacia, para que fossem usados nos operativos de sequestro de trabalhadores
e posterior desaparecimento dessas pessoas, não se sabe se vivas ou mortas.
Nessa mesma delegacia, eles participaram de um churrasco com os mesmos
policiais que usaram os veículos da família Kast e que hoje respondem a
processo pelo desaparecimento dos trabalhadores. Neste caso, podemos apontar
uma responsabilidade direta e explícita dos Kast. Depois tem a relação deles
com toda a estrutura de poder e com a refundação do país no que diz respeito ao
seu modelo político e econômico.
OM: E como foi essa relação?
JR:A participação dos Kast na ditadura é mais conhecida
através de sua colaboração direta com o governo, e isso tem a ver com Miguel
Kast, filho de Michael, que foi ministro do Pinochet. Ele foi um dos chamados
Chicago Boys [economistas chilenos formados pela Universidade de Chicago, que
implantaram o neoliberalismo no país durante a ditadura, sob supervisão direta
de Milton Friedman, considerado um dos pais da doutrina neoliberal], trabalhou
como ministro do Planejamento e depois foi presidente do Banco Central, entre
outros cargos.
OM: Como você descreve Miguel Kast no livro?
JR:Ele acreditava no neoliberalismo, era uma convicção muito
forte. Ele achava que o projeto socialista de Allende precisava ser eliminado desde
a raiz e havia muitos como ele na equipe econômica, que viam na ditadura uma
forma de implantar o modelo à força, com uma estrutura repressiva capaz de
enfrentar qualquer tipo de descontentamento social caso os efeitos desse modelo
não agradassem a todos os setores. Eles eram conscientes disso.
OM: Através da história de Kast, o livro consegue fazer unir
essas duas faces da ditadura, a do extermínio de opositores com a da imposição
do modelo neoliberal.
JR:Sim, mas porque efetivamente foi assim. A perseguição e
desaparição de todas as forças de esquerda, lideranças sindicais, movimentos
sociais, foi essencial para que se pudesse implantar o modelo neoliberal. Se
não fosse assim, se fosse num governo democrático, se isso tivesse que passar
pelo crivo da democracia ou se as pessoas pudessem protestar contra os efeitos
disso, não teria dado certo, a reforma não teria terminado. Para que pudesse
ser implantado, houve os custos que tiveram que pagar, com sangue, com as vidas
daqueles que resistiram.
OM: Qual foi exatamente o papel desempenhado por Kast
durante a implementação do modelo?
JR:Kast foi um dos responsáveis, junto comJosé Piñera[outro
Chicago Boy, que também foi ministro de Pinochet e é irmão do ex-presidente
Sebastián Piñera], pela criação de todos os pilares do modelo neoliberal
chileno, que depois serviu de exemplo para modelos semelhantes em outros
lugares do mundo. A reforma educacional da ditadura passou por ele, assim como
areforma das leis do trabalho, a reforma previdenciária, que acabou com a
seguridade social estatal e criou aprevidência privada obrigatória, e a reforma
da saúde, que também acabou com a gratuidade da saúde pública. Ele foi um dos
nomes civis mais importantes da ditadura, sem nenhuma dúvida.
OM: Durante sua participação na Comissão de Direitos
Humanos, o deputado e ex-líder estudantil Gabriel Boric disse, em alusão às
reformas propostas por Bachelet atualmente, que o desafio do Chile é provar que
é possível reformar o país democraticamente. O que você acha dessa afirmação?
JR: Concordo plenamente. Temos que ter muito cuidado, para
não justificar tergiversações com isso, mas a história recente deste país conta
que quando se tentou fazer reformas pela via democrática, não foi possível, e
se instalou a violência, e através da violência foi possível instaurar a ferro
e fogo todas as reformas que quiseram. Agora, os mesmos nomes estão por trás da
resistência [às reformas de Bachelet], como os deputados José Antonio Kast e
Felipe Kast – irmão e filho de Miguel Kast, respectivamente.
OM: O Chile condenou muitos militares por violações aos
direitos humanos, mas nenhum civil foi sequer processado – nem mesmo as
famílias Matte e Kast, apesar das evidências conhecidas pela Justiça e mostradas
em seu livro. Por que essa impunidade?
JR: Muito simples: porque são as famílias mais ricas do
país. Existe um erro muito grande que todos nós cometemos, quando supomos que
todos os civis estão subordinados ao poder político. Quando vemos os casos de corrupção
no Chile atualmente, vemos que o poder político é que está subordinado ao poder
econômico, e isso é assim desde a ditadura, e cada vez mais. Mesmo em casos de
violações aos direitos humanos. Por exemplo, os crimes cometidos no Sul, em
favor da família Matte. O coronel que dirigia o regimento do exército, que foi
responsável por digitar o expediente com o qual se encobriu todos os crimes
contra os trabalhadores da região, terminou sendo intendente da província de
Los Ángeles [sul do Chile], e depois da ditadura foi contratado como alto
executivo das empresas da família Matte.
OM: Os militares não ficaram incomodados com o fato de que
os civis não responderam a processo, como eles?
JR: Sem dúvida. Essa foi a razão pela qual se produziu um
rompimento entre os civis e os militares. Mas também é bom lembrar que nem
todos os militares foram processados e condenados. Pinochet, por exemplo,
terminou impune, mas não somente ele. Outros tampouco foram sequer processados,
como os civis, outros estão protegidos até hoje pelos pactos de silêncio. Mas
efetivamente, os que foram condenados, como Manuel Contreras, reclamam muito da
impunidade aos civis, e creio que a única coisa boa para a sociedade nessa
impunidade é que essa é a razão pela qual o exército chileno não daria
novamente um golpe de Estado.
OM: Há alguns anos, Opera Mundi publicou uma reportagem que
contava como empresários brasileiros ajudaram a arrecadar fundos para
patrocinar as atividades dos que impulsionaram o golpe de Estado no Chile, em
1973. Há algo no seu livro a respeito desse fato?
JR: Não. Se tivesse lido a reportagem, talvez buscasse algo
a respeito (risos). Mas também porque minha investigação ficou concentrada nos
casos dessas duas famílias, os Matte e os Kast. Eu sei que um empresário, chamado
Ricardo Claro – antigo dono do canal de televisão Megavisión e outras empresas
de comunicação – mantinha relações com grupos econômicos de outros países da
região durante os anos da Operação Condor, mas isso não está no livro,
justamente porque carece de informação sobre se essas relações tinham algo de
ilícito ou não. O que eu publico em outros livros meus, como El Despertar de
los Cuervos [“O Despertar dos Corvos”, sobre os centros de tortura que já
operavam no Chile antes mesmo do golpe de 1973], é que houve uma clara
colaboração no âmbito da repressão, e muitos militares brasileiros vieram ao
Chile para realizar torturas e para ensinar os chilenos a torturar. Neste
livro, há relatos de testemunhas dizendo que foram torturadas por agentes que
falavam português e alguns que puderam ver agentes chilenos usando camisetas
com alusão ao Brasil.
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