Camponeses
denunciam 'terrorismo de Estado' e advogados afirmam que o juiz 'prevaricou e
produziu documentos não autênticos'.
Leonardo
Wexell Severo, de Assunção / www.cartamaior.com.br
Justificando
a razão de não aceitar o quadro presenteado por um grande pintor, o poeta Mário
Quintana disse: “Acredite, não tenho paredes. Só tenho horizontes...” No
vizinho Paraguai, o juiz Ramón Trinidad Zelaya, tem uma máxima diferente. Para
ampliar as suas paredes, quer ver atrás das grades o horizonte de todos os
sem-terra, assim como os de Marina Kue, no município de Curuguaty. Integrada
pelos advogados Victor Azuaga e Albino Ramírez, a defesa apresentou uma
denúncia contra os integrantes do Tribunal, presidido por Zelaya, por
“prevaricação e produção de documentos não autênticos”, atuando com
parcialidade, falta de independência e arbitrariedade.
Na
vastidão do pampa paraguaio encontram-se os dois mil hectares de Marina Kue,
com suas fontes de água, açude, bosque. A promessa de novos tempos contida
neste exuberante vigor da natureza colocou uma associação de camponeses em
conflito com o monocultivo de soja transgênica da Monsanto. Contra a sanha da
família Riquelme, seus herbicidas e agrotóxicos. E mobiliza contra a falida e
putrefata estrutura jurídica mantida para que 85% das terras continuem nas mãos
de 2% da população. Dados do Informe da Comissão Verdade e Justiça apontam que
são sete milhões de hectares de “tierras mal habidas”, usurpadas por
latifundiários mediante falcatruas e crimes, boa parte ao longo dos 35 anos da
ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989).
Infelizmente,
a contaminação provoca muito mais do que queimaduras nas peles das vítimas dos
pesticidas jogados pelos aviões. Um veneno que não só é servido à mesa, mas
impregna o Executivo, o Legislativo e o Judiciário do Paraguai. Uma intoxicação
alienante, que dilacera a autoestima e envenena com a mentira, quando ganha a
propulsão dos principais meios de comunicação do país. A resistência à
insanidade, o compromisso com as suas famílias e a luta por justiça levou
vários dos assentados a responderem hoje, mais de três anos depois daquele 15
de junho de 2012, pelo sangue derramado em uma ação de despejo arbitrária e
ilegal.
E,
para reproduzir esta injustiça com seu martelo, Ramón Trinidad Zelaya caiu como
uma luva. Seu patrimônio vem registrando “extraordinário crescimento”, graças
ao diálogo com os setores que dominam o negócio ilegal na fronteira, revela o diário
ABC Color – o de maior tiragem no Paraguai - e, neste caso, insuspeito. Unha e
carne com os poderosos de plantão, o magistrado obviamente nunca foi
investigado, apesar da opulência de seus veículos. Em 2011 colocou em liberdade
um homem com dupla identidade, suspeito de ser um perigoso narcotraficante. No
mesmo ano a “demora” na condução da investigação do milionário roubo de uma
agência do Banco Bilbao Viscya (BBVA) em Curuguaty fez com que fosse afastado
do caso. A lentidão cheirava à obstrução e o “cérebro” do assalto, Edgar
Galeano Bogado, havia sido seu assistente na promotoria. A mais recente mancha
na toga de Zelaya é a absolvição de Simón Núñez Antúnez e César Godoy González
pelo Tribunal de Sentença que integrava em março deste ano. Com os dois
“inocentes” haviam sido encontrados 571 quilos de maconha.
VISITANDO
O CÁRCERE
Passo
pelo guarda e chego ao pátio onde se encontram a maior parte dos presos
políticos de Curuguaty, incluindo mulheres e crianças. Os meninos e meninas
brincam com os psicólogos destacados para amenizar o inferno daqueles muros. O
almoço logo será servido.
Eram
324 agressores munidos das armas mais potentes, como o fuzil de repetição
Galil, de escudos, cavalos e helicóptero, com franco-atiradores e treinamento
made in USA para mostrar a covardia em toda a sua dimensão a cerca de 60
sem-terras. Metade deles mulheres, crianças e idosos que queriam tão somente um
pedaço de chão para plantar e viver. Morreram 17 pessoas, seis policiais e 11
camponeses. Acusados de terem armado uma “emboscada”, os trabalhadores rurais
foram retirados do acampamento para a prisão. Não sem antes alguns deles terem
sido torturados ou “justiçados” ali mesmo com um tiro na boca. O resultado do
“confronto” foi o afastamento do presidente Fernando Lugo, apenas uma semana
depois.
No
salão que funciona como um refeitório vejo um quadro fixado na parede. É ele. O
juiz Ramón Trinidad Zelaya, devidamente algemado. O cartaz reproduz a foto de 8
de novembro de 2007. Naquela madrugada, conforme relata o ABC Color, a
assistente da promotoria, Angela Ferreira, teria vendido por cinco mil dólares
uma resolução assinada pelo então promotor Zelaya para a devolução de um
caminhão roubado no Brasil. Zelaya chegou a ser algemado por agentes da Unidade
Anti-corrupção, mas escapou do flagrante do suborno passivo. Foi processado em
função de outras evidências obtidas durante a investigação, como a conversação
gravada entre um investigador de seguros e Angela Ferreira, onde ela assegurava
que parte do suborno era mesmo para Zelaya. Para abafar o caso e salvar a pele
do juiz, o Promotor Geral do Estado o transferiu para o Ministério Público de
Caazapá. De lá pra cá sua “carreira” é conhecida. E, agora, reconhecida.
Ferido
à bala no rosto durante o massacre, Néstor Castro teve a mandíbula destroçada e
perdeu muitos quilos até ser submetido à cirurgia, meses depois. Teve um dos
irmãos, Adolfo, executado pela polícia no acampamento. O outro, Adalberto, está
com ele na prisão. Olha fixo para o cartaz na parede e denuncia “o terrorismo
de Estado” por trás da toga de Zelaya. Afinal, diz, é disso que se trata. “Todo
mundo sabe que as terras de Marina Kue são terras públicas, doadas ao Estado
pela Industrial Paraguaia em 1967. Já haviam ocorrido seis despejos anteriores.
Então decidiram nos massacrar por estar pedindo algo que nos pertence”,
denuncia. Néstor destaca que o camponês vê a terra como “uma questão de
sobrevivência”. “Aqui se trata da vida das pessoas, da luta pelo direito dos
cidadãos. Por isso nos prenderam”, frisou.
Néstor
observa a filha Nádia pular no seu colo. Acaricia o cabelo da menina e fala
tranquilo: “No julgamento, oral e público, o próprio Tribunal não dá garantias
processuais para a defesa, inviabiliza ou dificulta uma maior preparação.
Enquanto isso a terra está abandonada. Seguem as plantações de soja da família
Riquelme. E os trabalhadores sem-terra, sem justiça, sem nada”.
QUEM
DEU A ORDEM?
Questiona
a razão do processo não investigar os policiais e sustenta que “se os
promotores e juízes quisessem mesmo saber o que aconteceu no dia do massacre
teriam de investigar quem deu a ordem”. “O piloto do helicóptero que filmou a
agressão não foi chamado a declarar, nem seus ajudantes foram convocados para
dar depoimento. A gravação da filmagem e das fotos desapareceu e agora o piloto
aparece morto. Querem acobertar a verdade e jogar a culpa sobre os assentados”,
explicou Néstor. Há muita sujeira jogada para debaixo do tapete, sustenta.
“Ocorreram várias execuções, como a do meu irmão Adolfo. Ferido ele se entregou
quando viu que os policiais haviam pegado seu filho de dois anos. Ali mesmo foi
assassinado”, desabafa.
Tomando
tererê, Adalberto Castro fala sobre o helicóptero “que voava baixo”, conta dos
facões e das poucas escopetas que os camponeses dispunham para matar animais e
fala da “tropa em posição de tiro, com cavalos, escudos e armas de guerra”.
Após os primeiros tiros, que conforme várias testemunhas partiram do
helicóptero, “os policiais que vinham dos dois lados se enfrentaram e nós
ficamos no meio”. Daí o grande número de feridos por fuzil. “Agora estamos
enfrentando uma brutal injustiça. Os assassinos nos chamando de agressores”.
Alcides
Ramón Ramirez Paniagua tem saudade da mulher e do filho, já com quatro anos,
que foram obrigados a se socorrer na Argentina. “Tenho que assinar um papel
para que possam vir, mas estou jogado na prisão por lutar por um pedaço de
terra que pertence ao Estado. Não posso sair, não posso trabalhar, não tenho
como sustentar minha família”, denuncia Alcides. Protestando “contra os abusos
e desmandos”, ele lembra que “há muitos companheiros processados que ouviram
disparos vindos do helicóptero, mas estão escondidos por temerem represálias”.
Acusado
de ser um “franco-atirador”, Juan Carlos Tilleria recorda que o grupo do qual
fazia parte saiu do acampamento para “dialogar com as autoridades”. “A gente
esperava que viesse um promotor e meia dúzia de policiais. Quando vimos quantos
eram começamos a correr. Escutei os tiros, mas pensei que eram balas de
borracha. Nos escondemos no bosque. Me agarraram 15 dias depois porque meu nome
constava em um suposto caderno, que eles dizem ter se estragado. Eu fui sincero
e honesto, contei a verdade. E aqui estou”.
Luis
Olmedo lembra que “todos esperavam que a polícia fosse dialogar, jamais chegar
agredindo, ainda mais pelo fato de haver mulheres grávidas e crianças”. Ao lado
do filho Francisco Javier, hoje com quatro anos, Luis enfatiza que “tudo o que
queria era plantar mandioca, milho, feijão e verduras”. Em vez disso, ele
mostra a cara deformada na tela do celular: “Me torturaram. Chutaram com suas
botas, bateram com o cabo das armas, dos revólveres. Disseram que iam me
matar”. Aguardando o julgamento a seu lado, a irmã, Maria Fani Olmedo, foi
levar mercadorias ao acampamento na quinta. “Quando foi sair, as quatro da
madrugada de sexta, a polícia já havia cercado tudo, e foi presa conosco”,
conta.
Da
mesma forma que Fani, a companheira de Luis Olmedo, Dolores López Peralta
estava grávida de Jorge, quando foi injusta e ilegalmente privada de sua
liberdade. O Código Processual Penal (CPP) do Paraguai afirma que não se pode
decretar a prisão preventiva de mulheres nos últimos meses de gravidez, nem das
mães durante a lactância. Só após intensa pressão social e judicial, as duas
ficaram sob prisão domiciliar. “Nossos filhos estão sofrendo muito. Queremos
voltar para Curuguaty”, relata Dolores. “Tenho uma menina e dois meninos para
sustentar e não posso trabalhar. Há sete meses que minha mãe morreu e fiquei
só”, desabafa Dolores, angustiada pelo futuro da família.
Morador
a sete quilômetros do local do enfrentamento, onde costumava ir pescar, Felipe
Benítez Balmori, de 59 anos, é mais um dos inocentes que foi preso na “rede de
injustiça”. O pescador foi capturado antes de voltar para casa e lamenta ter
deixado “quatro filhos órfãos de pai”. Como é analfabeto, colocaram suas
digitais numa “ata de declaração indagatória”, sem a presença de advogados,
onde alegam que denunciava os líderes do acampamento por “portarem armas de
fogo”. “Me algemaram, chutaram e inventaram uma confissão de algo que nunca
falei. Tudo mentira”, sustenta.
Para
que a “indiferença seja uma palavra obscena”, como nos ensinou Mario Benedetti,
é preciso fazer ecoar estas palavras.
Créditos
da foto: reprodução
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12