Eduardo Cunha é filho de Aécio,
de Fernando Henrique, de Bolsonaro, da grande mídia oligopólica e é um
instrumento de destruição da memória de Lula.
Tarso Genro / www.cartamaior.com.br
"A pulsão de impor-se pela
habilidade de manipular palavras e imagens não mudou desde aqueles tempos
longínquos, mas o instrumento posto a serviço dela é, hoje, infinitamente mais
poderoso. Desse ponto de vista, com as mídias, dá-se o mesmo que com os
armamentos: nossa ferocidade não aumentou, mas nossa capacidade de destruir
vidas e construções é infinitamente superior à dos romanos ou à dos bárbaros do
Norte. (...) Acreditamos tomar sozinhos nossas decisões; mas se todas as
grandes mídias, desde a manhã até a noite e dia após dia, nos enviam uma
mensagem, a margem de liberdade de que dispomos para formar nossas opiniões
fica muito restrita." Este texto é
de Tzvetan Todorov, no seu livro "Inimigos Íntimos da
Democracia", Cia. das letras, 2012,
pg. 197. Todorov é um cientista da linguística, um dos grandes intelectuais
contemporâneos, aliás sempre prestigiado pelas suas convicções democráticas,
méritos acadêmicos e independência em relação aos extremos.
Fui relê-lo, para procurar
entender um pouco o recente fenômeno Cunha, flagrado em operações suspeitas,
com provas materiais, depois de ter
comandado a mais formidável chantagem feita contra um Governo, na história da
república. E o fez, amparado na sua condição de membro do Partido mais
importante do Governo e líder inconteste da oposição fisiológica e neoliberal.
Sua chantagem consistiu, até agora, num triplo movimento: estourar o Orçamento
da União com os gastos estratosféricos de uma "pauta bomba"; chantagear
o Vice-presidente da República, para que não se "aproxime demais" da
Presidenta, para dar-lhe estabilidade; resistir à aprovação do
"ajuste" ortodoxo do Governo, para inviabilizar a sua governabilidade
e, quem sabe, impulsionar o seu impedimento. Nem toda a oposição lhe tem como
referência, mas a sua parte mais rancorosa e antidemocrática.
Cunha é o líder da oposição,
arrombador do orçamento, ícone da direita truculenta e membro do maior partido
do Governo. Nesta posição, foi protegido e incensado pela mídia tradicional,
para se tornar o promotor número um da inviabilização do Governo Dilma, fossem
quais fossem as suas opções de política econômica e monetária. Cunha está se
transferindo, agora, da esfera da política para a esfera da polícia e da condição
de problema do Governo, para problema da oposição e da República.
Observação necessária: não sou
adepto das medidas de "ajuste" do Governo e não concordo com a sua
busca de governabilidade em troca da aplicação da pauta exigida pelas
"agências de risco". São medidas que não estabilizam a economia,
antes congelam injustiças. Nem acho que o Governo tenha lidado, com as
chantagens de Cunha, de forma republicana, tanto como pelo que ele é, como pelo
que pretendia em relação ao Governo: tutelá-lo e humilhá-lo. Compreendo as
atitudes do Governo -para manter-se governando- como uma desesperada defesa de
um mandato legítimo, carente de apoio popular (pelos seus próprio erros), para
resistir ao “golpismo paraguaio” ainda em curso.
Cunha, porém, só chegou, até
aqui, pelo apoio praticamente irrestrito que teve da direita e pelo apoio que
teve de cronistas das "redes", editorialistas dos grandes meios e
seus colunistas políticos. Eles chegaram ao extremo de fórmulas, literalmente,
como estas: "O ódio à Cunha é ódio à democracia"; "Cunha nos
representa"; "O PSDB saúda a marcha pela democracia. Vocês são
exemplo de democracia e esperança de um Brasil livre da corrupção "
(palavras que designam uma foto, onde Cunha, radiante, está abraçado com vários
seus dignos apoiadores).
Se a grande mídia desse às
acusações contra Cunha, dez por cento da credibilidade e atenção que deu às
acusações contra Lula, ele não teria chegado à Presidência da Câmara e a crise
política do país não teria causado este prejuízo paralisante, com seus enormes
problemas econômico-sociais e desgastes da democracia perante os olhos da
cidadania, seja ela pró ou contra o governo Dilma.
Cunha é filho de Aécio, de
Fernando Henrique, de Bolsonaro, da grande mídia oligopólica, que não só quer
destruir a capacidade do Governo governar (chegou-se a dizer fazê-lo
“sangrar”), mas também Cunha é um instrumento de destruição da memória de Lula,
como um dos grandes Presidentes do país nos últimos 50 anos. Com erros, com
concessões, com limitações, mas um dos grandes presidentes brasileiros. A
promoção de Cunha, como um político que “tem defeitos”, mas que é bom porque é
contra a esquerda e o PT -essa é a
tática da direita truculenta e da grande mídia- é uma ofensa à memória de
Getúlio, de Juscelino, Jango, de Lula e mesmo do antigo Fernando Henrique,
quando não era um líder radical do oposicionismo sem princípios e sem
programa.
É bom lembrar, neste momento, que
Cunha foi um tenaz apoiador de Aécio e dele sempre recebeu solidariedade. Que
sempre foi oposição ao Governo Dilma e que a grande mídia, por seus colunistas
impolutos e editoriais arrogantes - com raras exceções -, sempre utilizou-o
como instrumento de combate a um Governo legitimamente eleito, que, se não é um
Governo coerente com o programa que lhe elegeu, não tem qualquer motivo
legítimo para ser deposto. Cunha, que é um instrumento de revide de perdedores,
agora está desmascarado pelos mesmos fundamentos, através dos quais ameaçou
bloquear a cumprimento de um mandato presidencial legítimo.
Nenhum Presidente, no país,
governou sem apoios fisiológicos e sem sustentação em interesses regionais,
muitas vezes oligárquicos. Nenhum Governo deixou de ter casos de corrupção, que
envolvessem os partidos no poder e quadros dos altos escalões da máquina
pública. Mas não me recordo de nenhum Governo que tenha organizado as
instituições do Estado, de forma tão eficiente como fizeram os dois governos
Lula, para combater a corrupção no setor público, e que criasse condições
políticas tão positivas, para que a Polícia Federal, o Ministério Público, a
Corregedoria da União, expandissem o seu pessoal, melhorassem os seus salários,
qualificassem os seus meios tecnológicos e as suas conexões internacionais,
para combater de forma tão intensa a corrupção.
As manipulações e as
instrumentalizações políticas cometidas por estas instituições, neste momentos
de turbulência, não diminuem a importância do trabalho que estão fazendo em
defesa da República. Combater e criticar os seus desvios, sejam em que sentido
forem, não ofuscam o fato de que estamos num novo patamar de defesa do público
e de combate à corrupção no país. Nem a petulância de alguns dos seus membros
deve ser considerada como marca definitiva das suas ações.
Nenhum país do mundo, seja ele
uma jovem democracia, seja ele um país de democracia madura, ficou livre dos
aproveitadores das benesses, que governar oferece. Mas é bom lembrar, por outro
lado, que não é corriqueiro nem é característica de qualquer Governo, em dez
anos fazer 50 milhões de pessoas melhorarem as suas condições de vida (como no
Brasil de Lula e do PT). Tal fato, ao final do segundo Governo Lula, fez o
próprio Fernando Henrique dizer (reconhecendo o sucesso dos Governos do
Presidente Lula), que "isso só foi possível por causa do Plano Real".
E Serra dizer, que ele, Serra, seria, na verdade, um bom sucessor para
continuar a obra de Lula.
A habilidade de manipular
palavras e imagens, hoje se repete de maneira superlativa, na “crise de
Cunha". Nela, não é a oposição que caiu por terra, com seu líder mais
importante. Nem a chantagem, que foi desmascarada, é o fato político mais
importante. Não é Aécio que deve explicar seus companheiros de “luta”. Não é
FHC que, com Cunha e Bolsonaro, formou o trio dos radicais contra Lula e o PT,
que deve explicações. Segundo esta
habilidade para manipular, é a Presidenta que deve explicar porque se defende e
porque quer preservar o seu mandato. É Lula, que não tem qualquer sombra de
suspeita de ter contas no exterior, que tem que se explicar, porque -certo ou
errado- promove as empresas do país no exterior, como fazem todos os
Presidentes. É ele, Lula, que deve se explicar todos os dias sobre a corrupção
na Petrobrás, que iniciou lá nos anos 90, em outro mandato presidencial.
A manipulação de palavras e
imagens, que agora está sendo feita, tem uma meticulosidade superior a todas as
demais. Ela pretende secundarizar a queda da máscara do líder mais ativo da
oposição, para colocar em primeiro plano a crítica da reforma ministerial.
Com isso, este segundo estágio da
manipulação pretende enfraquecer a tênue recuperação da governabilidade e criar
algum outro Cunha -talvez ainda no próprio ventre do Governo- para enfraquecer capacidade do Governo fazer
escolhas e, assim, exigir “ajustes” ainda mais profundos. Ao atacar duramente a reforma ministerial
que a Presidenta realizou, colocando-a
–como problema- num plano
superior ao flagrante delito de Cunha, o trabalho fica completo: Cunha vai para
a reserva e as demandas, para que o ajuste seja ainda mais radical, continuam
indefinidamente.
A edição de Zero Hora, de
sexta-feira, 2 de outubro, não é nada demais do que está sendo feito pela
grande mídia, mas é exemplar para avaliar o novo momento político que iniciamos
a travessia. Duas páginas para “lembrar” as "suspeitas" contra a
Presidenta Dilma e contra Lula, sem nenhuma prova, direta ou indireta, no mesmo
dia em que noticia os cinco milhões de dólares, bloqueados na Suíça, atribuídos
a Eduardo Cunha.
Assim, sem hierarquia, tudo se
dissolve num fantástico festival, no qual a política fica sempre invalidada e
se fornece elementos para que sobreviva, mesmo com o principal líder da
oposição desmascarado, o ódio e a irracionalidade contra o Governo. Como diz
Todorov, a nossa capacidade de destruir vidas e construções é bem maior que a dos romanos e dos bárbaros, só que
estamos tratando -agora- do próprio futuro da democracia, que não existirá sem
política, sem partidos, sem debates minimamente racionais.
Em algum momento, a ampla maioria
da sociedade vai reconhecer -nem que custe um pouco - que o massacre desproporcional que está sendo
promovido contra Lula e contra o PT, não o é somente pelos nossos defeitos, mas
principalmente pelas nossas virtudes. Os Governos Lula promoveram, dentro da
democracia, o mais formidável processo de inclusão social, num curto período
histórico, que nenhuma revolução conseguiu fazer no Século passado e, se é
verdade que estamos num momento de regressão e crise, que o ciclo está
esgotado, que a esquerda precisa renovar-se radicalmente –com ou sem o PT-
também não é menos verdade que nossos sonhos já passaram, em outras épocas, por
retrocessos semelhantes. E sempre voltamos.
O massacre contra Lula, agora
chamado para depor como “testemunha” num inquérito policial, visa expor o
ex-Presidente ao escárnio público, ou seja, fazer do ingresso definitivo da
política no âmbito da judicialização, o ataque definitivo à memória dos seus
Governos, depois de um completo processo de manipulação da informação, sobre o
que foi o seu período de Governo e os motivos reais da crise atual.
A tentativa de homicídio político
qualificado contra Lula, tem por finalidade última dizer a todo o povo, que
quem deve governar o país são os grandes grupos midiáticos que defendem –com ou
sem apoio dos partidos- a forma de governar que nasceu com Tatcher na
Inglaterra e hoje comanda o grande ajuste europeu. E o faz com uma grande
mistura de gangsterismo “a la Berlusconi” com a severidade tecnocrática da sra.
Merkhell: decretam não só o fim da ideia
de igualdade, contida no socialismo, mas também a ideia de justiça social,
contida na socialdemocracia. O que a esquerda espera de Lula é que os seus
movimentos táticos não sejam a rendição a uma paz que promove esta dupla morte
do humanismo democrático moderno.
Encerro com Todorov, como ele
encerra seu livro: "Todos nós, habitantes da Terra, estamos envolvidos,
hoje, na mesma aventura, condenados a ter êxito ou a fracassar juntos. Embora o
indivíduo isolado seja impotente diante da enormidade dos desafios, mantém-se a
verdade: a história não obedece a leis imutáveis, a Providência não decide
quanto ao nosso destino. O futuro depende das vontades humanas". Assim
sempre foi e assim será. Para a tragédia ou para esperança.
Créditos da foto: Ricardo
Stuckert/Instituto Lula
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12