Os fundamentos de Serra para justificar seu projeto
refletem o mantra do neoliberalismo segundo o qual a dívida pública sempre é
algo negativo.
J. Carlos de Assis* // www.cartamaior.com.br
Entre as patacoadas fiscalistas com que costuma
brindar o país, o senador José Serra acaba de incluir uma joia do pensamento
econômico conservador norte-americano, tese central do Tea Party, a saber, a
criação de um teto máximo para a dívida pública. Amigos meus estão apreensivos
com essa iniciativa já que, tendo em vista a situação caótica do Congresso
Nacional, é possível que dê passagem às besteiras mais irresponsáveis em função
de intrigas partidárias ou das manobras defensivas de um presidente da Câmara
próximo da cassação.
Gostaria de
contribuir para tranquilizar as pessoas de boa fé que estão assinando um
manifesto contra o projeto. Eu também o assinei, mais por educação do que por
preocupação. O projeto Serra, quando for percebido pelas classes dominantes,
vai reunir contra si a fina flor dos banqueiros e financistas brasileiros pela
razão óbvia de que, se for implementado, colocará em risco não só o orçamento
social do Estado mas o pagamento do serviço da dívida pública. Ou seja, é um
roteiro direto para o calote financeiro.
Por que
Serra inventou um projeto tão idiota? Claro, ele segue a cartilha dos
conservadores do Partido Republicano dos Estados Unidos, em especial os
radicais do Tea Party. Estes, por razões estritamente políticas e nada técnicas,
tentaram empurrar um teto goela abaixo de Obama em 2011, deixando em pânico
Wall Street. Na hora H, o projeto foi derrotado sob pressão dos financistas,
com medo de que, sob o teto da dívida, o Governo norte-americano acabaria por
ter de dar o calote em sua dívida pública.
Não é que
não haja um teto periodicamente renovado pelo Congresso para a dívida pública
dos Estados Unidos. Existe sim, mas é meramente formal. Sempre que, em razão do
déficit público anual, a dívida pública chega próxima do teto, o Congresso
aprova sua elevação de forma quase automática. Nem mesmo a loucura política
avassaladora que se manifesta nos conflitos entre Partido Republicano e Partido
Democrata é capaz de desembocar em algo tão contrário aos interesses das
classes dominantes como a possibilidade de um calote na dívida.
De fato,
entre os anos 40 e esta década, o Congresso norte-americano autorizou nada
menos do que cerca de cem vezes o aumento do teto. Toda vez que a situação
orçamentária exigia um déficit expressivo, rompendo o teto, o Congresso
aprovou. Isso significa que o teto é uma mera convenção. O importante é a
formulação e a execução do orçamento. Em determinadas circunstâncias do ciclo
econômico, o déficit não é apenas necessário mas fundamental para estimular a
retomada do crescimento econômico e do emprego.
Por que o
teto da dívida norte-americana teve que ser elevada? É que, no esforço de fazer
a economia retomar depois do início da crise em 2008, o Governo Obama teve de
recorrer a déficit de 1,413 trilhão de dólares em 2009; 1,294 trilhão em 2010;
1,1 trilhão em 2011; 680 bilhões de dólares em 2012; 492 bilhões em 2013. No
ano passado, ficou na faixa de 2013. Sem aumentar o teto da dívida, a economia
do país teria afundado pois a eficácia da política monetária, mantida a zero
por cento, tem sido praticamente nula.
Os
fundamentos de Serra para justificar seu projeto são toscos. Reflete o mantra
do neoliberalismo segundo o qual a dívida pública, sempre, é algo
economicamente negativo. Esquece o fato elementar, aparentemente desconhecido
por ele, de que dívida pública é um instrumento fundamental de política
econômica desde os primórdios do capitalismo. Entre outras coisas, é uma forma
de cobrir gastos públicos sem aumentar impostos, sendo seu custo coberto pela
ampliação do próprio aumento de circulação do dinheiro (senhoriagem).
A raiva da
classe dominante financeira em relação ao aumento da dívida pública é
justamente a perda da receita de senhoriagem para o Estado. Se a atividade
econômica se eleva de 100 para 200, a economia exige que se dobre o dinheiro em
circulação. Quem se apropria desse dinheiro? Se a dívida aumenta, o aumento
será apropriado pelo Governo sem custos. Se a dívida se mantém no mesmo nível,
ou se cai, conforme quer Serra, o sistema
bancário se apropria da receita de senhoriagem e a divide com outros
financistas.
Entretanto,
nem todo aumento da dívida pública é virtuoso. Se é apenas para rolar a dívida
velha, como acontece quando temos déficit nominal acima do superávit primário –
e quando o serviço pago da dívida velha não retorna como gastos reais à
economia mas continua no giro especulativo do over -, estamos diante de um
círculo vicioso infernal, que neste ano resultará numa contração da economia de
cerca de 5% (o FMI já fala em 3%). Nesse contexto, porém, segurar o teto da
dívida nos níveis propostos por Serra seria ainda mais recessivo.
Para uma
avaliação dessas consequências, basta imaginar situação na qual o teto da
dívida seja estourado em razão da repercussão da inflação e dos juros na
execução orçamentária até outubro. Daí em diante, o Governo teria que escolher
as despesas que deveria pagar: saúde, educação, segurança, juros da dívida
pública. Escolham! Uma vez escolhida uma dessas rubricas, por favor, peça ao
senador Serra e ao Congresso que comuniquem aos setores atingidos sua
contribuição ao equilíbrio fiscal. E que se arranjem, por favor, num
entendimento com os credores da dívida pública!
*Economista, professor, doutor pela Coppe/UFRJ,
autor, entre outros livros de economia política, de “Os Sete Mandamentos do
Jornalismo Investigativo”, Ed. Textonovo, SP.
Créditos da foto: Marcos Oliveira / Agência Senado
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