Entre 1960 e 1970, cerca de 24 bilhões de dólares
desapareceram da economia brasileira, entre 2000-2009, essa cifra disparou a
500 bilhões.
Marcelo Justo // www.cartamaior.com.br
Jacarta - O congresso anual da Coalizão pela
Transparência Financeira (FTC, em sua sigla em inglês), que se encerrará nesta
quarta-feira, em Jacarta, é um abecedário do realismo mágico das finanças globais.
Neste mundo paralelo, as empresas não tem diretores, nem empregados, nem seres
humanos, e um mero edifício nas Ilhas Cayman é a sede de 18 mil multinacionais.
“Estamos falando de bilhões e bilhões dólares anuais subtraídos da economia
global. São fundos que poderiam ser destinados ao investimento social ou para
infraestrutura, ambos aspectos fundamentais para os países em desenvolvimento”,
indicou Porter McConnell, diretora da FTC, em entrevista para a Carta Maior.
Essa avaliação se mostra claramente num informe
sobre o Brasil e outras quatro “economias em desenvolvimento” da Global
Financial Integrity (GFI), uma das 150 organizações que formam a FTC e que tem
membros em 40 nações. Segundo a GFI, entre 1960 e 2012, o Brasil perdeu cerca
de um trilhão de dólares entre esquemas de evasão fiscal e fuga de capitais, um
montante equivalente à metade do Produto Interno Bruto anual e quatro vezes
maior que as exportações do país.
O mais interessante é perceber como essa quantia
foi se duplicando a cada década. Entre 1960 e 1970, cerca de 24 bilhões de
dólares desapareceram da economia nacional, entre 2000-2009, essa cifra
disparou a 500 bilhões – a medição considera valores constantes do dólar.
Esse crescimento constante da sonegação fiscal e da
fuga de capitais mostra de uma economia cada vez mais estruturalmente
condicionada em sua dinâmica e funcionamento pelas sombras que floresceram
junto com o surgimento de muitos novos paraísos fiscais e a liberalização
financeira mundial, observada a partir dos Anos 80. Prova de que as políticas
progressistas em matéria econômica e social não estão sendo suficientes: a
cifra seguiu aumentando entre 2010 e 2012. “O impacto foi sentido em toda a
economia, tanto nos tempos de bonança como nos de dificuldades. Um dos problemas
é que o investimento estimulado por um desenvolvimento positivo da economia
formal do Brasil acaba se retraindo devido ao crescimento dessa economia
subterrânea”, indicou Dev Kar, economista-chefe da GFI e coautor do informe, em
entrevista à Carta Maior.
Nesse quadro de massiva evasão fiscal, as
multinacionais exercem um papel central. Segundo o informe da GFI, a
subfaturação e outros artifícios “financeiros” tiraram do circuito formal
econômico do Brasil cerca de 80 bilhões de dólares só em 2012, equivalentes a
aproximadamente 4% do PIB. “É um dos mecanismos mais usados na fuga de capitais
ilícita”, relata Dev Kar.
O G20 e a OCDE
Mas o problema é internacional. O plano para
eliminar a evasão fiscal das multinacionais, apresentado pela OCDE neste mês de
outubro, em trabalho realizado em conjunto com o G20, apenas resvala em alguns
aspectos da questão. Segundo o diretor da OCDE, o mexicano Angel Gurría, a
implementação do plano possibilitará a recuperação de cerca de 250 bilhões de
dólares em impostos a nível global.
Entretanto, a visão dos participantes do congresso
anual da FTC, em Jacarta, é bem diferente. “É um plano cheio de falhas. É bom
que estejamos conversando sobre o assunto, mas a realidade é que não foi falado
nada ainda sobre os problemas mais graves relacionados a ele”, disse Porter
McConnell à Carta Maior.
O plano da OCDE, que o G20 ratificará em novembro,
contém alguns avanços como a obrigação das corporações a informar algo tão
básico como onde se produzem os lucros que figuram em seus livros contábeis.
Essa informação, que lamentavelmente não será pública, permitirá às autoridades
fiscais entender onde estão registrados os lucros das multinacionais que operam
constantemente com subsidiárias em paraísos fiscais para driblar a cobrança de
impostos.
Segundo o “The Economist” (não precisamente uma
organização de esquerda ou uma ONG), o acordo é uma oportunidade perdida, na
qual os escassos passos dados foram eclipsados pelos problemas pendentes. “O
pior é que a OCDE não avançou nada no caso das `entidades independentes´, no
qual se baseia a premissa fictícia de que as companhias e subsidiárias de um
grupo corporativo funcionam como entidades legais independentes”, afirma o The
Economist.
E este é, precisamente, o coração do problema.
A dimensão desconhecida
O mundo financeiro paralelo dos paraísos fiscais
está alimentado por três artérias: a corrupção, a lavagem de dinheiro (tráfico
de drogas, armas, pessoas, etc) e o comércio global. Ao contrário da percepção
pública, a lavagem de dinheiro e a corrupção, que costumam atrair todo o
interesse midiático, são os de menor peso: 20% do total. “O comércio mundial
representa 80% do total dessa fuga de capitais. Esse comércio está dominado
pelas corporações multinacionais que constituem ao redor de 60% de todos os intercâmbios
comerciais globais”, indicou à Carta Maior o representante da Global Witness,
Robert Palmer, outro participante da conferência em Jacarta.
O funcionamento interno desse mundo paralelo foi
comparado por alguns especialistas a um “sistema ecológico interno de centenas
de milhares de companhias”. Exemplos:
– As cem companhias mais importantes do famoso
índice Footsie de Londres têm mais de oito mil subsidiárias em paraísos
fiscais.
– Nas Ilhas Cayman, um único endereço é declarado
como sede de 18 mil companhias.
– Em Amsterdam, a companhia Intertrust fornece
serviços financeiros para multinacionais: hoje, existem mais de 10 mil empresas
fantasmas registradas na capital holandesa.
Mais casos desse realismo mágico financeiro. As
Ilhas Virgens Britânicas, um pequeno arquipélago do Caribe com 28 mil
habitantes tem mais de 90 mil companhias – mais de três empresas por habitante
– e é uma das maiores responsáveis pelo investimento estrangeiro na China.
A mecânica é simples: uma companhia chinesa realiza
seu investimento “estrangeiro” em empresas fantasmas nas Ilhas Virgens, e
depois, a partir dessas empresas “estrangeiras”, reinvestem na China pagando
menos impostos e aproveitando isenções concedidas aos investidores forasteiros.
No jargão dos paraísos fiscais, essa manobra se chama “round trip” (viagem de
ida e volta).
O esquema é relativamente simples e não requer um
mestrado em contabilidade ou direito internacional. Mas, acredite ou não, nada
disso está sob o foco da proposta da OCDE.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: Ilhas Cayman - Foto: KatieThebeau
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