Navio com cinco mil cabeças de gado afunda e faz
município paraense reviver mais um acidente em sua trajetória de injustiças
ambientais.
Rogério Almeida // www.cartamaior.com.br
Compartilhada pelo WhatsUp no dia do acidente -
Bois tentam se manter vivos enquanto navio libanês afunda no Rio Pará.
Embarcação deveria levar conteiner e estava improvisada para levar carga viva.
25 homens da empresa Cidade Limpa, apoiados por
quatro tratores levaram quase uma semana para retirar aproximadamente 300
cabeças de gado que aportaram na praia do distrito do Murucupi (também
conhecido como São Marcos), na Vila do Conde, setor industrial de Barcarena,
município localizado à uma hora e meia de barco da capital paraense. O local
foi um dos mais afetados após o adernar do navio de bandeira libanesa, Haidar,
no Pier 300, do porto da Companhia Docas do Pará (CDP) no dia 06 de outubro de
2015. A embarcação transportava cinco mil bois e 600 mil litros de óleo para a
Venezuela. O naufrágio com carga viva já é considerado o maior do mundo em
águas fluviais.
Prejuízos
A praxe do Estado em relação a grandes acidentes no
Pará tem sido reativa. Não existe um plano de contingência, apesar da ilha
industrial registrar desastres de grandes proporções desde 2004. O prejuízo total está estimado em R$ 800
milhões - R$14 milhões somente com a carga. O valor inclui os danos diretos e
indiretos e a retirada do navio, calculada para durar quatro meses. O Haidar foi
construído para transportar contêineres. Contudo estava improvisado para
carregar boi vivo. Um “clube” de empresas seguradoras com sede em Londres e
Beirute deve compensar o sinistro.
A embarcação prestava serviço a maior empresa
exportadora de gado vivo do país, a Minerva Foods, sediada em São Paulo, na
cidade de Barretos. Os principais destinos da carga são os mercados do Líbano,
da Venezuela e do Egito. A Samara Shipping é a proprietária do navio. Ela
contratou a Mammoet Salvatage, uma das principais empresas do setor no mercado
mundial, para resgatar o navio.
Não é o primeiro incidente envolvendo a Minerva
Foods. Em março de 2012 “Gracia Del Mar”, navio de bandeira panamenha, embarcou
5.200 bois na Vila do Conde com destino ao Cairo, no Egito. Deste total, 2.700
bois morreram no Mar Vermelho por falta de ventilação, presume-se. À época, o
presidente da Minerva, Fernando Queiroz, eximiu-se da responsabilidade. O gado
morto foi descartado em alto mar. Assim como em 2012 a empresa debita na conta da
transportadora a responsabilidade do desastre.
Por conta do acidente, a exportação de carga viva
foi suspensa no Porto da Vila do Conde. Os ministérios públicos federal,
estadual e a defensoria recomendaram que as atividades no porto fossem
suspensas até que a carga em decomposição e o navio fossem retirados. A justiça
negou o pedido.
Carga “viva”
A atividade pecuária é um dos principais indutores
do desmatamento na Amazônia. Além do dano florestal, os gases do rebanho
prejudicam a camada de ozônio. O maior produtor de gado do Pará, São Félix do
Xingu, no sul do estado, ocupa o topo da lista de 47 municípios que mais
desmatam na região amazônica. O rebanho somava 1,7 milhão de cabeças em 2008,
mas subiu para 2,2 milhões em 2014, segundo o IBGE.
Os bois que embarcam em Vila do Condo vêm de
municípios como São Félix do Xingu. A partir do sul e sudeste paraense até o
país importador o transporte da mercadoria é precário. Representante de uma
associação de defesa dos animais calcula que 10% das cargas vivas morrem até
alcançar o destino. “Os animais são dopados para poder aguentar a longa viagem,
que às vezes dura 17 dias. Eles não comem e nem bebem água”, acusa uma
defensora que prefere o anonimato.
Caminhoneiros contam que o embarque do boi em pé não
é prioridade em Vila do Conde. É comum os animais virem a óbito por conta da
ausência da água e comida na fila de espera do embarque, após percorrerem mais
de 500 quilômetros de rodovias.
A espera do ressarcimento
A criação do comitê de crise com diversos órgãos
para lidar com os desdobramentos do naufrágio foi uma resposta rápida, porém,
paliativa. Marinha do Brasil, CDP, Corpo de Bombeiros, Agência Agropecuária do
Pará (Adepará), Defesa Civil e Secretarias Municipal e Estadual de Meio
Ambiente estavam entre as instituições do grupo de crise, que pouco pode fazer
para minimizar o impacto do acidente junto à população.
Desde o dia 06 de outubro cerca de 30 comerciantes
que moram na área do Murucupi, em Barcarena, convivem com o refluxo dos negócios.
Ana Cleide Souza Castro chegava a faturar até mil e quinhentos reais por fim de
semana. O recurso é a principal fonte de manutenção da família de 10 pessoas,
sendo duas adolescentes, e os demais adultos.
“Aqui todo fim de semana pessoas de Belém vinham em
comitivas de ônibus fazer piquenique. Após o acidente optaram por outro lugar.
Vendi uma garrafa de refrigerante durante os últimos dias” conta dona Ana
Cleide, que tem apelado para a compreensão de parentes, amigos e vizinhos para
conseguir alimentação e água.
Murucupi, uma praia de água de doce, fica entre os
portos da Companhia Docas do Pará (CDP), local do acidente, e o porto da
empresa francesa, Ymeris Rio Capim, que explora o minério de caulim, usado para
a produção de celulose. Em junho de 2007 tanques de contenção de rejeitos da
empresa transbordaram e 200 mil metros
cúbicos de efluentes tomaram as águas do
rio das Cobras, e os igarapés Curupere e
Dendê, entre outros (Saiba mais).
“Não quero nem indenização, o que desejo é uma
compensação pelo que deixamos de negociar durante todo esse período” advoga Ana
Cleide. Desde o início dos anos 2000 ela coleciona três processos contra as
grandes empresas que operam no Distrito Industrial de Barcarena. Um deles por
conta da contaminação da praia por uma fuligem de pó escuro que saía das
fábricas. Os outros dois processos da proprietária do Bar do Cabelo, apelido do
marido, são por conta da contaminação do bairro e da praia com o óleo das
balsas que operam aqui na região. “Os dois devem ter uns cinco anos” avalia.
Ana Cleide acusa os poderes que integram o comitê
de crise por burocratizar a ajuda às populações impactadas. “A minha família recebeu um botijão de água
do poder público municipal. Para isso respondemos um questionário imenso
aplicado por uma pessoa do Centro de Referência e Assistência Social (Cras)”,
desabafa.
Paula Santa Brígida, que tem uma barraca em frente
ao comércio de dona Ana Cleide engrossa o coro dos descontentes em relação ao
descaso do poder público. “As instituições não têm dado a devida atenção às
pessoas que moram aqui, em particular aos pescadores e ribeirinhos”, crava a
senhora. A filha Ana, e o neto negociam chop (espécie de suco congelado),
enquanto conversamos. No rosto usam mascaras para evitar o mal cheiro provocado
por restos de bois em decomposição que se amontaram na praia.
Raimunda Souza (Mundinha) é uma senhora clara,
estatura pequena. É pescadora desde os dez anos de idade. Numa casa acanhada,
situada no bairro São Pedro, na Vila do Conde, acomoda nove pessoas, sendo
cinco crianças. Ela conta que na ocasião do acidente, junto com outros
moradores do bairro, capturaram duas cabeças de gado vivo, mataram e dividiram
entre si.
Ela e outros 65 associados da Cooperativa de
Pescadores de Vila do Conde estão impedidos de pescar no rio Pará ou pegar
camarão no furo do Dendê, - um afluente do rio - que fica nos fundos de sua
residência. Ela exibe uma geladeira somente com garrafas d´água, e uma sobra de
carne do boi, que exala um cheiro desagradável.
“Até o dia 15 [outubro] nenhuma família do bairro
recebeu água ou cesta básica. Uma assistente social visitou a gente, e se
recusou em beber a água do nosso poço artesiano. A minha filha tem sofrido com
alergia por conta do óleo da embarcação. Nossas redes, roupas e barcos tá tudo
sujo de óleo. O fiado na vendinha e o Bolsa Família é que tem nos ajudado”,
desabafa Raimunda. Segundo ela, a
Colônia de Pescadores do município possui mais de dois mil e quinhentos associados.
Todos estão impedidos de trabalhar.
Ciro Gomes Pereira, a esposa Leá e a filha são
pescadores no Furo do Arrozal. Antes do acidente negociavam 50 quilos diários
de peixes típicos da região, pescada e sarda. “A gente não sabe o que fazer e
para quem recorrer. Lá no arrozal ninguém recebeu nada até o momento [dia 16 de
outubro]”, explica Ciro. O pescador
conta que a comunidade já vinha sofrendo problemas por conta das balsas da
empresa Bunge, que exporta grão de soja.
“Uma chuva forte espalhou soja nos furos, igarapés e no rio Pará. Isso afetou nosso trabalho”
narra o recém-aposentado.
O óleo e as carcaças de bois já alcançaram a
vizinha cidade de Abaetetuba, que congrega 45 ilhas, onde moram perto de 50 mil
pessoas que sobrevivem da pesca, do extrativismo do açaí e do artesanato do
miriti. Entre os moradores há o pedido de ressarcimento por parte dos
responsáveis do acidente em três salários mínimos durante cinco anos. Hueliton
Pereira, morador do município, informa que um documento solicitando
providencias já foi protocolado junto ao Ministério Público Estadual (MPE).
O comitê de crise não tem o número exato de
famílias que foram atingidas. Essas pessoas têm sido assediadas por advogados
de toda estampa, que desejam vender seus serviços. No dia 19, trezes dias após
o desastre, uma nota publicada no site da CDP informava que a Secretaria de
Portos mediou junto a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ao
Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) cinco mil cestas básicas e subsídio
de um salário mínimo para as famílias atingidas.
Contradições
Barcarena é um importante entreposto logístico e
produtivo da economia brasileira. Do seu porto com grande profundidade (calado)
saem e chegam mercadorias que alimentam o mercado mundial com grãos, minério e
gado vivo. Uma referência da importância do município é a Albrás-Alunorte, o
maior complexo de produção de alumínio do mundo.
Inicialmente, nos anos de 1980, o complexo era
tocado pela Vale e um grupo japonês. Atualmente, a gigante norueguesa Hydro é a
acionista majoritária do empreendimento que beneficia a matéria prima do
alumínio, a bauxita. O material leve e resistente, encontrado em carros de luxo
e em cobiçados celulares com a estampa
da maçã , é uma das principais commodities do Brasil, que ocupa a quarta
colocação na extração mundial de bauxita e controla a terceira maior reserva do
planeta.
Mas o que deveria ser um indutor de desenvolvimento
para a região, pouco se reflete no
cotidiano de quem mora na cidade. Dados
do IBGE (2010) relatam que perto de 30% população estão na faixa da pobreza,
possuem moradia precária e limitado serviço de saneamento básico, sendo a maior
parte de origem rural.
Ao mesmo tempo, o processo de produção de inúmeras
indústrias sediadas em Barcarena também gera passivos. Investigações do
Instituto Evandro Chagas atestam que há o comprometimento de 90% da água nas
áreas circundante das empresas. “Toda a cadeia produtiva do alumínio socializa
[causa] danos à terra, `a água e no ar, além da pele, olhos, pulmões e na vida
dos trabalhadores e moradores” indica relatório produzido em 2009.
“Não existe controle social sobre os processos que
ocorrem na cidade, o estado não possui equipamentos e pessoal qualificado para
monitorar a produção e emissão dos rejeitos das grandes empresas. O que ocorre
é um faz de conta. As empresas produzem relatórios e as instituições os endossam”,
acusa um sindicalista aposentado, que prefere não se identificar por colecionar
processos motivados por suas denúncias de crimes ambientais na região.
Injustiça ambiental
A terra do festival do abacaxi e da guitarrada,
tocada por Mestre Vieira, é um caso emblemático da injustiça ambiental. Ou
seja, “ao município ficam as ‘sobras’ dos processos produtivos, das obras de
infraestrutura e logística, sem que haja mecanismos claros e efetivos de
controle e compensação”, define carta assinada por cerca de 60 organizações
sociais indignadas com o acidente em Vila do Conde.
Em regimes democráticos o estado tem um papel
importante para mudar o jogo. “O governo brasileiro deve mediar interesses. Não
basta fomentar desenvolvimento, planejá-lo. A sociedade local precisa usufruir
da riqueza gerada, não podemos aceitar que os frutos do desenvolvimento fiquem
restritos a alguns territórios e segmentos”, cobra Maura Moraes, coordenadora
de projetos do IEB.
Enquanto barcarenenses aguardam compensações pelos acidentes
vivenciados, os bois “descansam” no fundo do rio Pará. A expectativa de um
estado que equilibre a balança da justiça socioambiental é uma luta diária, que
exige participação, controle social e as devidas responsabilizações,
principalmente daqueles que auferem lucros econômicos com a exploração dos
recursos naturais.
“É necessário que as empreendimentos produtivos
respeitem a legislação ambiental, reflitam sobre o seu modo de produção, de
forma a adotar medidas preventivas eficientes para evitar os danos, assim como
se disponham a construir novas formas de relação entre sociedade, Estado e
empresas presentes no município”, declara carta pública em solidariedade à
Barcarena, e que exige respeito às pessoas e ao meio ambiente.
Créditos da foto: Compartilhada pelo WhatsUp no dia
do acidente - Bois tentam se manter vivos enquanto navio libanês afunda no Rio
Pará. Embarcação deveria levar conteiner e estava improvisada para levar carga
viva.
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